As unidades de conservação brasileiras por ocasião dos 20 anos da criação do SNUC: um panorama

Por José Augusto Drummond

As UCs tiveram e têm inimigos numerosos, muitos deles poderosos e que expressam cada vez mais abertamente a sua inimizade. A persistência das UCs e a continuidade dos seus problemas mais sérios convivem entre si de forma complexa e por vezes frustrante.

O Brasil se destaca no contexto mundial das ações de proteção da natureza principalmente por causa do número de unidades de conservação (UCs), da extensa área conjunta que elas ocupam e da variedade de suas categorias. Além disso, como o território brasileiro é quase 90% tropical e úmido, essas UCs protegem formações, ecossistemas e paisagens com altos graus de biodiversidade, contendo um conjunto de formas de vida provavelmente inigualado pelas UCs dos quase 200 países que compartilham terras e águas do Planeta Azul.

Em 2020, quando o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) completou 20 anos, 2.009 UCs federais e estaduais abrangiam 29,23% do território nacional (sem contar as UCs municipais). Elas se espalham pelos seis biomas terrestres brasileiros e pelo Sistema Costeiro Marinho, embora a distribuição delas seja desigual. Existem ainda numerosos outros tipos de áreas protegidas (terras indígenas e de quilombolas, Áreas de Proteção Permanentes e Reservas Legais) e um número desconhecido de outras áreas manejadas (jardins botânicos, hortos florestais, criadouros de animais silvestres, coleções de germoplasmas vegetais, reservas particulares e outros) que de diferentes formas protegem a biodiversidade.

Com três colegas, publiquei recentemente um livro que oferece um panorama geral das UCs brasileiras, com base em dados válidos até 2020, mas que às vezes remontam aos anos 1930.[1] Destaco aqui alguns dados e análises selecionados desse livro.

Começo com alguns aspectos positivos, que geram otimismo. O Brasil tem um rico “acervo” de áreas protegidas ou manejadas. As UCs se destacam no contexto brasileiro e mundial de preservação e conservação ambientais porque resultam das ações mais antigas, mais disseminadas e mais persistentes entre as políticas ambientais do país. Esse destaque positivo se deve a vários fatores, entre os quais saliento:

  • a antiguidade e a persistência por quase 90 anos da política de criação e gestão de UCs;
  • o grande número de UCs (1.107 = 334 federais + 773 estaduais);
  • a enorme área conjunta dessas UCs (248 milhões de hectares = 171 milhões das federais + 77 milhões das estaduais);
  • o estímulo que as UCs dão para ampliar o conhecimento científico da rica biodiversidade do território brasileiro;
  • a variedade de categorias de UCs, que permite flexibilidade às iniciativas de proteção e ao trabalho de manejo;
  • a ampla distribuição das várias categorias de UCs pelos biomas, ecossistemas, regiões e estados brasileiros;
  • a adoção de critérios tanto científicos quanto sociais para a criação e o manejo de UCs;
  • a participação de proprietários privados, empresas e ONGs na criação e no gerenciamento das numerosas UCs da categoria Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPNs (1.014 = 670 federais + 344 estaduais).

Cabe registrar também alguns fatores negativos, que geram preocupação ou mesmo pessimismo:

  • falta de regularização fundiária e patrimonial de muitas dezenas de UCs, um problema sério e crônico;
  • dificuldades de manter gestores alocados diretamente em muitas UCs;
  • falta de planos de manejo e de conselhos de gestão em muitas UCs;
  • falta de infraestrutura em muitas UCs, tanto para abrigar os gestores quanto para apoiar atividades científicas, de lazer e de educação ambiental;
  • a vulnerabilidade das UCs face à expansão das atividades produtivas e de construção de infraestrutura, que competem com elas pelo uso de espaços, territórios e recursos – agropecuária de grande porte, assentamentos de reforma agrária, estradas, hidrovias, portos, hidrelétricas, linhas de transmissão, extração e pesquisa mineral, plantios comerciais de árvores, perímetros urbanos etc.;
  • muitas UCs nasceram com, e algumas ainda vivenciam, problemas ou pendências ligados à sua sobreposição com terras indígenas, terras de quilombolas e áreas usadas por comunidades extrativistas;
  • grande parte das UCs visitáveis ainda é pouco visitada.

Vejamos alguns pontos mais específicos.

Visitação às Ucs

Parques (nacionais e estaduais) tendem a ser as UCs mais conhecidas, no Brasil e outros países, principalmente porque atraem visitantes e oferecem oportunidades de lazer e conhecimento da natureza. A visitação é estratégica, pois incentiva os cidadãos a apoiar as UCs e outras políticas ambientais. O Brasil acompanha essa tendência: ele é bem servido de parques – 296 = 74 nacionais e 223 estaduais. São as categorias de UCs mais numerosas nos dois níveis administrativos.

92,4 milhões de pessoas visitaram nossos parques nacionais entre 2000 e 2019 – não encontramos dados equivalentes para os parques estaduais. A tendência das cifras anuais foi crescente, passando de um patamar de 1 a 2 milhões de visitantes por ano em 2000-2006 a um patamar de 7 a 9 milhões entre 2015 e 2019. Essas cifras impressionam, mas não chegam perto das registradas em alguns outros países. Encontramos dados individualizados de visitação apenas para o ano de 2019, e só para os 20 parques mais visitados. Eles receberam 8,5 milhões de visitantes naquele ano. Chama a atenção que três parques, de três estados e três regiões distintos, concentraram 74% dos visitantes – Tijuca (RJ), Iguaçu (PR) e Jericoacoara (CE). Isso permite supor que exista um público maior de visitantes potenciais a ser atraído para os demais parques.

UCs no Sistema Costeiro-Marinho

Esse sistema não é oficialmente um bioma, mas é uma formação ecológica complexa e extensa, distinta dos seis biomas terrestres brasileiros. Ele e a sua proteção não têm muita visibilidade para o público em geral. Por isso pode surpreender que ele hospede 41 UCs federais (12% de todas UCs federais). As mais conhecidas são os parques nacionais de Fernando de Noronha, Lençóis Maranhenses e Abrolhos, abertos à visitação pública. Entre as outras 38, destacam-se 18 reservas extrativistas, localizadas em SE, SC, RJ, BA, PI, MA, AL, PA e CE. A sua finalidade é garantir as atividades produtivas de pequenas comunidades de pescadores, cultivadores de ostras, coletores de caranguejos etc.

RPPNs

Existem 1.014 RPPNs federais e estaduais. Elas nasceram da iniciativa de atores privados (empresas, ONGs, donos de terras), numa importante complementação das iniciativas públicas. Existem 670 RPPNs federais, espalhadas pelos 26 estados e pelo Distrito Federal. Os estados que têm mais RPPNs federais são BA, MG, SC, RJ e SP. Adicionalmente, há 344 RPPNs estaduais situadas em 11 estados, principalmente RJ, BA, ES, MG e SP. Embora a grande maioria dessas 1.014 unidades tenha áreas relativamente pequenas, as suas áreas somadas correspondem a cerca de 13% da área do RJ. Cabe destacar que existem 45 RPPNs federais com áreas consideravelmente grandes, acima de 2.000 ha. MS e MT comparecem com 14 dessas grandes RPPNs.

Regularização fundiária das reservas extrativistas

Mencionamos acima que a falta de regularização fundiária é um problema sério das UCs brasileiras. Ela decorre da “desordem” fundiária característica de grandes porções do território brasileiro, nas quais os limites e a distinção entre terras públicas e particulares são mal documentados ou simplesmente inexistentes. Terras públicas e terras particulares mal documentadas afetam todos os tipos de empreendimentos – fazendas, hidrelétricas, linhas de transmissão, estradas, ferrovias, portos, aeroportos, dutos etc. Isso não poderia deixar de afetar as UCs: o problema sobrevive há décadas em UCs mais antigas e há menos tempo em UCs mais novas, em especial naquelas categorias que exigem o controle público integral de suas áreas, como os parques e as estações biológicas. O ritmo de resolução das pendências decorrentes dessa situação é lento, principalmente por causa do viés legal e jurídico a favor da defesa da propriedade particular.

A precária situação fundiária das 66 reservas extrativistas federais surpreende, pois grande parte delas se situa em lugares claramente definidos como públicos (litorais marítimos, margens de rios e baías e mesmo trechos de rios e de mar). No entanto, apenas nove delas (13%) estão regularizadas fundiariamente. Outras 14 se localizam no mencionado Sistema Costeiro-Marinho, cujas terras e águas são de propriedade da União desde antes da criação das reservas – mas apenas duas dessas 14 RESEXs estão entre as regularizadas. Essa situação preocupa, pois as RESEX são as UCs que dão a resposta mais direta à constante crítica de que as políticas de conservação são insensíveis às necessidades dos segmentos mais pobres das populações rurais.

Abrangência das áreas de UCs em cada Estado

Mencionei que as UCs estão distribuídas amplamente pelo território, pelos biomas, pelas regiões e pelos estados brasileiros, notando que a distribuição é desigual em termos de números e áreas. As percentagens de áreas protegidas em cada estado por UCs federais e estaduais, por exemplo, variam muito. A média para todos os estados é de cerca de 15% de área protegida. O estado líder é o AP, com cerca de 36,03%, seguido de perto por DF (35,21%), AC ( 35,06%) e PA (31,14% ).

CE (1,47%), PB (1,19%) e MT (0,80%) são os estados com as menores porções de seus territórios protegidos por UCs.

Essa é a minha visão sintética das UCs brasileiras. Elas se consolidaram ao longo dos 90 anos transcorridos desde a criação da primeira delas, o Parque Nacional do Itatiaia, em 1937. Passaram por três surtos de expansão de números e áreas em 1959-1961, 1979-1982 e 2004-2006 e por vários períodos de estagnação. No entanto, o conjunto de UCs nunca parou de crescer, mesmo encarando episódios de extinção e de redução de áreas. As UCs tiveram e têm inimigos numerosos, muitos deles poderosos e que expressam cada vez mais abertamente a sua inimizade. A persistência das UCs e a continuidade dos seus problemas mais sérios convivem entre si de forma complexa e por vezes frustrante, mas elas se tornaram parte integrante – e desejavelmente permanente – do panorama brasileiro de conservação e preservação ambiental.

Guapimirim (RJ), agosto 2024

 

José Augusto Drummond é professor titular, Universidade de Brasília (UnB), aposentado

e-mail: jaldrummond@uol.com.br

[1] José Augusto Drummond; Marília Teresinha de Sousa Machado; Cristiane Gomes Barreto; José Luiz de Andrade Franco. Proteção da natureza no Brasil – 20 anos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação; Curitiba: Editora Appris, 2024. 182p. ISBN 978-65-250-6208-2. Os dados usados no livro foram quase todos obtidos de duas excelentes bases: (i) o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação – CNUC,  do Ministério do Meio Ambiente, disponível em https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/areasprotegidasecoturismo/plataforma-cnuc-1> e o Painel Dinâmico de Informações, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, disponível em <https://www.gov.br/icmbio/pt-br/centrais-de-conteudo/paineis-dinamicos-do-icmbio>