Por Luiz Zanin
Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 18 de janeiro de 2023
Em Anatomia de um Instante, Javier Cercas examina um momento crucial da história espanhola. No dia 23 de fevereiro de 1981, um grupo militar, comandado pelo tenente Antonio Tejero, invade a câmara dos deputados e mantém os parlamentares sequestrados. O objetivo era promover um golpe e colocar o país sob tutela de um governo militar. A Espanha saíra havia apenas seis anos da ditadura franquista, que durara 40 anos.
Os golpistas entraram atirando e ordenaram a todos que se agachassem atrás de suas cadeiras. Sob mira de metralhadoras, todos obedeceram. As únicas exceções foram o presidente Adolfo Suárez, o general e vice-presidente Gutiérrez Mellado e o líder comunista Santiago Carrillo. Mantiveram-se em seus lugares, altivos. A cena foi registrada pelas câmeras que existiam no local.
Essa cena fundamental serve como ponto de partida para uma densa (e imaginativa) especulação sobre a complexa montagem do golpe de Estado que, naquele dia, se expressava de maneira dramática. A política é também um teatro, em que as dimensões simbólicas às vezes valem tanto quanto as forças reais em jogo. Cercas atribui grande importância ao fato de esses homens terem se mantido em seus lugares, sem ceder às exigências humilhantes dos golpistas. De certa forma, mudaram a história, pelo menos aquela que já estava escrita nos planos dos extremistas.
Mas enfim, tudo é de grande complexidade e o que escrevi é apenas um esboço do processo. Leiam o livro. É compensador, em especial para quem gosta de análises políticas feitas de forma lúcida e não convencional, evitando os clichês habituais. Tudo, repito, é muito complexo, às vezes contraditório e obscuro.
Não cheguei ao livro de Cercas por acaso. Quem o recomendou foi a professora Maria Hermínia Tavares, colunista da Folha. Dia 3 de novembro de 2022, ela escreveu a coluna “O golpe de Itararé”, comentando os movimentos bolsonaristas que, na véspera, dia 2, haviam paralisado estradas e começavam a acampar diante de quartéis de todo o país pedindo intervenção militar após a vitória de Lula em 30 de outubro. “Golpes são sempre urdidos de antemão; seu desfecho, porém, depende de decisões dos principais personagens envolvidos, tomadas no calor da hora”, escreve. É então que cita dois livros, Os Militares e a República, de Celso Castro, e este Anatomia de um Instante, de Cercas. Um, para descrever um golpe de Estado bem-sucedido, a proclamação da República em 1889; outro, para tentar entender o golpe frustrado de Madri, em 1981.
Logo após o resultado eleitoral, que deu a vitória a Lula, o golpe de direita foi desativado pelo imediato reconhecimento do governo eleito, tanto no plano nacional como no internacional.
Mas a cascavel não estava morta, como se viu dia 8 de janeiro. E, desta vez, o golpe foi evitado pela pronta intervenção de Lula na segurança do Distrito Federal. E também pela percepção de que um pedido de GLO seria uma armadilha que devolveria o protagonismo aos militares. A solidariedade internacional ao governo eleito deve ter surtido efeito dissuasivo nos golpistas. São detalhes que fazem toda diferença num processo complexo como é a articulação de um golpe de Estado contra um governo legitimamente eleito.
Os processos golpistas da Espanha e Brasil são muito diferentes e é preciso muito cuidado ao aproximá-los para não tirar conclusões descabidas.
Em 1981, a Espanha, uma monarquia constitucional, saíra da ditadura franquista havia apenas seis anos, tinha um governo contestado e vivia sob a tensão de grupos separatistas que aderiram à luta armada.
O Brasil tinha democracia desde 1985, quando se encerrou a ditadura militar de 21 anos. A nova constituição, de caráter social e progressista, é de 1988. Desde então, essa república instável assistira a dois impeachments presidenciais e vivera os últimos quatro anos sob constante tensão golpista por parte de um governo de extrema-direita.
Na Espanha, a ponta do golpe foi a invasão do congresso por militares com armas na mão. No Brasil, uma horda de partidários do ex-presidente invadiu a destruiu as sedes dos três poderes da república.
No entanto, tomando todo cuidado, há algo que a tentativa de golpe na Espanha pode nos ensinar nesta ressaca do 8 de janeiro.
Pelo livro, podemos ver como um golpe frustrado pode levar a uma situação oposta daquela a que se propunha. Urdido para destruir a democracia, acabou por fortalecê-la. A opinião pública espanhola, antes passiva e indiferente, foi convencida do valor da democracia quando esteve a ponto de perdê-la.
Mas também vemos o quanto de trabalho, coragem e inteligência se exigiu daqueles que resistiram ao golpe e o venceram para transformá-lo em seu contrário.
Na Espanha, a estrutura do golpe foi esmiuçada sob todos os ângulos.Todos os envolvidos tiveram de prestar contas à justiça. Dos executores aos planejadores. A maioria foi condenada e cumpriu pena. A democracia consolidou-se sobre a tentativa frustrada de destruí-la.
É a oportunidade que temos agora. Convém não desperdiçá-la.
Luiz Zanin é crítico de cinema. Estudou filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e psicologia clínica e psicanálise no Instituto de Psicologia (IP) da USP. Trabalha na Rede TVT e no jornal O Estado de S. Paulo