Por Ladislau Dowbor
É estranho constatar que em todo o ciclo escolar, inclusive nas universidades, a não ser na área especializada em economia financeira, ninguém nunca teve uma aula sobre como funciona o dinheiro, principal força estruturante da nossa sociedade. A população se endivida muito para comprar pouco no volume final. A prestação ‘cabe no bolso’ (mas pesa no bolso durante muito tempo). O efeito demanda é travado. Quando 61 milhões de adultos no Brasil estão com o nome sujo no sistema de crédito, é o sistema que está deformado.
A economia teoricamente visa o bem-estar das famílias, por meio da prosperidade que uma economia bem gerida deve permitir. Isto não significa apenas acesso à renda, mas uma certa estabilidade e sentimento de segurança, sem nuvens negras no horizonte, ou a angústia do emprego perdido. E se trata também de assegurar que o que conseguimos hoje não seja às custas das gerações futuras. Em suma, trata-se do equilíbrio entre o econômico, o social e o ambiental.
Não nos faltam, no Brasil, recursos para isso. Hoje o país produz cerca de 11 mil reais de bens e serviços por mês por família de 4 pessoas, o que deveria permitir que todos vivam de maneira digna e confortável. Quando constatamos, no entanto, que 6 pessoas têm mais patrimônio do que a metade mais pobre da população, e que os 5% mais ricos têm mais do que os 95% restantes, conforme dados recentes publicados pela Oxfam, só podemos ficar chocados com a aberração econômica que vivemos. Acrescentemos a isso a destruição ambiental, com a agressão à floresta amazônica, poluição dos cursos de água, contaminação dos lençóis freáticos e até dos nossos alimentos com agrotóxicos e antibióticos, além da congestão das cidades por falta de transporte de massa, e temos uma ampla conta negativa. Não é a falta de recursos que assola o país, é a falta de governança competente e o consequente descontrole geral.
Tudo isso em nome da economia, de assegurar uma misteriosa “confiança” dos mercados. Confiança dos ricos de que irão ganhar o suficiente com aplicações financeiras, sem precisar se dar ao trabalho de investir na produção. A realidade é que os chamados mercados, constituídos essencialmente por grandes corporações financeiras, não só não respeitam as exigências ambientais nem as necessidades sociais, como sequer se mostram capazes de administrar a economia. O tripé básico do desenvolvimento, que precisa ser economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente sustentável, está grosseiramente deturpado. E quem sofre com isso são justamente as famílias.
Não é por falta de saber o que deve ser feito, o que funciona. Quando os Estados Unidos mergulharam na crise em 1929, nenhuma iniciativa de “austeridade” funcionou. O país se recuperou através do New Deal, um novo pacto social, em que os impostos sobre as fortunas improdutivas foram radicalmente aumentados, ao mesmo tempo que o governo, usando a sua capacidade de financiamento, inclusive emitindo moeda, generalizou investimentos locais em infraestruturas e processos redistributivos, o que devolveu ao andar de baixo da economia a capacidade de compra. Isso dinamizou as empresas que voltaram a produzir e não gerou inflação pois as empresas estavam com estoques acumulados e capacidade ociosa. A expansão do consumo das famílias e a retomada de atividades das empresas geraram um fluxo de impostos que cobriu com as receitas ampliadas o déficit inicial do governo, fechando a conta. Gerou-se um círculo virtuoso de expansão da economia. A direita, como é de praxe, desancava Roosevelt na imprensa, ridicularizando os “varredores de folhas” do presidente, e tentou inclusive um golpe de estado em 1938.
Isso funcionou nos EUA dos anos 1930, mas funcionou também na Europa durante os “trinta anos de ouro” de 1945 a 1975, com amplos processos redistributivos, tanto diretamente por meio de aumentos salariais como indiretamente por meio do acesso gratuito e universal à saúde, educação e semelhantes. A prosperidade do andar de baixo da sociedade gerou um capitalismo funcionando “com base ampla” da pirâmide, que permitia que os aumentos de produtividade também encontrassem a demanda popular correspondente. E a dinâmica econômica estabilizou as contas públicas pelos impostos gerados, repassados à população por meio de investimentos em infraestruturas (em particular de transportes) e políticas sociais.
Nos EUA foi o New Deal, na Europa foi o Welfare State, Estado de bem-estar, mas o princípio é o mesmo. Trata-se de orientar a economia não segundo a rentabilidade financeira dos especuladores e sim segundo as necessidades da população. E não esqueçamos a China, que organiza o fluxo de financiamento para atividades produtivas: do bilhão de pessoas que superaram a linha de pobreza no mundo, o Banco Mundial mostra que 700 milhões são chinesas. Funciona hoje na Alemanha, e até com a “geringonça” em Portugal [“geringonça” é o curioso nome com que se batizou o acordo de 2015 que formou o governo do Partido Socialista (PS) com apoio parlamentar do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português (PCP)]. Aqui não há grandes debates entre economistas ortodoxos ou heterodoxos e semelhantes, há simples bom senso.
