Por Adriano Henrique Nuernberg
As organizações que vão sobreviver ao futuro da sociedade da informação e do conhecimento são aquelas que, além de sustentáveis, também são inclusivas. Não podemos mais pensar o mundo produtivo sem que ele incorpore o contingente enorme e crescente de pessoas com deficiência, que historicamente foram excluídas do direito ao trabalho ou foram deslocadas para trabalhos precários, estereotipados e desprotegidos.
A relação das organizações de trabalho com o processo de inclusão de pessoas com deficiência tem sido pautada tanto por avanços legais quanto por retrocessos sociais. A despeito da Lei 8.213/91 (regulamentada pelo Decreto 3.298 de 1999), que estabelece cotas para as pessoas com deficiência nas empresas com 100 ou mais funcionários, até os anos 2000 nunca as organizações tinham sido pressionadas a cumprirem o que nela está estabelecido. Apesar da clara redação da Constituição de 1988, que afirma ser a inclusão uma obrigação de todos, a maior parte das organizações públicas e privadas resistiram por muito tempo a incluírem as pessoas com deficiência no contexto do trabalho.
Essa realidade foi sendo transformada a partir de diversos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) que foram impostos pela Justiça às organizações privadas, que inicialmente recorreram às empresas de recrutamento, às associações filantrópicas da área e às redes sociais para contratar pessoas com deficiência, muitas vezes sem a preocupação de uma efetiva inclusão, buscando apenas evitar mais multas e outras punições. Já no caso das organizações públicas, coube aos Ministérios Público Estaduais e Federal o papel de fazer valer a lei garantindo vagas reservadas para pessoas com deficiência nos concursos públicos. Mais recentemente, a Lei Brasileira de Inclusão (13.146/2016) consolidou os dispositivos jurídicos que garantem a presença das pessoas com deficiência no trabalho e ainda reforçou aspectos centrais desse processo como o direito à acessibilidade e participação em condições igualitárias.
O velho argumento de que a população com deficiência está fora do mercado de trabalho devido à sua suposta baixa escolarização foi derrubado com os dados do Censo 2010 do IBGE, que mostrou que as pessoas com deficiência disponíveis para trabalhar não possuem tanta diferença em seus níveis de escolarização quando comparadas àquelas sem deficiência na mesma condição de trabalhar. Ademais, os relatórios do Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS) mostram que, se não fosse a legislação vigente, as pessoas com deficiência não seriam contratadas, o que evidencia que as barreiras são muito mais socioculturais do que de qualificação para o trabalho.
A primeira ação na direção da promoção da inclusão da pessoa com deficiência é, portanto, o cumprimento da legislação atual, garantindo a reserva de vagas e as condições de participação no ambiente de trabalho. No entanto, esse é apenas o primeiro passo, uma vez que, já empregados e no exercício de suas funções, os trabalhadores com deficiência enfrentam inúmeras barreiras. Tais barreiras são de natureza diversa, compreendendo desde as barreiras físicas que cerceiam o direito de ir e vir, passando pelas comunicacionais e informacionais que atingem a maioria das pessoas com deficiência sensorial ou linguística (surdos), até as atitudinais, que são as mais importantes e difíceis de serem removidas em face de sua grande perpetuação por meio dos dispositivos segregacionistas e excludentes das diferenças e variações corporais.
