Por Renan Augusto Trindade
Alik Wunder é professora do Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte na Faculdade de Educação da Unicamp. Pesquisa educação, cultura, filosofia contemporânea e imagem, em especial, fotografia. Coordena desde 2010 o Coletivo Fabulografias, que desenvolve atividades de pesquisa e de extensão com criações audiovisuais em torno das culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas. Preside, dentro da diretoria executiva de Direitos Humanos da Unicamp, a Comissão para a Inclusão e Participação dos Povos Indígenas (CAIAPI). É co-autora do livro Casa dos saberes ancestrais – Diálogos com sabedorias indígenas.
Recentemente foi realizado o vestibular unificado indígena, uma parceria entre a Unicamp e a UFSCar. Como iniciativas desse tipo devem ser interpretadas e o quanto elas refletem uma preocupação das universidades públicas na inserção dos povos indígenas dentro da comunidade acadêmica?
Hoje há uma preocupação por parte das universidades com a política de cotas para indígenas, que na Unicamp surgiu em 2017, mas não podemos nos esquecer que todos esses direitos foram conquistados. Apesar de a lei para a política de cotas ter surgido em 2012, em um primeiro momento ela teve frutos apenas nas universidades federais. Tardou um pouco para que ela tivesse adesão nas universidades estaduais. No caso da Unicamp, ela surgiu a partir de um movimento grande envolvendo o Núcleo de Consciência Negra e do Movimento Estudantil Indígena. Eles foram os articuladores desse processo a partir da greve de 2016, em que os estudantes colocaram como uma das pautas principais a exigência das políticas de cotas dentro da Unicamp. Até então, havia uma outra compreensão de como deveria ser a inclusão das comunidades negras, indígenas e de baixa renda, envolvendo uma espécie de bonificação, o Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social (PAAIS). Porém, para a população indígena esse sistema se mostrou frágil, já que a porcentagem de ingressantes era muito pequena. Isso foi avaliado pelos alunos junto a pesquisadores da universidade. Já no segundo semestre de 2016 surgem três audiências públicas, com a presença de autoridades que estavam militando a favor e pesquisando as cotas no Brasil, produzindo uma reflexão dentro da universidade.
A política de cotas nas universidades públicas do Brasil, em especial no Estado de São Paulo, é relativamente recente. A Unesp, pioneira nessa iniciativa, está comemorando esse ano uma década. É possível comemorar, mesmo com essa inércia?
Acho que é um momento de celebração do que já se institucionalizou nesses anos, mas também a hora de estabelecer uma política interna. Esses movimentos produziram também reflexos nas pós-graduações, que também aderiram às cotas entre 2016 e 2017 em vários cursos da Unicamp. Isso foi adensando o debate dentro da universidade. Mas um debate que foi inicialmente trazido pelo movimento estudantil negro e indígena. As universidades paulistas demoraram para atender a uma legislação federal, produziram políticas afirmativas, se mostraram pouco eficientes, especialmente aos povos indígenas e com a pressão social. A Unicamp, ao se abrir a essa escuta, tomou esse projeto como seu e diferentes professores, órgãos da universidade e a reitoria compreenderam que isso só traz benefícios. Ela se torna, assim, uma universidade mais enraizada nas demandas, nas questões e nas potencialidades do que é o Brasil.
Nestes anos de políticas afirmativas dentro das universidades, alguns cursos, sobretudo os de ciências humanas, passaram a discutir reformulações em suas ementas e grades, para se desvencilhar de normativas eurocêntricas e repensar formatos mais coerentes com a cultura local. Como a inclusão e participação de estudantes indígenas podem ajudar nesse processo?
Uma política pública, para qualquer população, só acontece e é eficiente quando tem a participação dessas pessoas. Então pensar em uma política pública para indígenas sem os indígenas é algo complicado e difícil de se realizar. Quando a Unicamp pensa em um vestibular específico para indígenas e o aplica em 2018, é a partir do ingresso dos estudantes em 2019 que ela começa a refletir sobre uma política de ação afirmativa para indígenas. É nisso que a CAIAPI tem trabalhado, ou seja, além do ingresso, o que mais a universidade precisa realizar para efetivamente produzir um diálogo com a riqueza dos conhecimentos indígenas desses mais de 300 povos e também proporcionar uma política de permanência e acadêmica adequada para esse público que vem com uma série de dificuldades linguísticas, de adaptação cultural, de escolarização, de situações de extremo conflito que geram traumas e situações graves de vulnerabilidade.
Os estudantes falam muito sobre isso. Eles têm que se adequar à rotina universitária, e como é que a universidade se abre aos modos deles pensarem? Como abrir essa possibilidade de diálogo? Estamos vendo alguns movimentos nesse sentido. Primeiro dentro do campo da gestão, para a construção de um percurso formativo indígena. A preocupação neste caso é analisar como esses estudantes estão chegando e acompanhá-los durante pelo menos um ano. De forma cuidadosa, para lidar com a adaptação cultural e escutar quem são essas pessoas, de onde vem, que experiências, quais os conhecimentos têm e quais possibilidades possuem para dialogar conosco. Isso já tem acontecido de uma forma bem mais concreta. Oferecemos uma disciplina que todos os estudantes indígenas cursam, chamada Diálogos Interculturais: Povos indígenas e Universidade. É uma experiência tão rica que nós estamos preparando um livro que vai trazer algumas dessas aulas. Elas são sempre dadas em 2: na perspectiva da ciência e na perspectiva de um acadêmico, pensador ou pensadora indígena. São incríveis, pois o aluno entra na universidade já entendendo que isso é possível, ou seja, que há acadêmicos e pensadores indígenas se abrindo esse tipo de diálogo.
