A maconha na pauta das instituições

Por Monique Oliveira

Como o processo de regulamentação do canabidiol no Brasil transformou a ontologia da cannabis sativa.  O canabidiol foi regulamentado no Brasil – e a maconha não – por uma necessidade institucional daquele momento. Era possível, por exemplo, fazer uma discussão sobre a regulamentação do CBD como um fitoterápico – mas, para isso, seria necessário passar pela maconha – e as instituições não levantaram essa possibilidade.

Em 2014, o Brasil se tornou o primeiro país a regulamentar o uso do CBD (canabidiol), um dos derivados da cannabis sativa, como um composto médico. Temos hoje especificações sobre importação, enfermidades e dosagens. Essa é apenas uma das formas de narrar essa história – porque todo o discurso sucinto sobre esse momento esconderá uma série de disputas, inevitavelmente. Exemplifico: a discórdia já começa na definição do composto regulamentado. Há quem diga que canabidiol não tem nada a ver com maconha; e há quem diga que só existe maconha, e o CBD não passa de uma invenção. Um objeto de pesquisa desafiador. Saí da defesa do meu mestrado sobre o assunto na Unicamp, em agosto de 2016, com a sensação de ter flutuado em um mar de controvérsias pouco definidas. Deu para levantar muitas questões, entretanto.

O objetivo da dissertação foi entender como um composto vindo da maconha passou a ser permitido, sem que a própria planta fosse objeto de regulamentação. Com um adendo: ele não havia passado por todos os testes clínicos para ser usado como um medicamento; tampouco tinha sido regulamentado em outra parte do mundo. Soma-se a isso a controvérsia: se ele era separado da maconha mesmo. Para completar, parti de uma premissa metodológica que bagunçava o já instaurado caos: o discurso científico e institucional não necessariamente é “a” verdade, mas uma delas.

Com isso, o número de controvérsias beirou o infinito… encontrei disputas entre conhecimento científico e leigo; entre o que é o prazer; entre o que é saúde; entre quem tem autoridade e competência para legislar sobre a vida; e a complexa relação entre instituições e cidadãos. Foram feitas 24 entrevistas. Pacientes, médicos, ministro da Saúde, presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), jornalistas, advogados e ativistas. O método utilizado foi a Teoria Ator-Rede. De maneira simplificada, a teoria propõe que se encontre os actantes envolvidos em uma controvérsia e, por meio da análise de entrevistas, são assinalados os pontos de divergência e convergência. As definições e discussões são destrinchadas pelos próprios atores. Não há hipóteses a priori (Latour, 2005). Estudar esse momento, portanto, foi adentrar nas estruturas institucionais do país, nas bases que lhe conferem legitimidade, foi revirar o que estava posto.

De fato, o processo de regulamentação do canabidiol tinha todos os atributos de uma controvérsia. Venturini (2010) define controvérsia como o momento em que atores com posições divergentes descobrem que vão ter de conviver e chegar a um consenso. Em relação ao canabidiol, foi o que encontrei na análise. Tudo começou quando a família de Anny Fisher, portadora da CDKL5 – síndrome rara que provoca intensas convulsões desde os primeiros dias de vida – tentou utilizar o canabidiol para tratar a enfermidade. A família trazia o composto dos Estados Unidos pelo correio, mas em uma das importações o pacote foi barrado pela Anvisa. Como era preciso explicar do que se tratava o produto, e ele era ilegal, a família começou uma cruzada para legalizar a importação. Em uma articulação notável, a família envolveu advogados, jornalistas, médicos, pesquisadores, governo e poder judiciário.

Na época, eu trabalhava como repórter de Saúde da Folha de S.Paulo e recebi a ligação do jornalista Tarso Araújo, que havia feito um documentário sobre o drama da família Fisher. Fizemos a reportagem no jornal e, naquele momento, adentrei a primeira controvérsia da história. Como a mãe não conseguia importar o canabidiol, tentei entender o que a impedia – para além dos limites da legalidade. Procurei a Anvisa. A agência informou que a mãe poderia importar o CBD, caso tivesse autorização médica para isso, mas, em seguida, entrei em contato com o CFM (Conselho Federal de Medicina) para verificar se havia essa possibilidade e a resposta foi de que médicos não podem prescrever o composto porque ele é proibido. Eis o primeiro nó. A Anvisa dizia que era preciso receita, mas ninguém podia prescrever porque a agência proibia a droga.

A dissertação também traz o relato, em primeira pessoa, de como foi fazer essa cobertura. Mostra, também, como era necessário o diálogo entre instituições para que a demanda de um cidadão fosse atendida; e, para que esse diálogo aconteça, é necessário não só pressão, mas o envolvimento de vários agentes, em vários níveis hierárquicos e institucionais.