“Barreiras atitudinais” é um termo que nasce no campo dos direitos humanos a partir da metáfora das barreiras físicas à participação das pessoas com deficiência em seus contextos de vida. Tais barreiras se materializam nos preconceitos e predisposições negativas quanto ao potencial e capacidade de um grupo social como esse. Dentre as principais barreiras, temos a ideia de que ter uma deficiência específica em um órgão ou função resulta na incapacidade total do organismo, incluindo as funções cognitivas. Outro exemplo de barreira atitudinal é considerar que pessoas que possuem o mesmo tipo de deficiência terão as mesmas necessidades de adaptação no ambiente de trabalho, como se a deficiência fosse o único atributo do sujeito. Isso é um equívoco porque as pessoas com deficiência, assim como as sem deficiência, são seres singulares e, portanto, possuem uma história individual que as diferencia das demais (Amaral, 1994; Hammes e Nuernberg, 2015). Desse modo, ao incluir uma pessoa com deficiência no contexto de trabalho, há que se considerar o sujeito e não apenas as características de sua deficiência. As barreiras atitudinais prejudicam a equidade no trato das pessoas com deficiência porque elas são reduzidas a seu impedimento ao serem definidas por ele, sejam suas restrições de natureza física, sensorial, funcional, intelectual e/ou cognitiva. São os ditos “aleijados”, “ceguinhos”, “surdinhos”, “retardados”, para citar os termos usuais do senso comum que representam essa objetificação.
O enfrentamento das barreiras atitudinais é feito com a difusão do conhecimento e com a própria presença das pessoas com deficiência nesses ambientes, se a elas forem ofertadas as mesmas oportunidades de atuarem, capacitarem-se e contribuírem para o desenvolvimento da organização. Uma vez que tais barreiras são uma herança das políticas de segregação do passado, que geraram esse desconhecimento da realidade e dos modos de vida na deficiência, quando se passa a olhar mais para a pessoa do que para o significado negativo dos impedimentos, tais barreiras automaticamente são removidas e a inclusão se fortalece. Não obstante, essa é a segunda ação a se efetivar para se promover a inclusão de pessoas com deficiência no trabalho: remover as barreiras atitudinais.
Outro fato que se apresenta na análise dos dados públicos do Ministério do Trabalho e Emprego dos últimos anos é a preferência nas contratações por pessoas com deficiência física, em comparação com outras condições. Isso significa que na população com deficiência, aquelas com deficiência intelectual, múltipla deficiência e autismo têm sido as mais preteridas pelas organizações contratantes. Há uma clara vantagem para as pessoas cujos corpos não possuem impedimentos que demandem adequações no ambiente físico e social, bem como no fluxo comunicacional e tecnológico das organizações. Isso acontece de tal maneira que algumas condições que não são oficialmente consideradas como deficiência passam a ser colocadas no âmbito da reserva de vagas, como por exemplo pessoas com surdez unilateral, ou seja, aquelas que ouvem com apenas um ouvido. É como se nesse contexto o conceito de deficiência fosse alargado para caber mais gente, de acordo com interesses econômicos e pessoais. A lei, contudo, deve proteger aquelas pessoas que precisam realmente dos dispositivos legais para serem recrutadas, selecionadas, contratadas e incluídas e não aquelas que não enfrentam barreiras severas no seu cotidiano. Esse alargamento do conceito de deficiência serve tanto às organizações que realmente não se interessam pela inclusão e, portanto, terão menos demandas para realizar as adaptações necessárias a essas pessoas, como para aqueles que até então não se reconheciam como pessoas com deficiência, mas optam pelas vagas reservadas como um facilitador do ingresso nas organizações, aumentando a exclusão de quem realmente precisa da reserva legal.
Por trás dessas barreiras e preconceitos está um processo sociocultural que tem sido chamado na pesquisa acadêmica de “capacitismo”, definido como a violência e discriminação social que subjazem às estruturas fundamentais da cultura em relação às pessoas cuja variação corporal é considerada desviante. Embora muitas vezes o termo é reduzido a um conceito análogo às demais formas de discriminação social como o racismo e o sexismo, sua definição abrange aspectos mais basilares de nossa organização política e sociocultural e, portanto, deve ser compreendido como um processo constitutivo da sociedade ao invés de um ato relacional específico de um grupo ou indivíduo. É o capacitismo que nos faz conceber as pessoas com deficiência como seres inferiores, menos capazes, frágeis e incompletas e ao mesmo tempo afirmar um padrão corporal e funcional hegemônico como referência normativa (Mello, 2016).
