Por Carlos Orsi
Das questões ainda em aberto sobre a intentona fascista de 8 de janeiro de 2023, talvez a mais intrigante seja: o que os bolsonaristas achavam que ia acontecer? A invasão e depredação de prédios públicos, vazios e trancados para o fim de semana, é um ato de selvageria e barbarismo, mas que dificilmente pode ser visto como uma tentativa séria de usurpar o poder ou desestabilizar o governo: não é como se os invasores estivessem tentando tomar o presidente recém-empossado como refém ou algo assim.
Mesmo se os mínions tivessem permanecido acampados nos palácios por dias a fio, o poder legítimo apenas teria de ser exercido, temporariamente, de algum outro lugar. Aliás, no momento em que escrevo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda governa o país a partir de um quarto de hotel, situação forçada pelos hábitos insalubres de seu antecessor.
Parte significativa da motivação dos ataques, ao que tudo indica, apoiava-se num par de crenças delirantes – a de que haveria adesão em massa ao protesto, com passeatas espontâneas e invasões de prédios públicos e de instalações de infraestrutura em diversas partes do país; e de que as Forças Armadas, convocadas para pacificar a nação, acabariam depondo o governo eleito e devolvendo o poder à família Bolsonaro. A decepção das redes bolsonaristas com a “inação” dos militares sugere que muitos acreditavam que o jogo já estava combinado – que, enfim, as depredações eram apenas a mão visível de uma conspiração urdida nos quartéis.
Teorias de conspiração imaginárias são o café com leite intelectual do bolsonarismo. Os apoiadores ferrenhos do ex-presidente ora se veem como parte de uma – a que devolveria a Presidência à extrema-direita “em até 72 horas” – ora como inimigos jurados de outra, ou outras: o comunismo internacional, a ideologia de gênero, a vacina “experimental” para covid-19, a fraude nas urnas. O bolsonarismo tem um sistema nervoso que se ramifica por todos os setores da sociedade brasileira, mas sua medula espinhal é feita de gente que desceu fundo na toca do coelho.
Na língua inglesa, descer na toca do coelho, “to go down the rabbit hole”, tornou-se um clichê usado para descrever o processo pelo qual pessoas de início razoáveis, afáveis, funcionais e mentalmente sãs deixam-se envolver (ou são envolvidas) por narrativas delirantes de conspiração que absorvem suas identidades, seus afetos e as transportam para um mundo paralelo onde, parafraseando George Orwell, mentira é verdade, fraqueza é força, violência é paz, ditadura é democracia.
A expressão “toca do coelho” é uma referência ao livro clássico Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, em que a protagonista, após seguir um coelho até um buraco embaixo de uma moita, vê-se lançada num mundo de absurdos. “A toca do coelho seguia em linha reta, como um túnel, por uma certa distância, e então mergulhava de repente, tão de repente que Alice não teve tempo de pensar em parar antes de se ver caindo no que parecia ser um poço muito fundo”, escreve Carroll.
Não ter “tempo de pensar em parar antes de se ver caindo no que parecia ser um poço muito fundo” define muito bem, por exemplo, a experiência de pessoas como a americana Melissa Rein Lively, que “viralizou” online em 2020 depois de depredar, num acesso de pânico e fúria, a seção de venda de máscaras respiratórias de uma loja Target, resultado de, em suas próprias palavras, meses “consumida por histórias de juízo final na internet. Eu vivia dentro dessas teorias de conspiração. Toda essa pornografia do medo que eu consumia online alimentava minha depressão e minha ansiedade”.
O caso de Rein Lively é, em vários aspectos, distinto do dos depredadores de Brasília – deu-se no contexto do estresse psicológicos trazido pelos lockdowns do auge da pandemia, e ela caiu em si logo depois, reconhecendo o absurdo em que se viu envolvida – mas a referência à “pornografia do medo” é preciosa. O conspiracionismo bolsonarista radicaliza por meio de uma pornografia do ódio que também não dá à vítima tempo de pensar em parar, antes de perder o chão e cair.
Mas por que parece haver tanta gente correndo atrás do coelho, sem perceber o buraco antes que seja tarde? Seria um efeito prolongado da crise social causada pela covid-19, resultado da dependência em mídias online e redes sociais que a pandemia estimulou?
Curiosamente, estudo recente, conduzido em amostras da população da Europa e dos Estados Unidos, mostra que a prevalência de crenças conspiratórias não tem aumentado de modo significativo – numa escala de décadas. Em outras palavras, o mundo ocidental, a despeito das aparências, não tem ficado mais paranoico: o número de perseguidores de coelhos falantes, enquanto parcela da população, não subiu. Ao menos, não de um modo que possa ser medido em pesquisas de opinião pública.
A fração de americanos que (por exemplo) acredita que John Kennedy foi vítima de uma grande conspiração foi de 50%, em 1966, para 56% em 2021. Já a parcela que acredita que a morte de Osama bin Laden foi forjada passou de 11% em 2011, para 5% em 2021. No cômputo geral, dentro de um “cardápio” de 37 teorias de conspiração, o efeito líquido da variação de crença, para cima ou para baixo, fica muito perto de zero e é, de fato, negativo.
O que explicaria, então, a crescente influência política da mentalidade conspiratória, não só no Brasil, mas em todo o mundo? Em palestra dada em Las Vegas, em outubro de 2022, o principal autor do trabalho, o cientista político Joseph Uscinski, fez a seguinte sugestão: a proporção de pessoas vulneráveis a delírios conspiratórios na população é mais ou menos constante ao longo do tempo. A novidade é que os marqueteiros da direita descobriram como recrutar e mobilizar esse grupo, que até então mantinha-se à margem da política.
Alguém que abraça a ideia de que a princesa Diana foi morta por conspiradores ou que ETs construíram as pirâmides não tem muito o que fazer a respeito, além de enviar cartas aos jornais ou postar vídeos indignados. Já alguém que foi convencido de que o atual governo brasileiro é ilegítimo pode muito bem ir para a rua apoiar um golpe de Estado.
Se a hipótese de Uscinski estiver correta, então parte significativa da horda bolsonarista é composta por gente que trocou o chapéu de alumínio pela camisa da seleção. A toca do coelho virou um comício e o golpismo, um hobby. Manter esse grupo excitado, evitar que migre para alguma paranoia mais divertida – que abandone a política partidária e volte a blogar, por exemplo, sobre o motor mágico que transforma água em hidrogênio –, vai requerer uma dieta constante de “revelações” e “migalhas de pão”, pequenos clímaces e a promessa de um clímax definitivo que nunca chega.
Agora, mais até do que na campanha eleitoral, desinformação e fake news serão o oxigênio da extrema-direita brasileira: para manter a base conspiratória mobilizada, é preciso reforçar a crença dessas pessoas de que vivem dentro de um romance de Dan Brown ou de um episódio de Arquivo X. Para o fascismo à brasileira se manter viável, a política não pode jamais sair da toca do coelho.
Carlos Orsi é jornalista e escritor ganhador do Prêmio Jabuti, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e autor, entre outros, de Negacionismo e os Desafios da Ciência.