O Brasil seguiu essa linha entre 2003 e 2013, uma década que o mesmo Banco Mundial, em balanço recente sobre a economia brasileira, qualificou de Golden Decade, década dourada do país. Sim, o Banco Mundial. Não ver os resultados de se investir na base da pirâmide é falta de elementar bom senso e excesso de preconceito. Já afirmar que esta política gerou déficit fiscal ou que “quebrou o país” constitui desinformação ou má-fé.
Como foi que se travou esse processo no Brasil? A partir de 2013 o processo entrou em crise. A realidade é que os bancos e outros intermediários financeiros demoraram pouco para aprender a drenar o aumento da capacidade de compra do andar de baixo da economia, esterilizando em grande parte o processo redistributivo e a dinâmica de crescimento que se inicia em 2003.
Trata-se nada menos do que da esterilização dos recursos do país através do sistema de intermediação financeira, que drena em volumes impressionantes recursos que deveriam servir ao fomento produtivo e ao desenvolvimento econômico. Os números são bastante claros, e conhecidos, e basta juntá-los para entender o impacto. Em raro momento de clareza, o jornal O Estado de S. Paulo de 18 de dezembro de 2016 ostentou essa enorme manchete de primeira página dominical: “Crise de crédito tira R$ 1 tri da economia e piora recessão”. Ou seja, 15% do PIB drenados pelos intermediários financeiros. Mais 7% do PIB tirados por meio dos juros sobre a dívida pública, e temos a fórmula do desastre.
E com liberdade total dos bancos, conforme ressalta o relatório da Anefac (Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade): “Destacamos que as taxas de juros são livres e as mesmas são estipuladas pela própria instituição financeira, não existindo assim qualquer controle de preços ou tetos pelos valores cobrados”. Lembremos que o artigo 192 da Constituição, que regulamentava o sistema financeiro nacional, foi revogado por um Congresso eleito com o dinheiro das corporações – uma prática que o Supremo Tribunal Federal levou 18 anos para declarar inconstitucional. [A norma do § 3º do art. 192 da Constituição, revogada pela emenda constitucional 40, de 2003, limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”].
De acordo com os dados do Banco Central, em março de 2005 a dívida das famílias equivalia a 19,3% da renda familiar. Em março de 2015, a dívida acumulada representava 46,5% da renda. Esse grau de endividamento, em termos de estoque da dívida, é inferior ao de muitas economias desenvolvidas. Mas nelas se paga juros da ordem de 2% a 5% ao ano. Com os juros aqui praticados, as famílias deixaram evidentemente de poder expandir o seu consumo, e a sua capacidade de compra foi apropriada pelos intermediários financeiros. A demanda foi travada pelos altos juros para pessoa física, e isso trava a economia no seu conjunto. Em agosto de 2017, 61 milhões de adultos, cerca de 40% do total, estão “negativados”, ou seja, sequer conseguem pagar compras anteriores, que dirá expandir o consumo.
Não é o imposto que é o principal vilão, ainda que o peso dominante dos impostos indiretos e a isenção fiscal de lucros e dividendos só piore a situação: é o desvio da capacidade de compra para o pagamento de juros. As famílias estavam gastando muito mais, resultado do nível elevado de emprego e da elevação do poder aquisitivo da base da sociedade, mas os juros esterilizaram a capacidade de dinamização da economia pela demanda que esses gastos poderiam representar. O principal vetor de dinamização da economia viu-se travado. Gerou-se uma economia de atravessadores financeiros. Prejudicam-se as famílias que precisam dos bens e serviços, e indiretamente as empresas efetivamente produtoras que têm os seus estoques parados. Perde-se boa parte do impacto de dinamização econômica das políticas redistributivas.
Alguns exemplos ajudam a entender a dinâmica. O crediário cobra, por exemplo, 141,12% para “artigos do lar” comprados a prazo. Quem se enforca com esse nível de juros e recorre ao cheque especial (mais de 300%) apenas se afunda na dívida acumulada, e se entra no rotativo do cartão, da ordem de 450%, acaba de amarrar o nó no pescoço. Note-se que os juros sobre o cheque especial e o rotativo no cartão não ultrapassam 20% ao ano nos países desenvolvidos. Temos nesse caso grande parte da capacidade de compra dos novos consumidores drenada para intermediários financeiros, esterilizando a dinamização da economia pelo lado da demanda.