Um desses agentes é a mídia. Além do documentário e da Folha, a história saiu no Fantástico. E considero que esse tenha sido o gatilho para a articulação que se formaria. Por dois motivos. Um deles é que a intermediação do jornalista provoca as instituições e pede uma resposta sobre os fenômenos que, de outra maneira, tardaria a ser formulada. Maconha é um objeto que vem sendo evitado há décadas – vide a ação sobre descriminalização no STF (Supremo Tribunal Federal), que não voltou à pauta. Quando um jornalista liga para a Anvisa, para o CFM, diz que tem até às 18h para o fechamento do jornal e que a história vai sair… um diálogo se põe em curso. Pode ser que não da maneira mais suave, pode ser que não com o respeito ao tempo das instituições para a análise do fenômeno; mas um diálogo começa, digamos, em meio ao caos.

Um outro ponto é a predileção do jornalismo pela singularidade – enquanto que, para a ciência, o que interessa é a regularidade, fenômenos sistêmicos (Sponholz, 2010).  O jornalista não escreve sobre “a homofobia no Brasil”, ele escreve sobre “Cleberson da Silva, que apanhou na Rua Augusta”… Considero que, por isso, a história da família Fisher foi tão atraente para a mídia. Não era sobre os efeitos do canabidiol em epilepsias refratárias. Era sobre um problema de uma família brasileira que só queria saúde, mas estava sendo impedida pelas instituições de viver. Uma das jornalistas do Fantástico entrevistada para a dissertação disse, por exemplo, que foi a luta da família que chamou a atenção da redação da TV Globo:

“Na hora que eu vendi a pauta, eu não fui muito questionada, porque eu já expliquei o que era. Disse: ‘então, é o canabidiol, é um composto, é um negócio que mistura na colher, toma por uma seringa e tal’. Já fui direto à explicação técnica e não teve problema. Foi tratado como uma coisa… digamos, ninguém entrou na discussão moral em nenhum momento. Eu vendi pela coisa das histórias mesmo, das mães, da Katiele e das outras mães, da relação delas com as filhas, e com a Anvisa e a batalha. Todo mundo ficou encantado, como falei, pela coisa familiar, pela história das mulheres e como eles estavam tentando resolver, meio que na unha, o problema dos filhos dela”. (Peres, 2016).

Após o alcance dessa pauta, a Anvisa decidiu estudar a liberação da importação do CBD. Diversos estudos foram feitos. Uma reunião foi convocada em 2014, mas, para a surpresa de muitos, a liberação da importação só sairia um ano depois. No trabalho, discorro longamente sobre esse momento. O relato de muitos é que a agência já havia sinalizado positivamente para a legalização da importação em doenças para as quais não havia tratamento disponível. E, embora não houvesse testes randomizados e controlados que sinalizassem sobre os efeitos em convulsões, estudos feitos pela USP de Ribeirão Preto já apontavam para alguma eficácia. Especialistas e pesquisadores tarimbados, como José Alexandre Crippa e Antonio Zuardi, chancelavam o uso do CBD e enviaram carta aberta à Anvisa, explicitando as particularidades do composto.

No entanto, a liberação não saiu e, nas redações, a informação que circulava era que só sairia depois das eleições de 2014. De fato, foi o que aconteceu. Durante a dissertação, conversei com o ministro da Saúde da época e o presidente da Anvisa, e perguntei o que havia acontecido. Eles disseram que havia muita confusão sobre o momento – a expressão utilizada era de que a liberação do canabidiol estava “contaminada pela maconha”. Isso porque senadores e deputados de oposição ao governo se aproveitaram do momento para dizer que a Anvisa legalizaria a planta, dando a entender que de forma irrestrita.

O hiato de um ano, assim, se deu porque era preciso que a agência fizesse uma articulação para comunicar o que estava em discussão e avisasse a opinião pública e, particularmente, a mídia, sobre o que se tratava. Reuniões, debates e audiências públicas foram feitas. O canabidiol foi liberado para importação em janeiro de 2015 e seu status passou a ser o de um composto controlado não relacionado à maconha.

Ativistas, no entanto, lutaram contra o que foi considerado por eles uma separação indevida. Um outro problema era o custo. O preço do canabidiol poderia chegar a 500 dólares o frasco e, a depender do peso da criança, o valor total ao mês poderia ser altíssimo. Foi aí que, no Rio de Janeiro, cultivadores, que trocavam informações, tiveram a ideia de fazer o óleo e doar para crianças que não tinham condições de importar o canabidiol.

“Nossa turma já era cultivadora. A gente usava para relaxar, para estar junto. Vendo o caso das mães na imprensa e o custo, tivemos essa ideia. Na época, a gente via que um tubinho de canabidiol custava 500 dólares, 600 dólares. E a gente começou a pensar que a planta era grande, de graça. Era injusto. Esses pais estavam comprando suco de brócolis a preço de ouro. Pensamos: vamos selecionar aí umas plantas, pegar uma rica em CBD, todo mundo já tem experiência em cultivo… e foi assim. Assumimos o compromisso de dar para as pessoas que precisavam. A gente sabia que dar o óleo para uma tia moribunda com câncer era diferente de dar para crianças. Começamos a pesquisar. Procuramos médicos e passamos a nos inserir nas melhores práticas (Martins, 2016)”.

