Por Rodrigo Anzonlin Begotti
Uma característica comum a todos os povos indígenas é o vínculo com suas terras ancestrais. A terra é parte fundamental na concepção da identidade coletiva desses povos e da própria identificação individual pela qual as pessoas se definem como índios. Dessa forma, o acesso à terra é imprescindível para a manutenção da coesão social, para a plena manifestação cultural e dos modos de vida tradicionais. Nas últimas décadas, o reconhecimento do direito à terra para os povos indígenas tem sido consolidado em diversos estados-nação baseando-se na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989, que trata dos Povos Indígenas e Tribais, e reforçada posteriormente pela Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas elaborada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007.
No Brasil, a política de Estado em relação aos povos indígenas começou a mudar somente no início do século XX. Na tentativa de romper com quatro séculos de perseguição, discriminação, esbulho de suas terras ancestrais e disseminação de doenças, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e expedições lideradas pelo marechal Cândido Mariano Rondon, ele próprio de ascendência indígena, empreenderam os primeiros contatos com diversos povos indígenas encorajando-os a se integrar à sociedade brasileira dominante. Desde a Constituição de 1934, a legislação reconheceu o direito dos povos indígenas ao usufruto de suas terras. Em 1967, após diversas denúncias de corrupção e conivência de servidores com o extermínio de grupos indígenas, o SPI foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Seis anos mais tarde, foi sancionado o Estatuto do Índio, o marco regulatório das demarcações dos territórios indígenas. Porém, somente com a Constituição de 1988 o direito à terra foi plenamente consolidado. A “Constituição Cidadã”, como ficou conhecida, declara explicitamente que os povos indígenas são os legítimos donos da terra, cujos direitos prevalecem sobre quaisquer outros, reconhecendo e reforçando a multiculturalidade do povo brasileiro. Além disso, a Constituição de 1988 instituiu definitivamente a figura jurídica dos territórios indígenas, denominados Terras Indígenas. Nesses territórios, o usufruto exclusivo dos povos indígenas permanece inalterado, porém a posse da terra continua sendo do poder público central (União). Após o contencioso processo de Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu 19 condicionantes com força de lei incluindo regras adicionais para a demarcação de novas Terras Indígenas.
Ao mesmo tempo em que boa parte das demarcações de Terras Indígenas em áreas remotas ocorriam relativamente sem grandes contestações, mesmo aquelas com maior superfície demarcada, o reconhecimento do direito à terra para os povos indígenas diante da expansão da fronteira agrícola e do desmatamento tem se tornado cada vez mais conflituoso, tanto do ponto de vista jurídico como no aumento da violência contra esses povos. Mas o cenário tem piorado e muito nos últimos anos. No Congresso Nacional, há diversos projetos de alteração da legislação patrocinados por grandes grupos econômicos do setor agropecuário e da mineração. Essas propostas visam principalmente o enfraquecimento da legislação ambiental, a diminuição do status de proteção e a abertura das Terras Indígenas para a exploração econômica, inclusive por não-índios. A principal bandeira levantada por esses grupos é de que há “muita terra para pouco índio”, uma grande porção do território nacional cujo aproveitamento econômico dos recursos ali presentes é impedido para o usufruto de uma parcela minoritária da população brasileira. O próprio Poder Executivo tem adotado uma política com viés anti-indígena e anti-ambiental paralisando todos os processos de estudo e demarcação de Terras Indígenas, promovendo cortes sucessivos no orçamento da Funai e nomeando para cargos-chave na instituição pessoas sem atuação na área indígena e ideologicamente alinhadas a essa política. Como consequência, tem ocorrido um aumento e intensificação das invasões às Terras Indígenas por grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais.
Esse é o contexto de estudo liderado por mim em coautoria com o professor Carlos Peres da University of East Anglia, do Reino Unido, que será publicado no volume de julho do periódico científico Land Use Policy, estando já antecipadamente disponível no website da revista. As Terras Indígenas brasileiras representam cerca de 13,5% do território do país e são ocupadas por aproximadamente 515 mil índios que falam cerca de 280 diferentes idiomas. Essa imensa diversidade cultural é resguardada em 587 territórios atualmente demarcados por meio dos quais são protegidos também cerca de 20% de todas as populações de animais e plantas da Amazônia. As Terras Indígenas retêm mais de 25% de todo o estoque de carbono do Brasil e são portanto fundamentais também para a conservação da biodiversidade e para a mitigação das mudanças climáticas. Sob a perspectiva ambiental, as Terras Indígenas foram incorporadas na política de gestão de áreas protegidas por meio do decreto presidencial 5758/2006, com o objetivo de atender aos compromissos firmados pelo Brasil na Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas.
