Por Beatriz Maia
Os números mais recentes sobre homicídios no Brasil refletem as enormes desigualdades do país, e dão um retrato nítido das principais vítimas da violência – e sua associação direta com a repressão ao tráfico de drogas
Os dados são estarrecedores. A média de assassinatos cometidos a cada três semanas no Brasil em 2015 supera o número de mortos em todos os ataques considerados terroristas no mundo todo nos primeiros cinco meses de 2017.
A comparação é do Atlas da Violência publicado em junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A publicação reúne dados de 2015 sobre as mortes violentas no país, e aponta a tendência de estabilização do número de homicídios em comparação com os últimos anos. Segundo as informações do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, em 2015 houve 59.080 homicídios. Desde 2012, os números têm ficado na faixa entre 55 e 60 mil por ano, o que consolida o aumento no patamar da média entre 2005 e 2007, que ficava entre 48 a 50 mil mortes.
Em um país com mais de duzentos milhões de habitantes, é de se esperar que a taxa média de 28,9 homicídios para cada 100 mil habitantes seja bastante diferente em cada parte do território. Fortaleza, por exemplo, apontada no levantamento como a capital mais violenta do país, registra uma taxa na ordem de 78 para cada 100 mil, enquanto Florianópolis, a mais segura, fica em torno de 13.
Analisando o período entre 2005 e 2015, o estudo deixa clara a diversidade de cenários. A variação das taxas de homicídios de jovens (entre 15 e 29 anos) traz em uma ponta o estado de São Paulo, que diminuiu 44,3%, e o Rio Grande do Norte, que teve 232% de aumento. Todos os estados com crescimento superior a 100% nas taxas de homicídios pertencem ao Norte e Nordeste, enquanto todos os estados do Sudeste apresentaram queda.
As disparidades também são observadas nos recortes por raça. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Enquanto a mortalidade de pessoas não negras diminuiu 12,2% entre 2005 e 2015, a taxa de homicídios de pessoas negras aumentou 18,2% no mesmo período. De acordo com um estudo publicado em janeiro também pelo Ipea, a brutalidade das mortes da população negra não é mera consequência socioeconômica. Descontados os efeitos de idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência, o cidadão negro tem chances 23,5% maiores de sofrer assassinato em relação a cidadãos não negros.
O estudo, que fornece subsídios para o planejamento da Secretaria de Segurança do Ceará, aponta a predominância dos crimes nas áreas de menor renda na cidade, e onde a pobreza isola esses espaços dos demais. “Essas comunidades pobres não têm interação com as comunidades do entorno, ou seja, as pessoas moram em uma ‘ilha de pobreza’ e não interagem com pessoas que são de outra classe social, de outra faixa de renda. São guetos de pobreza na cidade, onde não só ocorre a violência dentro, mas com consequências negativas para a sociedade como um todo”, afirma Victor Silva.
O economista aponta para a ausência de bens e serviços nessas microrregiões, o que se relaciona com a dificuldade de entrada dessas populações no mercado de trabalho convencional. O resultado disso é que a oportunidade de trabalho fica restrita ao tráfico de drogas e outras atividades ilegais. Os dados do Ipea corroboram essa visão, com a estimativa de que ocorra uma redução de 2,1% no número de homicídios para cada queda de 1% na taxa de desemprego entre homens.
Pós-doutoranda do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Giane Silvestre aponta o “combate ao crime” como ponto nevrálgico da discussão sobre violência no Brasil. “É preferível falarmos em formas de se fazer o controle da criminalidade, embora se ouça muito a expressão ‘combate à criminalidade’, especialmente nos discursos das instituições policiais. ‘Combate’ é um termo de guerra, utilizado para se referir ao inimigo, uma coisa que precisa ser combatida e exterminada, o que mostra a orientação das instituições. A gente espera que o crime seja controlado dentro dos princípios de uma sociedade democrática”, defende a socióloga.
A pesquisadora analisou em sua tese as ações institucionais para o controle do crime no estado de São Paulo, e aponta que, nos últimos 20 anos, houve um progressivo fortalecimento da Polícia Militar em detrimento da Polícia Civil. A consequência dessa decisão é a predominância de uma polícia ostensiva, que concentra suas forças nos flagrantes, nos crimes nas ruas, e pouco se concentra em outros níveis de criminalidade, como os altos escalões do tráfico e os crimes de colarinho branco.
“O enfrentamento do tráfico de drogas acaba se limitando a prender pequenos traficantes no cotidiano das cidades. Essas pessoas são repostas facilmente, em um eterno ‘enxuga gelo’. Devido à enorme desigualdade social do Brasil, o tráfico tem muita mão de obra disponível. O comércio de drogas é formado por uma rede enorme, e o sistema de segurança pública só olha para essa base, nunca consegue chegar aos níveis mais altos e desmantelar uma grande cadeia de tráfico de drogas”, relata Silvestre.
