Por Ana Augusta Odorissi Xavier e Daniel Pompeu
Desde o design das embalagens de alimentos até a formação de movimentos sociais as cores ajudam a indicar diferenças entre grupos ou uni-los em torno de uma causa comum.
Vermelho paixão, azul bebê, verde bandeira. Para além dos mecanismos de percepção neurológica das cores, o ser humano atribui significados e valores a elas e as usa como símbolo. Amarelo é associado à riqueza e ao dinheiro, branco é utilizado para evocar a paz e o preto relaciona-se com o luto. Outras cores são classificadas entre “quentes” e “frias”. A Pantone, que produz um dos catálogos de cores mais utilizados no mundo, elegeu o “azul clássico” como a cor de 2020. De acordo com a justificativa, a cor está associada a uma “promessa de proteção” e à formação de uma base sólida e sustentável para a construção da nova década.
O hábito de atribuir significado às cores pode ser entendido também como um processo de amadurecimento cognitivo e de associação a fenômenos ao nosso redor. “Sabemos se vai chover ou não pela cor do céu e das nuvens, sabemos se certas frutas estão maduras por suas cores, e assim por diante. E como nossa percepção do ambiente é um processo que envolve interpretação, nós precisamos dar significado às cores, assim como às formas, texturas e demais estímulos visuais”, explica Carla Pereira, professora da pós-graduação em design da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
A professora lembra que a vida social está intrinsecamente associada aos significados das cores e sua interpretação afeta as mais diversas áreas, da saúde à economia. Como exemplo, ela cita o uso de cores específicas em ambientes hospitalares, devido à interpretação emocional feita pelos pacientes, o uso de certas cores por grupos para transmitir mensagens e embalagens com cores que afetam a perspectiva do consumidor sobre aquele produto (e consequentemente sua venda).
Em sua tese de doutorado, Pereira investigou o uso das cores em embalagens e procurou entender como tal recurso é utilizado em produtos brasileiros para transmitir determinados significados ao consumidor. Ao analisar mais de 600 embalagens de alimentos, a pesquisadora descobriu uma nova tendência: se antes as embalagens abusavam de tons que despertassem o apetite ou fizessem o consumidor associar a embalagem ao produto no interior, agora são utilizadas para atingir grupos específicos e provocar identificação. O café não precisa ter uma embalagem marrom, ela pode ser verde para indicar que se trata de um produto orgânico, ou azul escuro, para demonstrar o caráter gourmet.
“É uma mudança considerável porque essa abordagem simbólica da cor era utilizada para outros tipos de produtos, mas não para os alimentos. Nesses, o design tradicionalmente privilegiava as associações entre cores e sabores ou entre cores e tipos de produtos, como verde para o sabor limão ou branco para leite. Em outras palavras, as cores das embalagens de alimentos, de certo modo, representam grupos ou subgrupos sociais: as mulheres; os ‘verdes’ – ecologicamente engajados; ‘os VIPs’; os ‘saudáveis’, e assim por diante”, explica.
Cores que se tornaram símbolos de causas e movimentos
Enquanto o design de embalagens descobre o poder de uso das cores para identificação de grupos, a bandeira LGBT+, ou a bandeira do arco-íris, nasceu já com esse propósito em 1978. Criada pelo designer Gilbert Baker para o dia da liberdade gay de São Francisco, nos Estados Unidos, a bandeira tinha originalmente oito cores (atualmente são seis), simbolizando a diversidade humana: rosa (representando a sexualidade), vermelho (vida), laranja (cura), amarelo (luz), verde (natureza), turquesa (arte), azul (serenidade) e roxo (espiritualidade).
No mesmo ano de criação do símbolo, Baker e voluntários o pintaram na maior bandeira já criada até o momento. O ato comemorava o aniversário de 25 anos da revolta de Stonewall, conjunto de manifestações da comunidade LGBT+ após violentas invasões de policiais ao bar Stonewall Inn, em Nova Iorque. O caldo de demandas políticas pelos direitos LGBT+ e a criação de um símbolo que representasse a comunidade possibilitou o surgimento das paradas LGBT+, que se espalharam pelo mundo durante a década de 1990, como explica Vera Lucia Marques da Silva, professora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz e pesquisadora de movimentos sociais.
“A criação da bandeira ressoa no mundo inteiro. Levantar uma bandeira para o movimento é sair do armário e dizer ‘sim, existimos’. O slogan na época era que “somos seu irmão, seu primo, somos seus médicos”. Gera esse sentimento de comunidade, de pertencimento. Mesmo que eu não seja parte dessa minoria, compreendo que suas demandas são legítimas”, disse. De acordo com Silva, a utilização do arco-íris como símbolo remete a um fenômeno natural e universal, provocando a reflexão sobre a manifestação da diversidade de gênero e sexualidade ao redor do mundo.
Posteriormente, outras bandeiras representando siglas específicas da comunidade foram criadas, como a bandeira bissexual (de cores magenta, azul e lavanda – a terceira, sendo a mistura das duas primeiras, indica a atração pelos dois gêneros) e a bandeira transgênero (com duas faixas azuis, duas faixas cor de rosa e uma branca ao centro, simbolizando a transição entre os gêneros masculino e feminino ou a falta de um gênero binário). O surgimento de novas bandeiras dentro do grupo é reflexo de um processo de fortalecimento da identidade nos movimentos minoritários. “Se a identidade a princípio era LGBT, por outro lado existe uma diversidade de sexualidade de cada um, em uma perspectiva individual”, comenta.