Nesse estudo, a cobertura de vegetação nativa foi analisada no interior das Terras Indígenas e em uma faixa no entorno com 10 km de largura. Aproximadamente 90% de todas as Terras Indígenas brasileiras retêm mais vegetação dentro do que em suas vizinhanças. Juntas, protegem mais de 100 milhões de hectares de florestas, cerrados e vegetação campestre. Ao mesmo tempo, nos territórios que possuem mais de 90% de cobertura de vegetação intacta vivem aproximadamente 54% de toda a população indígena que habita as Terras Indígenas do Brasil. Resumindo, além de efetivas e representativas no contexto de proteção dos diferentes biomas e da biodiversidade do país, as Terras Indígenas abrigam mais da metade de toda a diversidade cultural das dezenas de povos que habitam o Brasil há milênios. Embora representem em números absolutos uma pequena fração da população brasileira, os povos indígenas de um modo geral baseiam seu modo de vida tradicional na caça, coleta e na agricultura itinerante, o que implica naturalmente em baixas densidades populacionais. Há uma relação inversa e interdependente entre densidade populacional e integridade ambiental medida pela cobertura de vegetação nativa nas Terras Indígenas. Baixas densidades populacionais evitam a superexploração dos recursos naturais e consequente degradação ambiental, ao mesmo tempo em que a disponibilidade de recursos que são providos por um ambiente relativamente livre de degradação permite a manutenção dos modos de vida tradicionais indígenas.
Não obstante, qualquer afirmação a respeito da ocupação humana no interior das Terras Indígenas deve ser realizada a partir de um contexto adequado. Seria ilógico, por exemplo, comparar a densidade populacional da Terra Indígena do Vale do Javari com a Região Metropolitana de São Paulo. Dessa forma, a densidade populacional só é apropriadamente comparável quando analisada com sua vizinhança. Ao fazermos essa comparação em nosso estudo utilizando dados dos Censos Demográficos do IBGE, nós encontramos que em 295 das 587 Terras Indígenas analisadas a densidade populacional dentro é maior do que no entorno. Além disso, somente em 208 Terras Indígenas foram encontradas baixas densidades típicas de populações com subsistência baseada na caça, coleta e agricultura itinerante. Esses resultados rejeitam por completo a afirmação de que há “muita terra para pouco índio”, comumente utilizada como contraponto à manutenção e demarcação de novas Terras Indígenas. Além disso, nos territórios com intensa degradação ambiental, onde a proporção de vegetação nativa é inferior a 30%, a densidade populacional no interior chega a ser 50 vezes maior do que no entorno. Portanto, a proteção do rico patrimônio etnocultural dos povos indígenas requer a manutenção do status de proteção de seus territórios.
Estima-se que no século XVI, somente no Brasil haviam entre dois e quatro milhões de índios que falavam cerca de 1.000 diferentes línguas. Após quatro séculos de mortes em massa, perseguição, epidemias e usurpação de territórios, a população indígena brasileira foi reduzida para agonizantes 220 mil indivíduos. Nos últimos 30 anos vários povos indígenas experimentaram uma recuperação demográfica expressiva, enquanto outros têm enfrentado situação totalmente oposta, estando sob o risco de extinção demógrafica e cultural. A pandemia da Covid-19 que está rapidamente se espalhando pelo interior do Brasil, infelizmente, tem grande potencial para piorar muito a situação. Torna-se evidentemente crucial que a demarcação dos territórios deve ser feita em dimensões suficientemente grandes para garantir as condições ambientais necessárias para a recuperação demográfica e para a prática dos modos de vida tradicionais dos povos indígenas remanescentes. A identidade coletiva e a auto-determinação desses povos, ou seja, o poder de decidir sobre o seu próprio futuro, fundamenta-se no direito à terra. Portanto, é extremamente preocupante a atual situação administrativa e financeira da Funai, que tem entre suas atribuições legais proteger as populações indígenas e seus territórios, realizar os estudos e demarcação de novos territórios, além de zelar pela integridade sanitária e cultural de grupos indígenas não-contactados e em isolamento voluntário. O Brasil, particularmente, é um dos países com a maior concentração desse grupos. O reconhecimento do direito à terra em consonância com o que determina a Constituição da República torna urgente também a retomada dos estudos e demarcações de mais de uma centena de Terras Indígenas, afim de salvar da extinção demográfica e cultural diversos grupos que se encontram em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade devido à violência relacionada às disputas por terra.
Rodrigo A. Begotti é graduado em ecologia pela Unesp e doutor em recursos florestais pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP). Foi bolsista de pós-doutorado na University of East Anglia em Norwich, Reino Unido e no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). E-mail: rodrigo_anz@yahoo.com.br