A qualidade e equidade da educação infantil em uma perspectiva curricular

Por Daniel Domingues dos Santos e Camila Martins de Souza Silva

 Desigualdades sociais desde as infâncias

 O Brasil é um país socialmente muito desigual, e grande parte dessa desigualdade resulta das diferenças de oportunidades individuais e familiares para conquistar seu próprio bem-estar. As descobertas científicas mostram que grande parte do nosso potencial humano para uma vida autônoma e plena é construído já na primeira infância, constituída pela fase do nascimento aos 6 anos, quando nossa capacidade de aprendizagem é particularmente elevada. Os cérebros dos bebês atingem atividades neuronais que não acontecerão em outra fase da vida (Santos; Porto; Lerner, 2014).

Estudos apontam que a primeira infância é uma etapa primordial para a formação do alicerce para a aprendizagem. As experiências e estímulos positivos impactam em um desenvolvimento pleno ao longo da vida. Da mesma maneira, as experiências negativas podem causar riscos ao desenvolvimento integral, devido a enorme maleabilidade cerebral. Por isso, a atenção aos pequenos precisa acontecer para além das condições fisiológicas: alimentação e saúde.

Um dos principais componentes necessários também para a formação de um bom alicerce é o afeto e a brincadeira. Por essa razão, as diferenças nas chances que as crianças têm de frequentar ambientes acolhedores e estimulantes são também fonte de desigualdade de oportunidade (Poropat, 2009; Primi et al., 2016; Almlund et al., 2011; Heckman, Stixrud, Urzua, 2006; Carmeli; Josman, 2006).

A educação infantil (0 a 5 anos e 11 meses) é a grande aposta da sociedade brasileira. O Plano Nacional de Educação (PNE/2014-2024), por exemplo, estipula a meta de 50% de atendimento de crianças de 0 a 3 anos nas creches e universalização do acesso à pré-escola (4 anos a 5 anos e 11 meses). O mesmo PNE reforça compromissos globais, tais como a meta 4.2 dos ODS (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável) da ONU de que este acesso à educação infantil (EI) seja feito com qualidade, como forma de garantir que todos tenham garantidas as oportunidades de aprendizagem necessárias ao pleno desenvolvimento nessa etapa da vida.

O Brasil, apesar de não ter alcançado as metas do PNE, avançou em termos de acesso.  Em 2018, o levantamento apontou 93,8% de acesso a vagas para a etapa pré-escolar, o que demonstrou um grande avanço em relação a 2001, em que o acesso era de 64,4%. No caso da creche, 34,2% têm acesso a vagas, entretanto, para creches são os mais ricos que estão matriculados (FMCSV, 2020).

O grande desafio é como continuar avançando em termos de acesso e garantir a frequência escolar das crianças pequenas, mas com políticas que levem em conta a qualidade e equidade educacional. Em um país já historicamente desigual, seria mesmo defensável que a qualidade da educação infantil fosse ainda maior para crianças oriundas de contextos vulneráveis, uma vez que não basta deixar de gerar novas desigualdades, mas assumir um compromisso de utilizar as políticas públicas para resgatar esse passivo secular de descaso com as camadas mais negligenciadas da população.

Infelizmente, contudo, nossos dados sugerem que o sistema de educação infantil brasileiro parece amplificar ao invés de reduzir as desigualdades entre os indivíduos. Diversos autores (Klein, 2006; Pinto, Santos e Guimarães, 2017) mostram que os impactos do atendimento à creche e pré-escola no Brasil tendem a contribuir mais para os filhos de mães com alta escolaridade do que para os filhos de mães com menor nível educacional. No estudo de Pinto e Santos (2017) é demonstrado que o impacto de frequentar as creches brasileiras sobre o aprendizado pode até ser negativos para os mais vulneráveis.

Qualidade e equidade da educação infantil socialmente referenciada

 As desigualdades apontadas tornam urgente a discussão sobre qual o significado de uma educação infantil de qualidade, especialmente em um momento de acelerada expansão do acesso. Nessa discussão, há dois aspectos importantes: em primeiro lugar, considerar que o papel da educação infantil é sempre definido dentro de um contexto social e histórico; em segundo, reconhecer a multidimensionalidade de qualquer conceito que qualidade possa vir a ter.

No que se refere ao primeiro aspecto, o papel da educação infantil, até 1996, as creches brasileiras estavam primordialmente vinculadas ao sistema de assistência social, e tinham como principal finalidade cuidar das crianças enquanto suas famílias (especialmente as mães) trabalhavam. Com o advento da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a sociedade reconheceu que é imprescindível que nas instituições haja um trabalho pedagógico intencional e visando especialmente ao desenvolvimento integral da criança (LDB/artigo 29), transferindo definitivamente as creches para dentro do sistema educacional.

Da mesma forma, a expansão da pré-escola resultava de uma demanda que as famílias de classe média tinham por uma antecipação da escolarização formal de seus filhos, ao passo que nos dias de hoje se reconhece que essa etapa deve ser um direito de todos, respeitando-se as especificidades da infância. A qualidade, portanto, assume o compromisso de garantir de modo satisfatório a missão que uma sociedade deu ao serviço em seu contexto histórico.

No segundo aspecto, a multidimensionalidade, os documentos oficiais apontam caminhos promissores para a dimensão dos insumos, como a estrutura predial compatível e uma equipe qualificada. É preciso ter também segurança e alimentação adequadas e uma gestão escolar democrática, que conte com a participação ativa das famílias. Todos esses aspectos são pertinentes e vêm sendo alvo de embasamento para diversos documentos e normas oficiais, tais como os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil, os Indicadores de Qualidade da Educação Infantil, Indique e o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi).

Outra dimensão de especial relevância são as práticas pedagógicas, pois são nelas que o afeto e a brincadeira se constituem. Contudo, a escassez das avaliações em escala sobre os processos pedagógicos torna difícil disseminar dados que demonstram o quanto as práticas são o ponto chave para a transformação educacional. Para além da avaliação, há uma dificuldade em tratar as questões que embasam as experiências na educação infantil, que de fato contribui para o desenvolvimento pleno das crianças.

Em estudo de 2019 realizado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes) com o apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMSV), os autores observaram uma relação positiva entre um indicador global de processos pedagógicos (que incluía dimensões de interações) e o desenvolvimento das crianças. Os dados mostram que “uma criança mudar de uma escola de baixa qualidade para uma de alta qualidade significa avançar em aproximadamente seis meses no desenvolvimento deste domínio, equivalente à metade de um ano letivo a mais na pré-escola” (Silva et al, 2019).

O estudo traz ainda importante contribuição para o debate sobre a definição da qualidade da oferta e seus possíveis efeitos no desenvolvimento infantil. São nas interações entre crianças e professores; crianças e crianças; e crianças com o ambiente que de fato materializam-se as oportunidades de aprendizagem que proporcionarão o desenvolvimento. Dentre os principais preditores de aprendizagem destacam-se precisamente a existência de interações pedagógicas que deem protagonismo e respeitem os ritmos das crianças, e formas acolhedoras e negociadoras de lidar com conflitos na sala de referência.

A dificuldade de se tratar com profundidade das questões pedagógicas possivelmente se deve a vários fatores, e convém destacar alguns deles:

  • A multiplicidade de metodologias existentes na educação infantil, e a diversidade de valores culturais presente em um território tão grande quanto o nosso;
  • O embate tradicionalmente existente entre um segmento da educação que defende que a pré-escola tem como principal finalidade o preparo para o ensino fundamental e outra que defende que as características dessa faixa etária específica justificam outras abordagens e finalidades;
  • Uma divisão igualmente acirrada entre um grupo pragmático que acredita que um sistema estruturado deveria ser a base principal de qualquer pedagogia (seja por acreditar que apenas assim se garante plena igualdade de oportunidades a todos, seja por considerar que a qualidade do trabalho dos professores é tão baixa que o seu melhor uso seria para implementar propostas totalmente protocoladas); e outro grupo que acredita que as diferentes culturas e contextos existentes no Brasil, mesmo entre escolas de um mesmo município, necessitam justamente de professores ainda mais qualificados e com capacidade de criar a estratégia pedagógica alinhada às prioridades específicas da comunidade em que atuam.

O que é qualidade na educação infantil a partir de uma perspectiva curricular?

 O lançamento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em 2017, orientou esse debate. Pela forma participativa com que foi construída, este documento tem condições de nortear as discussões, estabelecendo as prioridades que a sociedade brasileira contemporânea quer para a educação infantil.  A Base Nacional não é, em si, um currículo que direciona o que deve ser ensinado, mas uma referência obrigatória para a elaboração dos currículos escolares, avaliações e propostas pedagógicas.

A BNCC coloca que a missão da educação, de modo geral, assume o compromisso de transformar crianças e jovens em cidadãos ativos na sociedade, que possam modificar o mundo, considerando os desafios da sociedade contemporânea. As competências necessárias colocadas pela Base para que isso ocorra são de aprender a aprender, resolver problemas, ter autonomia, saber dialogar e conviver com as diferenças, entre outras. As condições educativas precisam levar em conta os interesses e necessidades dos aprendizes, para que de fato isso ocorra, pois torna significativo para eles o processo de aprendizagem e esse conceito coloca o estudante no centro dela.

No contexto da educação infantil, a prioridade é ampliar as aprendizagens das crianças quanto ao repertório cultural e científico, levando em consideração as propostas das crianças, que já são capazes de intervir em seu meio. As estratégias devem oportunizar aprendizagens em que os bebês e as crianças possam ter seus direitos de aprendizagem resguardados, os quais são: conviver, brincar, explorar, participar, expressar e conhecer-se.

Para colocar a criança no centro do processo de aprendizagem, as oportunidades oferecidas devem: (i) contextualizar de onde partem as experiências e os conhecimentos abordados para dar sentido ao que se aprende. (ii) dar protagonismo para as crianças na sua aprendizagem e na construção das suas vivências e experiências, como por exemplo ao explorar o seu entorno e escolher como realizar uma atividade; e (iii) identificar estratégias para conectar os conhecimentos com base na realidade do lugar e do tempo com as aprendizagens propostas (Unicef et al, 2017). Essas estratégias se referem à aprendizagem baseada no brincar e ampliação da aprendizagem, uma vez que, no contexto da infância, é por meio do lúdico que a criança aprende e vai consolidando o conhecimento (Vygotsky, 1988).

A BNCC traz também o conceito da intencionalidade pedagógica, principalmente do professor e equipe escolar, em mediar os processos de descoberta, atentando que no desenvolvimento da criança, nos diferentes momentos de sua vida, há aprendizagens já consolidadas (aquilo que sabe fazer sozinha) e outras que estão em processo de construção (situações que a criança realiza, mas que ainda precisa de um parceiro mais experiente para tal). São nesses momentos que se deve intervir, encorajando as crianças e auxiliando-as.

O professor mediador, por exemplo, pode: organizar o espaço com o objetivo específico para a atividade que irá realizar; dividir uma atividade em passos mais fáceis de serem executados, de forma que a criança possa desenvolvê-la processualmente; e ajudar uma criança a identificar estratégias alternativas para que ela alcance seu objetivo na proposta.

Uma das formas de mediação do professor, ponto chave da ampliação da aprendizagem, é a adoção das perguntas abertas às crianças. Essas possibilitam mais de uma resposta e encorajam a criança a pensar e refletir a partir de sua própria compreensão ou experiências, engajando as crianças em discussões sobre um tópico e aprofundando seu aprendizado. Por isso, a importância da qualificação dos profissionais em identificar quais são as especificidades da faixa etária, adequando e adaptando as brincadeiras, jogos e mobiliários, por exemplo. Desse modo, a BNCC:

  • Concilia a importância de adaptar-se ao contexto cultural. Fazer essa adaptação é ser coerente com a aprendizagem centrada na criança.
  • Reconhece que as especificidades da infância devem ser levadas em conta, e isso não é antagônico com uma transição positiva para o ensino fundamental, a primeira infância é o alicerce da aprendizagem que, se bem trabalhada, impulsiona aprendizagens futuras mais consolidadas.
  • Sugere que as práticas pedagógicas precisam ser adaptáveis às especificidades das crianças, e que fazer isso é promover equidade processual em termos de oportunidades de aprendizagem, de modo algum contraditório com ter uma base de aprendizagens essenciais que todas devam adquirir. Nesse sentido, materiais estruturados podem auxiliar para uma política mais igualitária, mas não como único ponto de partida.

O compromisso com a qualidade educacional como direito consiste em assumir a responsabilidade por melhorar as condições sociais em que vivemos.

Daniel Domingues dos Santos  é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. ddsantos@fearp.usp.br

Camila Martins de Souza Silva graduada em pedagogia e pesquisadora do LEPES – Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social da USP. camila.martins.souza@alumni.usp.br

Referências 

 Almlund, M. et al. Personality psychology and economics. [S.l.], 2011.
Carmeli, A; Josman, Z. E. “The relationship among emotional intelligence, task performance, and organizational citizenship behaviors”. Human performance, Taylor & Francis, v. 19, n. 4, p. 403–419, 2006.
Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (2020). “Desafios do acesso à creche no Brasil: subsídios para o debate”. http://www.fmcsv.org.br
Heckman J. J; Stixrud, J; Urzua, S. “The effects of cognitive and noncognitive abilities on labor market outcomes and social behavior”. Journal of Labor economics, The University of Chicago Press, v. 24, n. 3, p. 411– 482, 2006.
Heckman, J.J. “Schools, skills, and synapses”. Economic inquiry, v. 46, n. 3, p. 289-324, 2008.
Klein, R. “Como está a educação no Brasil? O que fazer”. Revista Ensaio, v. 14, n. 51, p. 139-171, Abril-Junho 2006.
Pinto, C.; Santos, D. D.; Guimarães, C. “The impact of daycare attendance on math test scores for a cohort of 4th graders in Brazil”. Journal of Development Studies, 53(9), 1335-1357.
Poropat, A. E. “A meta-analysis of the five-factor model of personality and academic performance”. Psychological bulletin, American Psychological Association, v. 135, n. 2, p. 322, 2009.
Primi, R. et al. “Development of an inventory assessing social and emotional skills in brazilian youth”. European Journal of Psychological Assessment, Hogrefe Publishing, 2016.
Santos, D.; Porto, J; Lerner, R. Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (2014). Estudo nº 1: O Impacto do Desenvolvimento na Primeira Infância sobre a Aprendizagem. http://www.ncpi.org.br.
Silva, C. Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes). Educação infantil em Boa Vista: medindo qualidade e resultados na educação infantil: 2019. São Paulo: Lepes: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Disponível em: https://bit.ly/33ZiCbU Acesso em: 30 mar. 2020
Vygotsky, L S. et al. “Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar”. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, v. 10, p. 103-117, 1988.
Unicef et al. Overview: MELQO – Measuring Early Learning Quality and Outcomes. New York: Unesco Publishing, 2017.