Contexto político e social
Ao longo da história, as cores vêm sendo utilizadas em diferentes contextos, como fator de distinção e reconhecimento entre movimentos políticos e sociais. “O sentido revolucionário da cor vermelha, a cor do sangue, tem significados construídos historicamente, de acordo com tradições culturais”, explica Márcia Regina da Silva Ramos Carneiro, doutora em história social e docente da Universidade Federal Fluminense (UFF). Essa cor aparece em várias bandeiras nacionais como símbolo de uma revolução violenta ou radical na passagem do país para a condição de nação. “A França possui o vermelho devido à revolução burguesa de 1789; os Estados Unidos constituíram-se como nação após a guerra de independência; o Japão passou pela revolução Meiji, de abertura ao modelo industrial ocidental, rompendo com estruturas políticas e econômicas seculares”, esclarece.
Já na bandeira comunista, que é totalmente vermelha, Carneiro explica que a simbologia da cor está relacionada a uma ruptura absoluta, uma revolução radical da humanidade guiada pela vanguarda revolucionária, personificada no Partido Comunista. Essa ruptura culminaria em uma sociedade sem distinção de classes ou nações, constituída por trabalhadores capazes de se autogerir e caracterizada pela ausência de qualquer autoridade superior, representada pelo Estado.
A bandeira negra anarquista, da mesma forma, representa a inexistência do Estado, mas o processo de destruição de autoridade, nesse caso, viria diretamente da organização dos trabalhadores e não através do Partido Comunista. “O negro, nesse sentido, simboliza ausência, negação de qualquer autoridade. Ao mesmo tempo, significa a unidade dos trabalhadores, totalmente negra”, diz Carneiro.
A cor preta também ficou marcada nos uniformes de grupos paramilitares ligados a movimentos fascistas na Europa, como os “camisas negras” de Mussolini na Itália, e os integrantes da SS (Schutzstaffel), guarda pessoal de Hitler durante o nazismo alemão. Os elementos da SS eram escolhidos dentre os integrantes da tropa da SA (Sturmabteilung), organização paramilitar do Partido Nazista que vestia uniformes marrons. A farda preta indicava a condição de elite do grupo, que era eleito por seleção eugênica e devia ser “racialmente adequado”.
Inspirada na uniformização dos fascistas europeus, a militância da Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento ultranacionalista e conservador liderado por Plínio Salgado na década de 1930, adotou o verde como cor de referência. “O uso da camisa verde para os homens e da blusa verde para as mulheres era um componente definidor de um movimento nacionalista brasileiro em que se evocava a cor dominante da bandeira nacional como significante do nacionalismo, um dos principais elementos motivadores à participação militante; a cor verde representava a ‘autenticidade’ e ‘especificidade’ brasileira em relação aos fascismos europeus”, afirma Carneiro. Os “galinhas verdes”, como ficaram conhecidos os militantes da AIB, eram obrigados a usar o uniforme tanto em ocasiões de atividades da AIB quanto para cerimônias religiosas, e a desobediência a essa regra era considerada transgressão.
Calendário de cores
O apelo das cores também está presente em campanhas de saúde, em que os meses do ano foram “coloridos” para chamar a atenção da população para questões como câncer, diabetes, saúde mental e doação de sangue. A onda dos meses coloridos iniciou com o Pink October (outubro rosa) na década de 1990 nos Estados Unidos, quando a Fundação Susan G. Komen, maior organização relacionada ao câncer de mama do país, distribuiu laços cor de rosa aos participantes de uma corrida em favor de vítimas desse tipo de câncer.
No Brasil, o outubro rosa chegou na década seguinte, em 2002, quando o Obelisco Mausoléu aos Heróis de 1932, também conhecido como Obelisco do Ibirapuera, se iluminou de rosa em uma ação organizada por mulheres atuantes na causa do câncer de mama em parceria com uma marca de cosméticos. Desde então, o calendário se coloriu e o janeiro se tornou branco (saúde mental), junho vermelho (doação de sangue), setembro amarelo (prevenção ao suicídio) e novembro azul (saúde do homem).
Embora não exista uma entidade que coordene ou centralize as ações realizadas em cada mês temático, o Ministério da Saúde inclui alguns desses eventos em seu Calendário da Saúde e, juntamente com entidades como o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), oferece material de apoio e sugestões sobre abordagens e temas específicos a serem trabalhados.
Ricardo Matos de Araújo Rios, mestre em relações internacionais pela Universidade de Coimbra e pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e coordenador de comunicação do Hospital Ibiapaba Cebams, centro de referência em oncologia em Barbacena, Minas Gerais, conta que mais de cem mil pessoas são sensibilizadas anualmente pelas campanhas do outubro rosa e novembro azul realizadas na instituição. “Nossas pesquisas internas indicam que em outubro e novembro há um pico gigantesco de procura de informações sobre os cânceres de mama e próstata por parte das pessoas. Isso se reflete na missão principal das campanhas, que é a conscientização dos riscos das doenças”.
Entretanto, Rios alerta sobre a profusão das campanhas meses+cores, já que atualmente há meses relacionados com até três causas diferentes: “Pode atrapalhar em vez de ajudar. A existência de muitas campanhas de diversas cores pode comprometer a efetividade da comunicação. Isso confunde a cabeça do público e pode ser fatal no processo de conscientização. Setembro amarelo, outubro rosa e novembro azul funcionam porque são trabalhados na população há mais tempo e já têm eficácia na divulgação”, defende.
Ana Augusta Odorissi Xavier é farmacêutica e tecnóloga em alimentos pela UFSM, mestre em ciência de alimentos pela UEL e doutora em ciência de alimentos pela Unicamp, onde atua como pesquisadora. Atualmente é aluna do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Daniel Pompeu é jornalista e aluno do curso de especialização em jornalismo científico e cultural (Labjor/Unicamp).