Por Ângelo Alves Corrêa [imagem: Área do Museu de História Natural e Jardim Botânico atingida pelo fogo. Rogerio Pateo / NAV / DAA UFMG]
A cada ano, vão queimando, triturando, reduzindo a pó os vestígios materiais de diversas culturas que habitam ou habitaram esse território que hoje conhecemos por Brasil. As pesquisas arqueológicas contam histórias que não estão escritas, dando voz a sociedades que foram marginalizadas. Quem sabe não é essa a verdadeira intenção?
O patrimônio arqueológico brasileiro é um bem único, não renovável e insubstituível em sua particularidade, e imprescindível para o fortalecimento de identidades e o reconhecimento de processos sociais de desigualdade e dominação.
Foi em 30 de novembro de 1937, por meio do Decreto-Lei nº 25, que o Estado Brasileiro se propôs, pela primeira vez, a proteger seu patrimônio arqueológico. Desde então, passando pelas Leis Federais 3924 de 1961, e 7542 de 1986, até a Constituição de 1988 (artigos 20, 23, 24, 30, 215, 216) e posteriores legislações, como a resolução Conama nº 001/1986 e, ainda, diversas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, o país vem tentando garantir a preservação do patrimônio arqueológico e seu acesso às futuras gerações. Salvo algumas “distrações” acontecidas ao longo desse caminho…
Uma delas durou mais de 30 anos e acabou no dia 18 de abril de 2018, quando o presidente da república transformava uma luta, que vinha sendo travada desde meados dos anos 1980, na Lei 13.653, que “Dispõe sobre a regulamentação da profissão de arqueólogo e dá outras providências”.
No entanto, nos últimos dois anos, quem se preocupa com o patrimônio arqueológico brasileiro vem acompanhando com perplexidade a intensificação dessas “distrações”.
A primeira “distração” diz respeito aos recorrentes retrocessos nos investimentos públicos para as ciências, em especial ciências básicas sociais e humanas. A arqueologia no Brasil até recentemente permaneceu sobre o controle de investimentos estrangeiros. Apenas após a ampliação dos investimentos nacionais em ciências foi possível a formação de arqueólogas e arqueólogos no Brasil, permitindo nas últimas décadas o controle nacional dos resultados de pesquisa desde a concepção dos projetos até a divulgação dos resultados.
Como toda forma de conhecimento é uma forma de poder, a “distração” consiste em deixar que o conhecimento sobre o passado de nosso povo novamente volte apenas a ser interpretado e vocalizado a partir das prioridades de investimentos externos. Esse quadro não se concretizará se houver investimentos desde os projetos de iniciação científica até as pesquisas de alto nível, para que tenhamos a possibilidade de formação de profissionais e a continuidade de suas carreiras no Brasil, garantindo assim uma arqueologia verdadeiramente brasileira.
A segunda “distração” corresponde ao descaso com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Desde 1937 é essa autarquia federal, vinculada hoje ao Ministério do Turismo, que responde pela preservação do patrimônio cultural brasileiro e, assim pelo patrimônio arqueológico. Cabe a ele proteger e promover os bens culturais do país, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. Hoje o Instituto é o único responsável pela emissão de portarias que permitem a realização das pesquisas arqueológicas por arqueólogas/os e pela fiscalização da qualidade científica dessas pesquisas, tanto no campo das pesquisas acadêmicas, como aquelas dedicadas ao licenciamento ambiental.
Desde março de 2019 a Sociedade de Arqueologia Brasileira[1] (SAB) tem noticiado e alertado que cargos vagos e trocas realizadas no corpo técnico do Iphan são ameaças contundentes à preservação e adequada gestão do patrimônio cultural brasileiro. Um exemplo disso é o Centro Nacional de Arqueologia (CNA). Criado em 2009, cabe ao CNA/Iphan a elaboração de políticas e estratégias para a gestão do patrimônio arqueológico brasileiro, a modernização dos instrumentos normativos e de acompanhamento das pesquisas arqueológicas que, em duas décadas, aumentaram de cinco para quase mil ações por ano. Entre as principais atividades do Centro estão o desenvolvimento de ações de acautelamento (tombamento e proposição de medidas diversas para a proteção e valorização do patrimônio arqueológico); a autorização e a permissão para realização de pesquisas arqueológicas, o acompanhamento e fiscalização dessas pesquisas; e a implementação de diversas ações de socialização do patrimônio arqueológico”.
