Edilany Mendonça Vales e Agerdânio Andrade de Souza
“Para a educação escolar indígena eu tenho que adaptar todo o meu material pedagógico. O material que chega na nossa comunidade não leva em consideração a realidade da nossa cultura. O material deve ser diferenciado e específico a partir da convivência, da realidade, um currículo diferenciado de acordo com o conhecimento dos alunos e a realidade de cada aldeia”, pontua a professora indígena Rosana dos Santos.
A partir da fala da professora é possível perceber que os materiais de apoio pedagógico recebidos nas aldeias não contemplam as realidades das comunidades. Dessa forma, cada professor tem que fazer a elaboração própria de materiais e atividades de consolidação de conteúdo. Esses materiais bilíngues são confeccionados a partir dos conhecimentos tradicionais.
As crianças indígenas, ao iniciarem a idade escolar, falam exclusivamente sua língua materna e, ao entrarem na escola, deparam-se com professores monolíngues que, muitas vezes, são despreparados para lidar com essa realidade.
Tendo essa questão em vista, o curso de licenciatura intercultural indígena da Unifap busca prover ferramental para que os professores indígenas egressos atuem a partir de uma postura de salvaguarda de seus patrimônios imateriais, dentre eles, a língua.
Assim, uma das atividades propostas pelo curso foi participar diretamente da produção dos materiais adaptados, e cada acadêmico pôde elaborar o material de acordo com a realidade da sua aldeia, como calendário especifico, alimentação regional, fauna e flora da região. As experiências de diversas aldeias e territórios foram agregadas: Aldeia Santa Izabel, Aldeia Manga, Aldeia Curipi, Aldeia Kumenê, Território Waiãpi, e Terra Indígena Rio Paru d`Este, e englobam povos de origem bastante distinta, como Karipuna, Palikur, Wayãpi, Apalai e Wayana, Galibi-Kali’na e Galibi-Marworno.
O processo
Elaboramos materiais didáticos, paradidáticos, e um e-book para refletir, discutir e demonstrar a necessidade da autonomia do professor indígena em formação. Preservar e revitalizar a língua materna, valorizar os saberes indígenas através da produção de materiais próprios são estratégias específicas de resistência e afirmação de suas identidades.
Os discentes indígenas que trabalharam na construção do e-book Saberes dos Povos Indígenas do Oiapoque compartilharam nos materiais construídos em sala de aula os conceitos inerentes à geografia e à etnocartografia.
A etnocartografia é a ciência que permite produzir cartas, artes, mapas por uma população, grupo social ou povos, onde são destacados elementos culturais e históricos. Ela permite sintetizar a ciência tradicional e o conhecimento indígena tradicional ao agregar complexidade cultural e formalização territorial. Quando o professor indígena em formação representa seu espaço, ele demonstra o seu próprio ordenamento territorial e evidencia as dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas de seus etnomapas para ministrar a aula em consonância com sua própria concepção e sentimento de território, favorecendo a socialização do conhecimento.
A atividade reuniu 17 discentes, pertencentes a 6 aldeias (Santa Izabel, Manga, Curipi, Kumenê, e Território Waiãpi e a Terra Indígena Rio Paru d`Este). Todos os materiais adaptados foram produzidos durante as aulas da disciplina de Desenvolvimento e Meio Ambiente, com subsídios para a elaboração de materiais didáticos específicos, diferenciados e interculturais para a escola indígena.
A disciplina desenvolveu atividades com método e prática pedagógicas na etnociência, agregando os saberes e conhecimentos dos povos indígenas para construírem seus próprios materiais didáticos e paradidáticos. Então, juntamente com os discentes indígenas, organizou-se um seminário e, a partir das apresentações, criamos um e-book digital e que também foi impresso.
De acordo com Ferreiro (2001), “é preciso reanalisar as práticas” – e assim fizemos. Os recursos utilizados para a construção de seus materiais didáticos e paradidáticos foram extraídos da natureza, como: sementes, tinta de jenipapo, folhas de plantas da região e penas de pássaros encontradas no meio das plantações.
Na elaboração de seus materiais didáticos eles foram criativos, críticos e participativos, respeitando as opiniões de cada etnia, com suas diferenças e diversidades.
A elaboração do material didático teve início com uma reflexão acerca da atuação dos professores indígenas, aspectos relevantes da história e da cultura do seu povo, e dos temas considerados significativos nas várias áreas do conhecimento, sendo possível fazer uma abordagem interdisciplinar. A criação do material serviu para esclarecimentos, orientações e discussões dos conceitos dos temas estudados, dialogando com as diferentes experiências indígenas.
É importante que a formação de professores indígenas de nível superior esteja pautada numa proposta de ensino ancorada numa perspectiva educacional voltada para a realidade das comunidades indígenas, num constante diálogo intercultural entre saberes diversos, como o conhecimento científico ocidental e distintos conhecimentos indígenas. Trata-se de habilitar professores indígenas para o exercício da docência nas aldeias, respeitando-se a cosmovisão, os valores e o legado de conhecimentos das diferentes etnias (Januário, 2003).
Ao planejar a organização do e-book, foi importante atentar para o fato de que a sala de aula não é uniforme do ponto de vista cultural, pelo fato de várias aldeias retratarem suas tradições de acordo com seus saberes. Durante a produção, os professores indígenas em formação demonstraram suas habilidades, memórias, visão, histórias e cultura. Mapearam memórias e visões, representando a cosmovisão, expressando as relações físicas, culturais, sociais da comunidade, resgatando e preservando as culturais ancestrais das aldeias do Oiapoque.
A atividade dos professores indígenas em formação permitiu que retornassem para suas comunidades com diversas apostilas, livros, mapas etnocartográficos e cartazes com diversos temas que ligam tradição e cultura ao ferramental da ciência tradicional. Os materiais produzidos ampliaram horizontes no ensino indígena, diversificaram espaços e propuseram uma abordagem sustentável.
As práticas sociais exigem dos indivíduos presença curiosa sobre as estruturas que os cercam e requerem uma ação transformadora da realidade – muito bem provocada pela fala da acadêmica e professora indígena Rosana dos Santos, que ilustra o início deste texto.
Edilany Mendonça Vales é mestra em desenvolvimento regional, especialista em educação especial e inclusiva e professora do curso de licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. edilany.mvales@gmail.com
Agerdânio Andrade de Souza é doutorando em inovação farmacêutica e professor da licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. as.unifap@gmail.com
Referências
Ferreiro, E. Reflexões sobre Alfabetização. Editora Cortez, 2001.
Januário, E. “Formação de professores indígenas em nível superior: A experiência do 3º grau indígena”. In: Ramos, M., N. et al. (orgs.). Diversidade na educação: reflexões e experiências. Brasília: MEC, 2003.