Para a especialista em adaptação urbana às mudanças climáticas, é essencial que essas áreas sejam reflorestadas
Por Fernanda Pardini Ricci
Imagem: Sérgio Souza / Pexels
Enquanto os olhares de todo o mundo se voltam para a Amazônia na COP 27 – Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a ComCiência conversou com a professora Denise Duarte, da FAU-USP, sobre a importâncias das áreas urbanas e periurbanas, aquelas que ficam na transição entre a urbana e a rural, diante dos desafios das mudanças climáticas.
Engenheira civil, com mestrado, doutorado e livre-docência em arquitetura e urbanismo, Duarte coordena três projetos de pesquisa sobre adaptação das cidades à mudança do clima e integra o projeto Biota Síntese, que tem o objetivo de subsidiar políticas públicas com foco em soluções baseadas na natureza. É também membro da International Association for Urban Climate (IAUC) e da Coalizão Ciência e Sociedade. Atuou como expert reviewer para o IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.
Qual a importância de pensar as áreas urbanas diante das mudanças climáticas?
Elas abrigam mais de 50% da população mundial. Na América Latina e no Brasil, 84% da população, e no Estado de São Paulo esse índice chega a 96%. Há, então, muito o que se fazer nas áreas urbanas, porque é onde as pessoas estão, onde vão sofrer os impactos e precisam de oportunidades de adaptação. Uma outra questão é que há uma sobreposição de efeitos de aquecimento nas áreas urbanas, que torna tudo muito mais dramático. Fala-se muito em ilha de calor, mas há outros fenômenos, decorrentes ou não da urbanização, acontecendo simultaneamente, como aquecimentos diferenciais diurnos, em função da morfologia e materiais das construções, dos pavimentos, dos edifícios, das coberturas.
Parte desse aquecimento tem relação com o desenho da cidade e com a proporção de infraestrutura verde [vegetação] e azul [corpos d’água] em relação à infraestrutura cinza [edificações e superfícies construídas de forma geral]. Temos um desbalanço climático e microclimático da cidade que é muito evidente, e isso é um fator de estresse térmico para o corpo humano.
O projeto Biota Síntese, com o qual você colabora, destacou as regiões periurbanas, na transição entre o urbano e o rural, como uma área de interesse para a regeneração de áreas degradadas. Como a vegetação periurbana pode contribuir para o microclima da cidade?
Poderíamos ter na vegetação periurbana vários bolsões microclimáticos que funcionariam como espaço de adaptação. Na literatura internacional encontra-se muito o termo cooling place, um “oásis”, um espaço de resfriamento. Para os Estados Unidos e o Canadá, o cooling place urbano, em sua maioria, é um edifício fechado com ar-condicionado. Na Europa o entendimento é muito mais voltado para áreas abertas, com infraestruturas verdes e azuis. Pela proximidade que o periurbano tem das cidades, é possível criar vários bolsões, vários espaços menores e mais bem distribuídos que funcionariam como cooling places. Uma má distribuição dessas amenidades microclimáticas definitivamente não funciona para a adaptação, que precisa funcionar onde as pessoas estão.
Esse periurbano muitas vezes está nas bordas de bairros densamente ocupados e pode prover esses bolsões de adaptação. Se essa vegetação que começa nas bordas for adentrando a cidade, mesmo que seja um pouco mais rala e não tão densa como nas áreas periurbanas, isso seria um benefício enorme na vida das pessoas.
Essa vegetação poderia prover uma série de serviços ecossistêmicos, podendo ser também áreas de lazer, de descanso de fim de semana, quase um refúgio microclimático. Mas isso precisa vir junto com ações de mobilidade, transporte público inclusivo.
A questão do transporte até essas áreas é algo muito importante, então?
Certamente. Essas ações, do ponto de vista do benefício que proveem e do número de pessoas que afetam positivamente, precisam estar bastante atreladas aos deslocamentos da vida diária, à mobilidade. É por isso que pensamos nos eixos de estruturação urbana, onde estão os maiores investimentos em transporte público, as principais estações de transporte.
Vemos em algumas cidades europeias, por exemplo, pessoas com equipamento de esqui no metrô. Isso é possível porque elas chegam de metrô até a estação de esqui mais próxima, nos arredores da cidade, ou o usam para uma conexão importante para chegar até lá. Esse lazer fora da cidade, ou fora da área mais densamente urbanizada, é muito comum e muito acessível por um transporte de massa. As ações precisam estar concatenadas.
