Por Luanne Caires
Algoritmos computacionais ganham espaço no mundo artístico e levantam debate sobre as definições e possibilidades da arte enquanto atividade humana.
432 mil dólares. Esse foi o valor pago pela tela Retrato de Edmond de Belamy em outubro deste ano durante um leilão na prestigiada casa Christie’s. A venda não seria motivo de alvoroço caso a obra não integrasse uma série de retratos gerados por inteligência artificial. O processo de criação se baseia em um algoritmo que produz imagens a partir de um banco com mais de 15 mil retratos feitos entre os séculos XIV e XX, levantando a controvérsia a respeito do que pode ser considerado arte e se nossa relação criativa com ela é de fato uma das características que nos faz humanos.
No caso do Retrato de Edmond de Belamy, o algoritmo foi desenvolvido pelo coletivo de arte francês Obvious, que usou o modelo de rede adversária generativa (GAN, do inglês generative adversarial network). O modelo foi proposto por Ian Goodfellow, membro da equipe de inteligência artificial do Google, em colaboração com pesquisadores no Departamento de Informática e Pesquisa Operacional da Universidade de Montreal. Em artigo publicado em 2014, Goodfellow e equipe descrevem o funcionamento da rede adversária generativa como uma competição entre dois algoritmos: um que gera um novo dado a partir de um conjunto de dados disponíveis e um que discrimina se o dado gerado é de fato criado pelo algoritmo gerador ou faz parte do banco de dados original.
No caso da produção artística, o processo começa com a criação de um banco de dados com uma grande quantidade de imagens que tenham características visuais comuns. A partir do banco disponível, o algoritmo gerador produz uma nova imagem que compartilhe as características de interesse e, em seguida, o algoritmo discriminador tenta discernir se a imagem produzida foi feita por um humano ou por uma máquina. Uma vez que o algoritmo discriminador seja “enganado” e retorne que a imagem foi feita por um humano, sua resolução é aumentada para que se tenha uma versão da obra em alta definição. Só então a imagem é impressa em tela e emoldurada.
Afinal, de quem é a autoria?
Apesar de a assinatura na tela leiloada ser uma fórmula matemática que demonstra a relação entre os algoritmos gerador e discriminador, é claro que por trás do algoritmo há sempre uma mão humana. A interface de autoria entre o humano e o computacional levanta questões sobre quem é de fato o autor da obra: o algoritmo que a gerou ou a pessoa que programou o algoritmo? Para o professor Cleomar Rocha, pesquisador da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG), o que mais importa não é a discussão da autoria, mas sim do objeto estético, que pode ser estendido ao conjunto formado pelo algoritmo, obra final e elementos da interação. “Do mesmo modo que a autoria de um poema não é do lápis, caneta, máquina de escrever ou software de editor de texto, não haveremos de atribuir autoria de um algoritmo poético a uma máquina. A questão que interessa é a identificação do objeto estético, nesse caso entendido ao algoritmo, às peças por ele criadas e às ações estéticas derivadas da interação, seja exercida por humanos ou por não humanos”, diz ele.
Legalmente, porém, o algoritmo é visto apenas como uma ferramenta usada por artistas e programadores, do mesmo modo que uma câmera é utilizada por fotógrafos. Os direitos de autor são sempre reservados aos humanos responsáveis pelo desenvolvimento do código de inteligência artificial. Além do código, é preciso considerar o material utilizado na construção do banco de dados, bem como as características finais da obra gerada. Se as imagens que compõem o banco possuem direitos de autor e a obra final apresenta semelhanças claras com essas imagens, podem surgir conflitos legais a respeito dos direitos da obra. Para evitar problemas como esses, muitos desenvolvedores de arte tecnológica preferem utilizar grandes repositórios de imagens e sons de domínio público, como o GoogleArt e ImageNet.
O fator humano
O posicionamento legal a respeito da autoria reflete a independência limitada dos algoritmos. Os avanços da computação em tentar replicar processos do cérebro humano, como aprendizado por experiência e resolução de problemas, são inegáveis, como demonstram as áreas de redes neurais, aprendizado por máquina e aprendizado profundo. Mas se engana quem acha que o desenvolvimento de algoritmos como a rede adversária generativa representa a inteligência artificial geral, ou seja, a inteligência do livre-pensar e do aprendizado sem treinamento. Esse tipo de inteligência artificial, inculcado em nossas mentes por grandes modelos da ficção, como o C-3PO de Star wars, ainda não existe no mundo real.
Na prática, esse tipo de algoritmo precisa ser treinado a produzir imagens e expressões artísticas específicas, e esse treinamento é feito por humanos. Assim, a capacidade artística dos algoritmos, em geral, é limitada: eles aprendem sobre um tipo de específico de padrão e depois o reproduzem de uma forma nova. Mas treinar o algoritmo a produzir um padrão distinto do aprendido envolve uma reprogramação humana do software. É como se o sistema que gerou o Retrato de Edmond de Belamy não fosse capaz de gerar uma paisagem como as de Claude Monet, a menos que alguém o reprogramasse para isso.
Outra limitação importante é entender que o resultado da inteligência artificial depende das regras do jogo definidas pelo programador e que, por isso, não é uma produção independente, mas sim um mecanismo que reproduz os vieses de seus desenvolvedores.
