Por Dagoberto José Fonseca
O fenômeno das identidades negras estimuladas pelas ações do movimento negro e pelas do Estado tem ganhado cada vez mais espaço na sociedade brasileira. Muitas pessoas, especialmente jovens e adolescentes, que no final da década de 1990 não se consideravam negros, isto é nem pretos e nem pardos, nos primeiros anos do século XXI se afirmam negros.
As comissões de heteroidentificação nas universidades brasileiras e nos concursos para o ingresso no serviço público nacional verificam que muitos pardos se definem como pretos; muitos brancos queimados de sol que antes eram no máximo morenos claros, agora se definem em um passe de mágica como pardos e se lembram de um pai, de uma mãe, de um tio, de uma tia, de uma avó, de um avô, vão buscando uma ascendência negra e até um vínculo com a cultura africana. Vários realçam o cabelo encaracolado; o tom da pele morena; destacam os seus lábios nada protuberantes na busca de conseguirem atender a este fomento identitário outorgado e estimulado pelo Estado Brasileiro, reivindicado e legitimado pelo movimento negro desde os censos de 1990, quando solicitava: “Não deixe sua cor passar em branco”.
O que para muitos estudiosos, militantes, ativistas, órgãos de controle do Estado e agências da sociedade civil é um escárnio, um crime de falsidade ideológica, em alguns casos podemos falar até em formação de quadrilha e de estelionato o que esses jovens, adolescentes e adultos estão cometendo de maneira isolada ou articulada, pois ao buscarem forjar artificialmente uma identidade e um fenótipo estão usurpando o direito outorgado pelo Estado Brasileiro, isto é pelos poderes da República (Legislativo, Executivo e Judiciário) às legítimas e legais demandas históricas do movimento negro brasileiro.
As identidades negras no Brasil, neste início de século XXI, são elaboradas a partir de fatores políticos, de relações sociais, de subjetividades alargadas e superficiais, de identidades vinculadas ao imediatismo do ganho fácil gerando as famosas fraudes nos sistemas de reservas de vagas, pois muitos brancos resolveram aderir ao afro-oportunismo, ao afrobegismo, autodeclarações identitárias e esquizofrênicas que nada têm de republicanas.
Os “brancos da terra” que ao se autodeclaram pardos o fazem enquanto uma ação de afro-conveniência, pois hiperdimensionam aquele avô ou avó, aquele pai ou mãe, aquele parente consanguíneo para justificar a sua autodeclaração parda. Geralmente dizem: “Eu sou o mais escurinho de casa. Lá todos são loiros. Só eu tenho cabelo preto e olhos castanhos. Eles dizem que sou pardo”.
As comissões de heteroidentificação ao entrevistarem um candidato que se autodeclarou preto ou pardo (negro) em sua inscrição para os concursos ou vestibulares, por exemplo, está rediscutindo as identidades negras no Brasil contemporâneo, tendo em vista não somente os critérios fenotípicos que possuem basicamente existência social, não biológica (genética).
Vale destacar que as comissões acima mencionadas não estão discutindo o processo das miscigenações entre asiáticos e europeus, entre asiáticos e indígenas, entre europeus e indígenas, entre oceânicos e asiáticos, entre oceânicos e indígenas, entre oceânicos e europeus. Isto posto não se está discutindo as identidades e os fenótipos desses encontros étnico-raciais, mas aqueles que resultam de relações que envolvem os negros no Brasil e que têm como resultante os problemas advindos dos racismos contemporâneos.
Para tanto, os membros das comissões necessitam conhecer a realidade cultural, psíquica, econômica, geográfica e política de um país como o Brasil que tem dimensões continentais, mas também para reconfigurar o conceito de miscigenação e de mestiçagem a partir dos processos migratórios europeus e dos tráficos escravistas a que foram submetidos os africanos em um período de quase 400 anos. Além do que precisam considerar a descendência indígena em grande parte da população brasileira.