O cargo de coordenação geral do CNA/Iphan está vago desde a exoneração de um arqueólogo no fim de março de 2019. Essa vacância preocupa, pois o cargo deve ser ocupado por alguém com capacidade técnica-científica comprovada na área de arqueologia, garantindo a gestão adequada e a preservação de todo o patrimônio arqueológico brasileiro.
A terceira “distração” diz respeito à falta de atualização no principal banco de dados de sítios arqueológicos, o cadastro nacional de sítios arqueológicos (CNSA) do Iphan, ferramenta básica e essencial para a gestão do patrimônio arqueológico. Em 2019 o Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública, ajuizada em Sergipe, em face do Iphan. Segundo a ação do MPF, “verifica-se que, decorridos 60 anos da edição da norma que determinou a criação de um cadastro nacional para os sítios arqueológicos, pouco se avançou. A atuação do Iphan não atende ao princípio da eficiência da administração pública”.
Em conformidade com as referidas leis, o patrimônio arqueológico brasileiro é também componente dos estudos de impacto ambiental. Assim, manter o CNSA atualizado e com informações condizentes com os milhares de sítios arqueológicos já descobertos em território brasileiro significa garantir sua preservação. Em relação a esse ponto, a ação do MPF alegava que a “omissão da autarquia em regularizar o funcionamento do cadastro desses bens acabou por estimular o descompromisso dos órgãos ambientais e dos empreendedores no que se refere à necessária consulta prévia à autarquia como condição para a expedição de licenças ambientais, tal qual exigido pela legislação, no interesse da proteção dos sítios arqueológicos, situação que se verifica em todo o território nacional”.
Segundo o MPF, “empreendedores e órgãos ambientais não fazem prévia consulta ao Iphan com o objetivo de identificar as áreas de interesse arqueológico que coincidam com a área das atividades e empreendimentos a serem licenciados, o que ocorre, dentre outras razões, por conta da insuficiência de dados e da falta de atualização do cadastro nacional de sítios arqueológicos – CNSA – por parte do Iphan”. Para o órgão “esse processo de aperfeiçoamento da sistemática do licenciamento em áreas de interesse arqueológicos somente poderia ser deflagrado a partir da garantia de devida alimentação e cadastro dos sítios arqueológicos, com a conclusão dos procedimentos de pesquisa e resgate”.
Em abril de 2020, juiz federal Edmilson da Silva Pimenta considerou que “o instituto réu tem falhado na sua obrigação de manter atualizado o CNSA; e, com isso, os sítios arqueológicos existentes em todo o país correm grande risco de se perderem, em meio a licenciamentos ambientais também falhos por tal motivo” e, ainda, que “documentação acostada com a peça contestatória não traz a solução do problema, mas apenas relatam intenções administrativas nesse sentido”. Ainda cabe recurso à decisão.
No entanto, parece que é a quarta “distração” a que faz o patrimônio arqueológico virar, literalmente, pó em poucas horas. Pela segunda vez em menos de dois anos, vimos, com revolta, décadas de pesquisas arqueológicas queimando na manhã do dia 15 de junho, quando um dos prédios do Museu de História Natural e Jardim Botânico (UFMG) pegou fogo. Em pouco tempo, as chamas destruíram o que, com muito esforço, persistência e trabalho, a UFMG, pesquisadores, arqueólogos e outros profissionais conseguiram construir, mesmo em um país que pouco investe ou valoriza a ciência e o patrimônio arqueológico.
Não se sabe ainda o que foi realmente destruído pelo fogo pois equipes da UFMG vêm trabalhando nos escombros e ainda fazem levantamentos, mas no prédio atingido, que passou por uma reforma em 2016, estava armazenado o acervo arqueológico mais sensível, como restos esqueletais, material faunístico e acervo vegetal. As peças são provenientes de sítios arqueológicos de diversas localidades, tais como as regiões de Lagoa Santa (MG), do Vale do rio Peruaçu (norte de Minas Gerais), de Buritizeiro (MG), de Montes Claros (MG) e de Diamantina (MG). As atividades de pesquisadores nesses locais, ao longo de anos, resultaram em um dos mais ricos acervos do Brasil referente à arqueobotânica e a restos esqueletais, documentando as primeiras populações americanas.