O capacitismo se manifesta de diversas formas e, como interessa aqui destacar, está na base da imagem e conceito de “trabalhador ideal” preconizado tanto nas teorias de gestão, administração e recursos humanos quanto na prática e na cultura da maior parte das organizações de trabalho (Foster e Wass, 2013). Essa imagem ideal não apenas produz desvantagens àqueles cujo gênero, cor da pele, classe social, orientação sexual e idade não coincidem com o padrão masculino, caucasiano, de camadas médias abastadas, jovem e heteronormativo. Ela também determina que corpos e modos de mover-se, funcionar, interagir, pensar e comunicar são valorizados nos ambientes corporativos. Aliás, é essa imagem de trabalhador ideal que configura o perfil geral do trabalhador com deficiência hoje empregado, cujos corpos são mais desejáveis quanto menos evidentes foram seus marcadores de incapacidade e quanto menos seus impedimentos demandarem esforço e investimento financeiro e de recursos humanos das organizações.
Desse modo, a terceira e a mais desafiadora ação para uma efetiva inclusão das pessoas com deficiência nas organizações de trabalho é combater o capacitismo implícito em seus princípios, normas, fluxos, sistemas e dinâmicas organizacionais. Qualquer procedimento ou prática que se apresentar engessada, como por exemplo uma descrição excessivamente restrita de um cargo ou função, prejudica as pessoas com deficiência, que em geral manifestam melhor seus potenciais em contextos, atividades e ambientes flexíveis. O desejado perfil das organizações atuais do trabalhador “multifacetado”, “intercambiável” ou capaz de gerir “múltiplas tarefas” também representa para muitas pessoas com deficiência uma barreira programática importante nas organizações (Foster e Wass, 2013). Muitas pessoas com autismo, por exemplo, costumam ser melhor adaptadas ao trabalho quando seu hiperfoco é direcionado a atividades produtivas que demandam a atenção a detalhes e minúcias de algum produto ou processo da cadeia produtiva. Para tanto, ao invés de se valorizar mecanismos de gestão estanques e restritos em nome da “qualidade” e “excelência”, deve-se buscar valorizar as diversas formas de se chegar a um resultado, com base em diferentes caminhos, técnicas, experiências e formas variadas de perceber e processar as informações. Querer impor às pessoas com deficiência funções e atividades concebidas para quem ouve, vê, anda ou funciona cognitivamente dentro dos padrões normativos é uma forma de violência capacitista. Talvez esse seja o mais difícil obstáculo a ser vencido para continuarmos a avançar na inclusão das pessoas com deficiência, pois exige uma mudança profunda dos modos de pensar e agir nesse contexto. Por isso, desenvolver a inclusão como um princípio organizacional que combate o capacitismo é uma ação de natureza ampla (e genérica), situada no plano da cultura organizacional. Significa valorizar a diversidade humana e seu potencial para alavancar os resultados almejados no processo produtivo por meio de distintas e inovadoras formas, beneficiando a todos. A tarefa de promover a inclusão não se restringe, assim, a algumas ações da área de gestão de pessoas. A inclusão deve ser uma política da organização. Não se trata, portanto, de apenas cumprir as exigências legais para evitar multas, mas conceber a diversidade como potência e não como um problema a ser superado ou tolerado.
Uma última ação a ser descrita aqui é o investimento em tecnologias assistivas e em projetos baseados no desenho universal. Tecnologias assistivas são ferramentas que favorecem a autonomia e independência de pessoas com algum tipo de impedimento ou lesão no desempenho de tarefas da vida diária, para mobilidade, acesso à informação, comunicação, realização de atividades laborais, entre outras. Um trabalhador cego precisará, por exemplo, de programas de computador que façam a leitura de tela para acompanhar as mensagens em seu e-mail corporativo ou fazer uso de editores de texto. Do mesmo modo, um trabalhador com paralisia cerebral poderá fazer uso de pranchas de comunicação digital para poder se comunicar numa reunião de trabalho com seus colegas.