Por essas e outras razões, ainda existe controvérsia a respeito de as obras geradas por inteligência artificial serem arte. Os críticos alegam que, para ser considerada arte, uma obra teria que ser produzida pelas máquinas de maneira autônoma, ativa e independente, atendendo a um senso próprio de estética. Para Cleomar Rocha esse tipo de classificação é problemático, porque a definição de arte nunca é delimitada, justamente por ser uma condição da cultura e, como tal, ser mutável e aberta. “Se no nascimento do cinema ou da fotografia, ambos foram rechaçados como arte, sendo legitimados como tal algum tempo depois, não haveríamos de julgar o que cabe à cultura, e somente a ela, definir. E o que temos vivenciado é a legitimação, justamente pelo escopo tecnológico caracterizar nosso tempo, da arte tecnológica, mesmo que produzida a partir da inteligência artificial, programada pelo espírito inventivo do artista, que cria algoritmos estéticos”, explica Cleomar.
Outro argumento a favor de se classificar a arte tecnológica como arte envolve o fato de que um algoritmo é simplesmente um conjunto de regras que determinam uma forma específica de se produzir algo. E a adoção de regras e diretrizes caracteriza várias atividades humanas, inclusive movimentos artísticos ao longo da história. Sob esse ponto de vista, defendido por Cesar Baio, professor do Instituto de Artes da Unicamp, não faz sentido pensar em uma arte feita só por humanos ou só por máquinas, sendo necessário superar a ruptura histórica que existe entre aspectos considerados humanos e aqueles considerados técnicos. “Assim como nós somos parte automatizados por padrões culturais que se repetem, utilizamos instrumentos que ampliam nossas ações, fazemos uso de elementos (químicos) que não fazem parte da composição original do nosso corpo, a máquina também é um artefato cultural como tantos outros e, como tal, é criada a partir de um modo humano de entender e existir no mundo”, afirma Cesar.
Diversidade de formatos e de inspirações
Além da rede adversária generativa em Retrato de Edmond de Belamy, outros sistemas computacionais podem ser usados na arte tecnológica. É o caso da inteligência artificial baseada em árvore de decisões, utilizada pelo artista grego Theo Triantafyllidis, e das obras que envolvem chatbots, de artistas como Martine Rothblatt e Lynn Leeson. Os chatbots são sistemas de processamento de linguagem usados em assistentes digitais como a Siri, da Apple.
O encontro do digital com o analógico também pode conferir uma perspectiva poética a elementos do cotidiano. Misturando aprendizado artificial, o movimento da Avenida Paulista e o desenvolvimento de plantas, o grupo Poéticas Digitais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), criou o projeto Amoreiras, em que árvores vibravam em resposta a fatores de poluição sonora. Na mesma linha, o ferramental tecnológico é capaz de transformar em arte a direção do vento, os movimentos de abelhas em colmeia e a degradação de livros por fungos.
A arte tecnológica também pode ser uma forma de criticar padrões e comportamentos sociais vigentes. Em uma série de projetos como o Identidades Coletivas e o Boa noite, senhor Orwell, Cesar Baio discute sistemas automatizados de vigilância e controle social. Para ele, embora a tecnologia seja geralmente associada a algo objetivo e ideologicamente neutro, a ciência e a tecnologia são resultado de decisões estratégicas, contextos históricos e interesses presentes nas estruturas de poder. “Minha poética está relacionada com desmontar estas máquinas, revelar os sistemas de valores, as intenções e as ideologias que geralmente ficam escondidas nelas. Faço isso criando experiências lúdicas. Trabalho este aspecto lúdico como procedimento artístico de um ‘jogo contra o aparato’, como um recurso de linguagem que desmonta a estrutura dos discursos codificados em tais tecnologias, mas o jogo aparece muitas vezes também como um elemento estético proposto a quem participa da obra”, conta Cesar.
A tecnologia influencia a arte e a arte influencia a tecnologia
Mas não é só a tecnologia que influencia a arte. O caminho contrário também ocorre, com produções artísticas impulsionando o desenvolvimento de novos recursos computacionais que, muitas vezes, ganham valor comercial rapidamente. “Esse modelo de inovação é análogo ao que ocorre nas produções de animação computacional, desenvolvidas em estúdios de animação, e que depois tornam-se softwares para o mercado de animação”, explica Cleomar.
Artistas e pesquisadores também têm estabelecido cooperações em instituições científicas, como forma de compartilhar diferentes visões criativas. De um lado, os artistas utilizam elementos da pesquisa como inspiração para suas obras e, do outro, os pesquisadores ganham um novo olhar para formular questões, hipóteses e métodos inovadores. Um exemplo é o programa de residência Scientific Delirium Madness (Loucura do Delírio Científico, em tradução livre), da organização Leonardo/Sociedade Internacional de Artes, Ciências e Tecnologia (ISAST). Neste programa, seis artistas e seis cientistas participam de uma residência com um mês de duração na Califórnia.
Luanne Caires é bióloga e mestre em ecologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente faz especialização em jornalismo científico no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor – Unicamp) e integra o programa Mídia Ciência (Fapesp).