Se juntarmos à tragédia do incêndio no Museu Nacional da UFRJ (em outubro de 2018), temos que, em menos de dois anos dois acervos importantíssimos para a arqueologia brasileira sofreram com a falta de investimento, assim como continuam nessa situação tantas outras instituições que guardam o patrimônio arqueológico brasileiro, espalhadas pelo país. Somente políticas públicas elaboradas em parceira com os diversos envolvidos com a questão poderão assegurar a preservação. E a pergunta que fica é: o que tem sido efetivamente feito?
A resposta pode vir do que não tem sido feito, ou do que muito morosamente tem sito feito. Em novembro de 2016, por exemplo, o Iphan constatou o dano a 35 sítios arqueológicos localizados nos estados de Goiás, Minas Gerais e Bahia por uma transmissora de energia.
Em dezembro de 2016 foi assinado pelo Iphan e representantes da empresa a “Anuência condicional do Iphan à licença de operação do empreendimento linha de transmissão 500 KV Barreiras II – Rio das Éguas – Luziânia – Pirapora 2“. Esse documento continha o valor e os prazos a serem atendidos: R$ 35 milhões, 90 dias para o Iphan enviar à empresa a minuta do termo de compromisso e posteriores 60 dias para a empresa se manifestar e dar prosseguimento à assinatura do documento[2].
Paralelamente, ocorriam as tratativas quanto às medidas compensatórias, as quais previam o fortalecimento de instituições de guarda nos estados impactados pelo empreendimento, que foram enviadas pelas intuições e estão detalhadas no processo. Entre as medidas estava justamente a construção de edificação – no valor de R$ 7 milhões – para o Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, que abrigaria a reserva técnica do setor de arqueologia.
Com orçamentos, plantas, projetos relativos às ações compensatórias prontos, o Iphan tinha, então, até 11 de abril de 2017 para encaminhar a minuta de termo de compromisso para a empresa[3] – o que foi feito somente em 15 de março de 2019. Apenas em 04 de março de 2020 a empresa enviou carta ao Iphan solicitando a reconsideração do valor do termo de compromisso para menos de R$ 3 milhões, apresentando algumas justificativas.
O último trâmite desse caso é o parecer técnico emitido em 20 de abril de 2020, no qual o técnico detalha todo esse processo e nega as solicitações da transmissora de energia. Porém, desde 20 de abril de 2020 esse parecer ainda não foi enviado à empresa. O pagamento desses 7 milhões já previstos para o museu da UFMG é mais que urgente após a tragédia.
Essas “distrações” com o patrimônio arqueológico brasileiro ficaram mesmo evidentes com a divulgação do vídeo da reunião ministerial realizada no dia 22 de abril de 2020. A SAB emitiu uma nota demonstrando “perplexidade” com as manifestações do presidente, do ministro do Meio Ambiente e do ministro da Educação, Abraham Weintraub.
O presidente se referiu à pesquisa arqueológica prévia nos trabalhos de licenciamento ambiental e ao patrimônio arqueológico demonstrando total falta de conhecimento dos processos e nenhuma preocupação com as heranças culturais deixadas por diversas sociedades que habitaram o solo que hoje chamamos por Brasil. Segundo ele “ O Iphan para qualquer obra no Brasil, como parou a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô!”. Já o ministro Ricardo Salles propôs aproveitar o foco da imprensa na pandemia do coronavírus para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de ministério da Agricultura, de ministério do Meio Ambiente”.
Recentemente, além das descritas, há tantas e tantas outras distrações com o patrimônio arqueológico brasileiro, como a proposta da Lei Geral de Licenciamento Ambiental ou o ataque a profissionais que estavam cumprindo a lei durante as obras da loja Havan em Rio Grande (RS).
Essas “distrações”, a cada ano, vão queimando, triturando, reduzindo a pó os vestígios materiais de diversas culturas que habitam ou habitaram esse território que hoje conhecemos por Brasil. As pesquisas arqueológicas contam histórias que não estão escritas, dando voz a sociedades que foram marginalizadas da dita história do Brasil. Quem sabe não é essa a distração?
Ângelo Alves Corrêa é presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira – SAB. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em arqueologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Notas
[1] Associação civil de caráter científico, de direito privado e sem fins lucrativos, que, há 40 anos, tem por objeto congregar arqueólogos e demais especialistas dedicados ao ensino, à pesquisa e à prática da arqueologia e áreas afins, visando promover o conhecimento e a divulgação de assuntos referentes à arqueologia e ao patrimônio arqueológico.
[2] Disponível neste documento, a partir da página 11.
[3] Ver página 29 deste processo.