Já o desenho universal é um princípio fundamental da construção de artefatos e sistemas que parte da maximização do seu potencial de uso e aplicação, independente da condição física, sensorial, intelectual ou cognitiva do usuário com ou sem deficiência, em diferentes idades e variações corporais. Dispor de tecnologias assistivas para que os trabalhadores com deficiência possam exercer suas funções e atribuições com independência e eficácia é uma premissa de uma organização inclusiva. Ademais, priorizar, seja na esfera criativa e produtiva, seja na esfera administrativa e de gestão, a presença de mecanismos, tecnologias e artefatos baseados no desenho universal é uma forma de ampliar o alcance e extensão de um projeto. É o caso, por exemplo, das plataformas e/os sistemas operacionais mais conhecidos como IOS e Windows, que, inspirados no desenho universal, já possuem recursos nativos de leitura e ampliação de tela, de mudança de contraste de cores e assistentes de voz, ampliando seu potencial de uso por parte das pessoas com deficiência.
As quatro ações aqui elencadas, a saber 1) cumprir a lei brasileira de inclusão e demais dispositivos legais da inclusão; 2) remover as barreiras, principalmente atitudinais; 3) combater o capacitismo por meio de uma política organizacional inclusiva; 4) investir em tecnologias assistivas incorporarando desenho universal como um princípio do processo criativo e produtivo não estão em hierarquia ou ordem (cronológica) de execução. Tampouco devem ser compreendidas isoladamente – e, tomadas em conjunto, não esgotam o tema. Em realidade, são processos que andam juntos e se constituem mutuamente, produzindo a inclusão e a diminuição das históricas desvantagens impostas aos trabalhadores com deficiência.
Cumpre, enfim, destacar que a inclusão não deve ser pensada como um processo que apenas gera novos desafios ou, pior, que se traduz só em despesas para as organizações. Krumm (2005) reporta que as empresas que contrataram pessoas com deficiência costumam ver seus indicadores de absenteísmo e rotatividade diminuídos, bem como as carreiras melhor construídas pelos sujeitos. Ademais, um contexto inclusivo onde se valoriza a diversidade torna-se um campo fértil para manutenção de um clima produtivo, ético, acolhedor e propício à inovação e valorização do capital humano da organização.
As organizações que vão sobreviver ao futuro da sociedade da informação e do conhecimento são aquelas que, além de sustentáveis, também são inclusivas. Não podemos mais pensar o mundo produtivo sem que ele incorpore o contingente enorme e crescente de pessoas com deficiência, que historicamente foram excluídas do direito ao trabalho ou foram deslocadas para trabalhos precários, estereotipados e desprotegidos. A deficiência é mais do que uma condição de um grupo específico, é parte do ciclo de vida humano (Diniz, 2007). O aumento da expectativa de vida produtiva com o maior envelhecimento populacional e as decorrentes mudanças no sistema de previdência e seguridade social são outros ingredientes desse debate que reforçam a urgência do tema para as organizações. O futuro do trabalho nas organizações também depende, portanto, de sua capacidade de incluir a todos(as), independente de sua condição física, sensorial, intelectual ou cognitiva.
Adriano Henrique Nuernberg é professor aposentado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde coordenou o Núcleo de Estudos sobre Deficiência.
Referências bibliográficas
Amaral, L. A. Pensar a diferença/deficiência. Brasília: Corde, 1994.
Diniz, D. O que é deficiência? (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense, 2007.
Foster, D, & Wass, V. “Disability in the labour market: An exploration of concepts of the ideal worker and organisational fit that disadvantage employees with impairments”. Sociology, 47(4), 705–721. 2013. https://doi.org/10.1177/0038038512454245
Krumm, D. Psicologia do trabalho. RJ: LTC, 2005.
Mello, A. G. “Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC”. Ciência & Saúde Coletiva, 21(10), 3265-3276. 2016. https://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152110.07792016
Hammes, I. C. & Nuernberg, A. H. “A inclusão de pessoas com deficiência no contexto do trabalho em Florianópolis: Relato de experiência no sistema nacional de emprego”. Psicologia: Ciência e Profissão, 35(3), 768-780. 2015. https://dx.doi.org/10.1590/1982-3703000212012