De outro lado, as pessoas ou os candidatos na sua imensa maioria, no ato de assinalarem o que são, segundo suas definições de como se autodeclaram, primeiro excluem o que não são para depois se definirem. Aí que surge o grande dilema: “se não sou isso, sou aquilo”. Mas, não há somente branco ou preto, enquanto categorias e cores no Brasil. Há um indígena como terceira possibilidade censitária, portanto como uma terceira identidade étnico-racial ou como balizador do quesito cor/raça. Porém, há, ainda, a possível identidade curinga, a meio termo que engloba todas as demais e é aparentemente a facilitadora e que resolve todos os complexos dilemas identitários. É o pardo no Brasil.
A categoria censitária pardo é a que mais aparece nas autodeclarações identitárias dos concursos públicos e vestibulares porque ela aprisiona todas as demais nela e torna o candidato com dúvida a se apegar nela, pois se identifica – como um não preto, um não branco, um não amarelo e um não indígena. Daí se sente mais confortável e acomodado a assinalar – pardo. Essa é uma estratégia de subterfúgio muitas vezes – “o não saber o que sou, me dá a condição de ser todos”.
O candidato ou pessoa ao se autodeclarar de cor parda não está geralmente fazendo uma escolha política definitiva no que toca a sua identidade étnico-racial. A cor parda sugere que o candidato pode se posicionar como livre, conjuntural, conjectural, episódico, descomprometido com os polos cromáticos, mas ao mesmo tempo ele se acomoda em uma síntese que é apenas fuga de ser um não ser, um meio de existir na inexistência, posto que o pardo pode ser todos e ninguém ao mesmo tempo, posto que é a invenção da invenção sociocultural brasileira e de sociedades multiétnicas e plurirraciais, bem ao gosto das nacionalidades modernas e das identidades pós-modernas referenciadas por Hall (2005); Anderson (2008), Baudrillard (1990).
Vale frisar que o pardo em todas as sociedades multiculturais, pluriétnicas e hiper-racializadas está presente e na brasileira não é diferente. Esse sujeito (candidato, individuo, pessoa) que é fruto de múltiplas miscigenações tem sido encarado como um problema epistemológico para acadêmicos, instituições, pesquisadores, governos e Estados em decorrência de ele ser esse curinga que pode ir para qualquer lado do espectro cromático e político identitário. Em outro sentido, ele pode ter com essas características fenotípicas vantagens sociais em decorrência de políticas de ações afirmativas das mais diversas modalidades, por justamente se colocar em diferentes posições no jogo das relações sociais quando o critério ou um dos critérios for a cor/raça (FONSECA, 2009). Posto que em sociedades multiétnicas e hiper-racializadas, ele, enquanto candidato é o padrão social e fenotípico. Não está fora da curva por não ser exceção, ele é a regra. Não é branco, mas também não se assume preto, por que não é. O racismo sofrido por ele existe, é real, mas também é fluido. Diríamos no caso brasileiro, ele é atingido por um racismo fugaz que às vezes pega, mas às vezes não, pois depende da conjuntura social, política, econômica etc. em que estará envolvido.
As relações sociais e étnico-raciais no Brasil são complexas e as comissões de heteroidentificação das autodeclarações têm o poder instituído de questionar, problematizar e até de negar a identidade autoatribuída/autodeclarada pelo candidato a partir de suas características fenotípicas, posto que as comissões são heteroclassificatórias ou de reconhecimento social, ou seja os candidatos são analisados como o faz a sociedade a partir do seu fenótipo. Mas como foi dito antes não é um simples e reducionista ato de ver o candidato, em inúmeros concursos há entrevistas com os mesmos para se saber como construíram essa identidade autoatribuída a partir do seu fenótipo. Justamente porque o fenótipo que o candidato possui também é um construto social e pessoal.
A complexidade sociocultural brasileira no que tange a identidade negra, como se pode verificar, tem diversas nuances entre as quais as questões que envolvem as características fenotípicas, pois elas também são dinâmicas. O que faz com que pessoas com o nítido fenótipo indígena, seja nos cabelos, na cor da pele, nos lábios, no nariz, queiram em vários concursos públicos se autodeclararem como negros em decorrência de seu fenótipo, que na imensa maioria das vezes, somente trazem a cor parda, mas não são negros no sentido estrito do termo.