É necessário pensar em soluções que fiquem mais próximas aos percursos diários das pessoas?
Isso. As oportunidades de adaptação precisam estar onde as pessoas estão. Imagine uma onda de calor, que pode acontecer a qualquer momento. É na vida diária que as pessoas vão sofrer os estresses térmicos, que vão muito além de questões de conforto ambiental, são questões de saúde.
Há estudos mostrando de forma muito clara as mortes excedentes durante ondas de calor, só que muitas vezes essas mortes são computadas como infarto, AVC, ou alguma outra causa. Mas quando há um estudo consistente vemos que a ligação é muito clara com momentos extremos de calor.
Então, além do momento do lazer, o foco é a vida diária das pessoas, de forma que ao fim do dia possam chegar numa dessas áreas, ter um tempo de recuperação do estresse térmico, algumas horas para o corpo se refazer, se recuperar.
Em São Paulo, por exemplo, e outros lugares, os parques são fechados à noite. Por outro lado, várias cidades europeias e asiáticas têm planos climáticos de verão. Em Paris, pelo Heat wave plan, uma das primeiras medidas é que parques não podem fechar à noite durante o verão.
Essas áreas periurbanas e rurais próximas aos grandes centros urbanos, como a Cantareira e a zona sul de São Paulo, também prestam outros serviços ambientais para a cidade, como a provisão de água potável. Quais são as pressões que ela sofre por conta dessa proximidade?
No entorno da região metropolitana de São Paulo há pressões de naturezas diferentes. Por um lado, a pressão de alto poder aquisitivo, para condomínios fechados e outros usos privados; e por outro, pressões para a ocupação informal – e as duas acabam levando à supressão de vegetação. Nos últimos tempos temos também a atuação de milícias, de crime organizado. Isso ficou muito claro com um relatório que o ex-vereador Gilberto Natalini publicizou há cerca de dois anos.
Em alguns dos empreendimentos para a alta renda, em condomínios fechados, há um verde privado, não necessariamente provendo os serviços ecossistêmicos que poderia prover. Além disso, os trabalhadores desse tipo de empreendimento, que na maioria das vezes vêm de muito longe, não usufruem do verde na sua vida diária.
No outro extremo, temos a ocupação informal por pressão da falta de moradia, em áreas de risco, ou que não são propensas à ocupação, na maioria das vezes em margens de córregos e de rios e em áreas de muita declividade, sujeitas a deslizamentos. Há a supressão de vegetação, expandindo cada vez mais essas áreas desmatadas para além dos limites da cidade.
E como fica esse equilíbrio entre urbano e periurbano, pensando na restauração necessária de áreas verdes para o provimento de serviços ambientais?
Quando olhamos para o periurbano, precisamos perguntar: Quem vai usufruir? Quem vai chegar? Quem vai usar? Como é a dinâmica entre urbano e periurbano?
A tese de doutorado do professor Anderson Kazuo Nakano mostra que São Paulo é uma cidade oca. Há muita vacância em edifícios – depois da pandemia, então, mais ainda – e algumas áreas centrais onde apartamentos muito pequenos são vendidos a peso de ouro. Parte da população de maior poder aquisitivo quer sair e ir para um condomínio fechado. Ao mesmo tempo, a população mais pobre não consegue viver nas áreas mais centrais, sendo expulsa também. É muita gente sendo expulsa ou muita gente querendo sair por razões distintas.
Precisamos encontrar formas de viabilizar moradia para a população nas áreas mais centrais, mais urbanizadas, onde isso é pertinente ao modo de vida urbano, ao trabalho, ao uso do transporte público, à mobilidade ativa, à vida diária das pessoas. E prover ou propor os incentivos necessários para a restauração das áreas periurbanas, para restaurar de forma muito mais qualificada do que são hoje, como em muitos condomínios fechados, por exemplo, inacessíveis à maioria da população e muito aquém dos serviços ecossistêmicos que poderiam prover.
Fernanda Pardini Ricci é bióloga, mestre em educação (USP). É aluna da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp, onde desenvolve o projeto de jornalismo científico “Divulgação Científica do Projeto Biota Síntese – Núcleo de Análise e Síntese de Soluções Baseadas na Natureza” apoiado pela Fapesp, bolsa Mídia Ciência.