Há também um movimento mais espontâneo. Quando os professores têm em suas turmas estudantes indígenas, principalmente nos cursos das áreas de ciências humanas, é mais possível imaginar esse diálogo, a partir de textos e biografias de autores indígenas.
No livro Casa dos saberes ancestrais você discute o aprendizado com políticas de cotas dentro da universidade. O processo de um exame vestibular tem um formato normalmente meritocrático. Em seus estudos, essa “meritocracia” também está presente na cultura indígena?
Em qualquer política pública que vá lidar com os povos indígenas há um conflito entre mundos, que envolve uma situação de poder do mundo ocidental branco e colonial sobre os povos. Não é um problema só da universidade, mas do Brasil. Nós ainda não resolvemos os problemas com as cotas. Nós só vamos aprender a lidar com esse problema mais de perto, mas estando com os povos indígenas conosco. A estrutura meritocrática da universidade através do vestibular está posta dentro da nossa lógica. Uma seleção se faz necessária. Se essa forma de seleção é melhor? Eu acho que sim. Eu sempre imagino que a escrita de um memorial, uma entrevista, seriam outras possibilidades, mas qual outro tipo de forma de ingresso nós conseguiríamos produzir para mais de 1400 candidatos? É complexo.
A Unicamp tem uma estrutura institucional para o vestibular ímpar, que nenhuma outra universidade tem. A maior parte das outras universidades contrata uma empresa para fazer o vestibular. A Unicamp produz o próprio vestibular, tem uma estrutura que é a Comvest. O fato de ela ter um vestibular especial para indígenas, com questões que em sua maioria produzem diálogos, é muito importante. É claro que elas estão lá selecionando em língua portuguesa, até porque se um aluno chegar aqui sem falar língua portuguesa ele não vai dar conta de estar nos cursos. Seleciona em linguagem matemática e em diversas áreas do conhecimento escolar, porque isso é pré-requisito. Se um estudante chegar aqui sem uma escolarização mínima, ele não vai conseguir se estabelecer nos cursos. Esse é um compromisso com os próprios estudantes. Eu não posso abrir uma vaga e produzir um processo seletivo que não seja condizente ao que uma universidade é. Os cursos exigem estudo, articulação da língua, um conhecimento matemático que não é pouco. Essa é uma responsabilidade com os próprios povos indígenas, de se fazer um vestibular condizente com o que a própria universidade exige. Aqueles que não têm uma proximidade mínima com a sociedade não-indígena, com a escolarização e com a língua portuguesa não conseguem chegar. E se chegassem, será que conseguiriam permanecer aqui? A menos que criássemos uma universidade indígena, uma licenciatura indígena, uma coisa específica para os povos indígenas. Mas não é esse o caso, nós estamos selecionando para qualquer curso da universidade.
Estamos longe de alcançar a proporcionalidade de pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI) dentro das universidades em comparação com o que temos autodeclarados no Brasil. Quais seriam os próximos passos para tornar a universidade de fato uma representatividade do Brasil?
Neste momento precisamos chegar mais perto de algumas comunidades quilombolas e indígenas, divulgando esse projeto nosso. Tanto para negros como para indígenas, quanto mais pessoas acessarem, mais interessante será, com a chegada de diferentes povos. A tendência é aumentar. O meu sonho não é muito numérico, é mais qualitativo. Eu sonho que a primeira leva de estudantes indígenas possa, a partir de suas escolhas, seja ficando na universidade e fazendo mestrado ou doutorado, ou indo para suas cidades, que eles produzam em seus locais outras políticas de valorização da vida dos povos indígenas, nos modos de ser e de viver, seja na educação ou na saúde, ou mesmo na área industrial. Aliás, há muitos indígenas trabalhando nas indústrias. Se houver um engenheiro indígena, que enxergue entre seus funcionários também pessoas indígenas, isso já proporcionará uma mudança na visão dele. O meu sonho é que esses estudantes que estão se formando, cheguem em seus lugares e façam a diferença, reconheçam a importância de em qualquer lugar do Brasil se ter uma política de preservação da vida e da dignidade. O que estamos vendo, infelizmente, é uma perseguição, perdas de territórios, um retrocesso em todas as áreas do direito indígena. Tivemos perdas de programas de educação e saúde indígena, em políticas de demarcação de terras, o garimpo avançando. Ou seja, é um ataque de todos os lados, seja do governo, seja do agronegócio e um desmonte das instituições de proteção do meio ambiente e dos povos. O meu sonho é que essas pessoas formadas aqui possam se inserir nessas instituições, nas políticas públicas locais e, realmente, com o respaldo do conhecimento acadêmico, terem força nos seus lugares para realizar essa transformação micropolítica. Outro sonho é que aqueles que decidirem seguir carreira acadêmica possam seguir com suas pesquisas e ainda assim consigam carregar toda a força teórica, os regimes conceituais, estéticos, valores dos seus povos para o pensamento, e que ele não fique restrito somente a eles, mas para todos nós. Por isso meu sonho não é quantitativo, mas qualitativo. Não adianta a pessoa se formar e não trazer para a empresa ou qualquer outro lugar onde vá trabalhar essa marca de quem ela é. A presença deles na universidade acaba ressoando na formação dos nossos profissionais.
Fotos: Antoninho Perri | Antonio Scarpinetti /SEC-Unicamp