No Brasil nitidamente temos um racismo que se origina na marca, no fenótipo, como constatou Oracy Nogueira (1985, 2006). O racismo de marca no Brasil se deve ao fato de que, em função da miscigenação, atingiu e continua a fazê-lo naqueles que mantêm as suas marcas fenotípicas e culturais próximas aos valores, crenças e traços oriundos dos africanos escravizados no Brasil.
Portanto quanto mais claro menos ele será objeto do racismo cotidiano e institucional presente no país, e o contrário é verdadeiro quanto maior a quantidade de melanina e dos demais traços fenotípicos da população negra ele for portador em seu corpo, mais o racismo vai atingi-lo de modo violento e desumanizador. Portanto, deve ser ele (negro) em decorrência do racismo e de sua história de vulnerabilidade e dívida social, tornado-o sujeito-cidadão legítimo ao atendimento do sistema de reserva de vagas, das cotas, nas universidades, nos órgãos públicos e nas empresas privadas, especialmente porque esse sistema está vinculado às políticas de equidade que são medidas também de pedagogia e de correção social no país.
É importante destacar, novamente, que nem todos os autodeclarados pardos e nem todos os aparentemente pardos são negros. Os diversos editais de concursos públicos apresentados no Brasil têm apresentado de maneira explícita que as ações afirmativas (as pontuações acrescidas e os sistemas de reservas de vaga) para provimentos de cargos são destinadas ao combate ao racismo que atinge a população negra, à busca da equidade racial. Deixando explícito que essas ações são destinadas ao negro (pardo ou preto). O que significa que não é qualquer pardo, mas um pardo com o fenótipo da população negra.[1] Não para o pardo com as características fenotípicas do indígena ou, ainda, aquele com nítidos traços árabes, ou melhor, dos povos do médio oriente, inclusive na tonalidade de pele, ou, ainda, os do sul da Europa – os povos mediterrâneos.
O que está em causa não é o sentimento de pertencimento étnico-racial, mas se o indivíduo pode ou não sofrer (sofre ou sofreu) a violência do racismo em sua vida pelos traços fenotípicos que porta em seu conjunto cor-corpo. Até porque é sobre este aspecto (cor e demais traços fenotípicos) que a incidência do racismo se faz presente na sociedade brasileira; parafraseando Oracy Nogueira (1985), no Brasil temos um racismo de marca e não de origem como nos Estados Unidos da América do Norte, por exemplo.
Em suma, não se trata no Brasil de pensarmos o sistema de reserva de vagas ou outros sistemas nas universidades a partir das bases genotípicas do indivíduo, mas de seu fenótipo (PENA & BORTOLINI, 2004; PINHO, 2008). Neste sentido, as comissões de heteroidentificação não carecem de médicos dermatologistas e de geneticistas. Elas necessitam de cientistas sociais, especialmente de antropólogos e de sociólogos que estudam séria e criticamente a diversidade sociocultural e a dinâmica socioeconômica do país, atentos às populações africanas e afro-brasileiras como está presente na subárea da plataforma do Currículo Lattes.
Dagoberto José Fonseca é livre docente do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (campus Araraquara) e Serviço Social (campus Franca) e coordenador científico do Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão (NUPE)
Referências
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2008.
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus Editora, 1990.
FONSECA, Dagoberto José. Políticas públicas e ações afirmativas. São Paulo: Editora Selo Negro, 2009.
BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.
NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T.A. Queiroz, 1985.
NOGUEIRA, Oracy. (2006), Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: Sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 19, n.1. 287-308. Disponível: <http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19n1.pdf>. Acesso: 12/04/2022.
PENA, S. D. J.; BORTOLINI, M. C. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 31-50, 2004.
PINHO, Osmundo A. & SANSONE, Lívio (Orgs). Raça: novas perspectivas antropológicas. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008.
[1] A escolha técnica, jurídica, social, cultural e política pela adoção do conceito de pardo-negro é sustentada pelo arcabouço presente no âmago do Estatuto da Igualdade Racial Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que tem como objetivo a Promoção da Igualdade Racial e a Efetivação de Oportunidades.