No caso de uma pessoa buscar o crédito no banco, o juro para pessoa física, em que pese o crédito consignado, que na faixa de 25% a 30% ainda é escorchante, mas utilizado em menos de um quarto dos créditos, é da ordem de 68%. Na França os custos correspondentes se situam na faixa de 3,5% ao ano.
As pessoas que, mais conscientes ou dispondo de mais recursos, compram à vista no cartão, ignoram em geral que na modalidade “crédito” de uma compra de 100 reais, 5% do que pagam vão para os bancos, e na modalidade “débito” cerca de 2,5%. A CPMF era de 0,38% e provocou uma avalanche de críticas. Na compra à vista pagando com cartão na modalidade “crédito” o banco desconta 5 reais sobre uma compra de 100 reais, quando o custo da operação (gestão dos cartões) mal chega a 10 centavos. Um custo benefício de 50 por 1. Com milhões de operações de pagamento à vista no cartão efetuadas todo dia, todas as atividades econômicas se tornam mais caras para o consumidor. É um dreno imenso sobre toda a economia.
É preciso acrescentar aqui que muitos dos novos compradores a prazo tinham pouca experiência de crédito. Uma prática particularmente nefasta é o fato de os intermediários, e hoje inclusive os bancos, apresentarem o juro ao mês, e não ao ano, o que esconde o mecanismo de juros compostos. Uma pessoa sem formação na área pensará que um juro de 6% ao mês é três vezes maior do que um juro de 2% ao mês. Juros de 6% ao mês representam cerca de 100% ao ano, quando juros de 2% ao mês representam 26% ao ano. Três vezes 26 são 78%. O comprador vai fazer esses cálculos de cabeça?
Na realidade, é até estranho constatar que em todo o ciclo escolar, e inclusive nas universidades, a não ser na área especializada em economia financeira, ninguém nunca teve uma aula sobre como funciona o dinheiro, principal força estruturante da nossa sociedade. Não à toa Stiglitz obteve o seu Nobel de economia [em 2001] com trabalhos sobre assimetria de informação nos processos econômicos.
O resultado é que a população se endivida muito para comprar pouco no volume final. A prestação “que cabe no bolso” pesa no orçamento familiar durante muito tempo. O efeito demanda é travado. Quando 61 milhões de adultos no Brasil estão com o nome sujo no sistema de crédito, é o sistema que está deformado. O brasileiro trabalha muito, mas os resultados são desviados das atividades produtivas para a chamada ciranda financeira, que não reinveste na economia real. Não se pode ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. O principal motor da economia, a demanda das famílias, é travado.
A verdade é que o Brasil tem no seu amplo mercado interno uma gigantesca oportunidade de expansão. Em termos econômicos, é o que funciona. E o crédito tem de se colocar a serviço da dinamização do consumo de massa.
Na fase inicial da crise no Brasil, gerada em grande parte pelo próprio sistema financeiro, tornou-se moda repetir que esse estímulo à economia através do consumo de massas se esgotou, como se o pouco que o andar de baixo do país pôde avançar fosse um teto. Nada como dar uma volta em bairro popular, ou consultar as estatísticas no Data Popular, que estuda esse comportamento de consumo, para se dar conta da idiotice que o argumento representa. A massa da população tem muito nível quantitativo e qualitativo de consumo a atingir, tanto em termos de consumo “de bolso” a partir da renda disponível, como do consumo coletivo com mais acesso à educação, saúde e outros bens públicos de acesso universal.
A crise? Ora, a crise…Entre 2012 e 2013 o governo tinha se dado conta que o atolamento em dívidas tanto da população, como das empresas e do próprio Estado – que perdia cerca de 400 bilhões ao ano repassados aos bancos em vez de servir à população – exigia uma redução radical dos juros. A taxa Selic baixou para 7,25%, os bancos públicos passaram a emprestar a juros mais baixos tanto para pessoas físicas como para pessoas jurídicas. Não prestou. Enfrentar o sistema financeiro, tanto o poder dos bancos como da classe média alta que se acostumara a ganhar com aplicações financeiras mais do que com a produção, foi textualmente crítico. A partir de meados de 2013 não há mais governo no Brasil, há gritaria, boicote, caos político. Os juros voltaram a subir, veio o impeachment, e veio a crise. E quem gerou a crise está dizendo que veio para consertá-la. Há três anos estamos esperando. Quem pagou o pato simbólico, naturalmente, foram e continuam sendo as famílias. A grande massa da população.
Ladislau Dowbor é economista, professor da PUC-SP e consultor de várias agências da ONU. Os seus trabalhos estão disponíveis na íntegra em http://dowbor.org – A presente nota faz parte de ampla pesquisa sobre o capital improdutivo e as novas arquiteturas do poder, veja em http://dowbor.org/principais-livros/