Esse grupo passou a doar o extrato de cannabis e algumas famílias relatam, inclusive, que esse óleo é mais benéfico que o importado. O composto era enviado por Sedex sem custo algum para pacientes de todo o Brasil. Para pesquisadores, no entanto, há riscos no consumo desse óleo, porque não se trata do canabidiol puro. A grande controvérsia, no entanto, é que o composto legalizado para importação pela Anvisa também não era CBD puro. Não havia, até então, CBD puro para ser comprado.

Então, grande parte do que se diz sobre o CBD, de que se tratava de um composto que não tinha nada a ver com a maconha, é um discurso sobre uma substância a que muitos pacientes, na verdade, não tinham pleno acesso.

O que me levou a concluir, na pesquisa, que o CBD foi regulamentado no Brasil – e a maconha não – por uma necessidade institucional daquele momento (o processo até aqui é longo e envolve uma análise que pode ser lida na dissertação). Era possível, por exemplo, fazer uma discussão sobre a regulamentação do CBD como um fitoterápico – mas, para isso, seria necessário passar pela maconha – e as instituições não levantaram essa possibilidade.

Com isso, não estou excluindo o fato de que pode haver efeitos específicos do CBD descritos em estudos clínicos; mas, que, para a situação específica daqueles pacientes, não era só de CBD que se tratava – e muito menos para as pessoas que não tinham condições de adquiri-lo. Da mesma forma, foi preciso desvincular uma substância da outra institucionalmente, mas isso criou bifurcações e cisões. De algum modo, como demonstrou Thomas Kuhn, essa desvinculação deixou um rastro que, mais tarde, viria na forma de revolução. Hoje, famílias já conseguem autorização para o autocultivo, usando muitos dos argumentos que autorizaram a importação do canabidiol.

De qualquer modo, separados ou não, a ontologia da maconha foi mudada e uma nova surgiu: a do CBD.  O termo ontologia vem do grego “onto”, que significa “o ser”; e “logos”, o estudo ou a ciência. Ontologia é, assim, o estudo do que é o ser, do que existe. É usada muitas vezes como sinônimo de existência. Na sociologia, o termo ontologia define as várias entidades sociais que tornam as coisas o que elas são. No trabalho, a palavra foi empregada porque traz consigo a ideia de uma multiplicidade, de uma construção.

O meu interesse não era dizer: “isso é maconha” ou “isso é o CBD”, mas mostrar a ontologia de ambos, no que eles têm de construídos, de inacabados, de dinâmicos. O fato é que, na sua relação com o canabidiol no Brasil, ela assumiu essa faceta medicinal independentemente se os estudos clínicos ou se as instituições chegaram a uma “verdade” sobre isso. Da mesma forma, o CBD virou esse “remédio que veio da maconha, mas que, ao mesmo tempo, não é ela”, porque, diferente de outros medicamentos cuja planta-origem sequer é lembrada, o CBD entrou na sociedade brasileira atrelado à maconha e tem uma relação dinâmica com ela, independente do que a ciência diz.

No mais, essa não foi a única bifurcação ontológica. Esse momento contribuiu para outras diversas disputas. No trabalho, há passagens sobre quem detém o protagonismo sobre a própria saúde (o médico ou o paciente), sobre se é somente o cientista que tem autoridade sobre o discurso científico (muitas dessas famílias fizeram estudo de caso 24 horas com seus filhos e utilizavam uma substância que muitos especialistas desconheciam). Ainda, há disputas sobre a noção de saúde, se ela é a ausência de doença ou se ela é bem-estar (muitos defendem que o bem-estar proporcionado pela erva é, sim, saúde). Há controvérsias sobre a saúde pública (se ela deve se centrar somente sobre o efeito da maconha no organismo, ou se ela deve pensar também nos efeitos sociais da proibição).

Como disse, um trabalho desafiador que, ao dar voz para os diversos atores que fizeram parte desse momento, contribuiu para descortinar o que os discursos sucintos, muitas vezes, escondem. E, acredito, cheguei um pouco mais perto da compreensão da magnitude desse fenômeno tão importante para a história da ciência e da medicina no Brasil.

Monique Oliveira é doutoranda pela Faculdade de Saúde Pública da USP e mestra em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp .
moniqueboliveira@gmail.com

 

Referências

Kuhn, S. T. A estrutura das revoluções científicas. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
Latour, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: 34, 1994.
Latour, B. Reassembling the social. Oxford: Oxford University Press, 2005.
Martins, J. (pseudônimo). Ativista da cannabis, engenheiro, cultivador e um dos fundadores da ”rede”. Entrevista realizada em 6 jun. 2016.
Oliveira, M.B. de. “O medicamento proibido — Como um derivado da maconha foi regulamentado no Brasil”. 313 pp. Dissertação de mestrado. Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp. Campinas, 2016.
Sponholz, L. “O papel do jornalismo nas controvérsias”. Estudos em Jornalismo e Mídia, v. 7, n. 1, 9 jun. 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view/11601>. Acesso em: 14 jul. 2016.
Venturini, T. “Building on faults: How to represent controversies with digital methods”. Public Understanding of Science, v. 21, n. 7, p. 796–812, 1 out. 2012.
Peres, B. Jornalista e editora de texto da sucursal do Fantástico, programa da Rede Globo em 2014. Entrevista realizada em 21 jul. 2016.