É praticamente consenso entre os pesquisadores que o tráfico, em si, não é um crime violento, mas, por definição, uma atividade comercial. Uma das razões pelas quais a violência acompanha a venda de drogas é a disputa territorial. No Rio de Janeiro, os conflitos entre os diferentes grupos criminosos causam mortes e imensos transtornos para as populações dos morros, submetidas às arbitrariedades das facções. Já em São Paulo, o monopólio do PCC sobre a venda de drogas provê uma relativa tranquilidade das disputas.
A força do arsenal bélico em posse dos grupos criminosos é justificada pelo enfrentamento com a polícia. “Enquanto o Estado investe em políticas de enfrentamento, políticas repressivas, esses grupos também vão fortalecendo seu potencial bélico. O Estado empreende uma violência muito forte para tentar fazer o controle desses grupos e acaba tendo uma retribuição quase que na mesma medida, numa disputa que retroalimenta a violência”, comenta Silvestre.
O número de mortes decorrentes de intervenção policial já ultrapassou o de latrocínios. Em 2015, de acordo com o 10º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 2.314 latrocínios, e 3.320 mortes decorrentes de intervenções policiais, o que demonstra o padrão institucional de uso da força pelas polícias brasileiras.
Para o professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Gabriel Feltran, o homicídio no Brasil responde claramente a dois fatores: a pujança econômica dos mercados ilegais, ou seja, a riqueza neles produzida, associada à estratégia política de repressão dos pequenos operadores desses mercados.
Na América Latina, o homicídio explodiu primeiro na Colômbia, depois no Rio de Janeiro, ainda nos anos 1980, depois em São Paulo, nos anos 1990, e mais recentemente no Nordeste do Brasil, sempre acompanhando a força econômica das rotas dos mercados ilegais, ancorados no tráfico de cocaína. “Os mercados não trazem consigo a violência. É preciso somar a eles um modelo de segurança como o nosso, centrado em criminalizar e não regular esses mercados, e ainda por cima reprimir violentamente o pequeno varejista, estratégia que se mostrou equivocada no mundo todo. Só com esses fatores associados, ao longo de décadas, é que o homicídio cresce como cresceu no Brasil e na América Latina”, afirma Feltran.
Para o professor da UFSCar, essa política é a principal responsável pela corrida armamentista das últimas três décadas no Brasil. “Os operadores desses mercados criminalizados têm que se armar para seguir com a riqueza conquistada. Os que os disputam têm que se armar para tentar controlá-los. As polícias têm que se armar para tentar reprimi-los mais. E esse ciclo não tem fim. Quanto mais isso continua, mais inseguras as cidades se tornam”, enfatiza.
No Brasil, entre 2005 e 2015, mais de 318 mil jovens foram assassinados, e a taxa de homicídios de pessoas entre 15 e 29 experimentou um crescimento da ordem de 17%. De acordo com os dados do Atlas, o pico da taxa de mortalidade caiu de 25 anos, na década de 80, para 21 anos atualmente.
Mas o tráfico não é uma exclusividade brasileira. Se o comércio ilegal de drogas é cada vez mais globalizado, porque o Brasil registra níveis tão maiores de violência associada ao tráfico do que outros países? O professor relata, após viver recentemente em duas capitais europeias, o cotidiano pacífico do comércio de drogas nas ruas. “Há tráfico em escala gigantesca na Europa, e a violência associada a esses mercados é muito inferior à brasileira, quase nenhuma. Não se reprime o pequeno operador da droga. O menino que vendia haxixe na esquina onde eu morava na França era o mesmo no ano todo em que vivi em Paris. Ele não foi preso, o que só produziria um preso e outro vendendo na mesma região, multiplicando os números de encarcerados e traficantes. Ele tampouco precisava se armar. Era um comerciante, não havia violência envolvida em seu negócio. É a repressão equivocada que o faz se armar. Mas não é preciso ir longe. O tráfico de drogas nas classes médias e elites brasileiras é igual. Desprovido de qualquer violência. Ou será que as classes médias e elites não usam drogas?”, provoca o professor.
Para Giane Silvestre, a violência é um traço constituinte da sociedade brasileira. “Somos uma sociedade extremamente violenta desde a colonização. Primeiro a violência foi usada contra os indígenas, depois, durante os 300 anos de escravidão no Brasil, quando, inclusive, as pessoas eram espancadas em praça pública como forma de castigo. Temos uma forma de nos relacionarmos que é pautada na violência, e acredito que é preciso que haja uma série de políticas preventivas de redução da violência que invistam em processos de cunho civilizatório, educacional e outras de sociabilidade”, defende a socióloga.
Beatriz Maia é jornalista pela Unesp e aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp.