Por José Graziano da Silva
A fome aumentou muito em 2020, o primeiro ano da pandemia, especialmente nos países da América do Sul – considerados o celeiro do mundo!
– “Mamma?”
– “Dorme bambino che ancora è notte!”
O diálogo, que se repete uma vez mais, expressa o desespero da mãe toda vestida de preto que trata de manter o filho no berço enquanto explica ao senhorio que vinha cobrar o aluguel da casa em ruínas: “se o menino acorda vai querer comer e não tenho nada para lhe dar!”. A cena imortalizada pelo cineasta Pier Paolo Pasolini no filme de 1966 Uccellaci e Uccelline: la fame ocorria numa Itália devastada do final da segunda Grande Guerra. Infelizmente, como observou um colega depois de ver o filme no Youtube, “hoje para 19 milhões de brasileiros é sempre noite!”.
A FAO, que se mudou para Roma no pós-guerra para ajudar na recuperação econômica europeia, divulgou os primeiros números da fome no mundo após o início da pandemia em 12 de julho de 2021. Em recente conferência com os ministros de agricultura latino-americanos, o seu economista-chefe, Máximo Torero, já antecipava alguns resultados preliminares, infelizmente piores que o esperado.
Utilizando as estimativas do FIES (Escala de Insegurança Alimentar) que representa o indicador 2.1.2 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), os dados preliminares mostram um forte aumento de 14% da insegurança alimentar no mundo entre 2019 e 2020. Outros 303 milhões de pessoas foram afetadas por insegurança alimentar moderada e grave; e mais 140 milhões por insegurança alimentar grave em todo o planeta. (A estimativa do FIES divulgada anteriormente já mostrava que 2 bilhões de pessoas em todo o mundo padeciam de insegurança alimentar grave ou moderada em 2019, o que significa que não dispunham de alimentos suficientes e saudáveis; e quase 750 milhões – quase 10% da população mundial, enfrentavam uma insegurança alimentar grave, que equivale a dizer que estavam passando fome antes mesmo da pandemia).
Ainda segundo Torero, o aumento de 19% entre 2019 e 2020 foi mais pronunciado na América Latina e no Caribe (ALC) que em outras regiões do mundo: mais 44 milhões de pessoas foram afetadas em 2020 por insegurança alimentar moderada ou grave; e mais 21 milhões por insegurança alimentar grave.
O aumento da insegurança alimentar na América Latina entre 2019 e 2020 foi impulsionado por um aumento significativo na América do Sul (+27%). Nessa sub-região, mais 37 milhões de pessoas foram afetadas por insegurança alimentar moderada ou grave e mais 18 milhões por insegurança alimentar grave na sub-região sul, o que representou 85% de todo o aumento da fome em 2020 na América Latina!
Gráfico 1 – Prevalência de inseguranças alimentares moderada, severa e grave no Mundo, América Latina e América do Sul.
Fonte: Torero,M. 2020. Situación del hambre y la malnutrición y el impacto del covid-19 en Latinoamérica y el Caribe – Videoconferência para Ministros de Agricultura. (2020, dados preliminares)
Os dados do Brasil para 2020 corroboram, infelizmente, essas conclusões. Segundo a pesquisa VIGISAN da rede PENSAN, a proporção da população em insegurança alimentar grave atingiu 9% em dezembro de 2020, um salto de +55% em relação à estimativa de 5,8% para 2018; e os com insegurança alimentar grave e moderada passava dos 20%, o que significa que um de cada 5 brasileiros não tinha acesso a alimentos suficientes para manter uma vida saudável. E ainda tínhamos 35% da população em situação de insegurança alimentar leve, o que significa que tinha que sacrificar a qualidade da sua alimentação, comendo menos produtos saudáveis, por exemplo, e aumentando a possibilidade de vir a ter sobrepeso. No total a insegurança alimentar atingia 55%, ou seja, mais da metade dos brasileiros!
Para se ter ideia da gravidade da situação, vale a pena comparar com os dados da Venezuela, que junto com o Haiti são os dois países da região nos quais, sabidamente, uma grande proporção da população passa fome. O Programa Mundial de Alimentos (PMA) realizou uma pesquisa entre julho e setembro de 2019 e encontrou 7,9% da população em insegurança alimentar grave e 32,3% em situação de insegurança alimentar grave ou moderada, ou seja, aproximadamente um de cada 3 venezuelanos estava passando fome.
Uma outra pesquisa realizada pela Universidade Livre de Berlim, em colaboração com a UFMG e a UnB, também em dezembro de 2020, revelou estimativas ainda piores para o Brasil: 15% da população em insegurança alimentar grave, o que representa um aumento de quase 160% em relação à estimativa do IBGE para 2018. Essa mesma pesquisa mostrou que a insegurança alimentar atingia 59% dos domicílios do país, sendo ainda maior nos domicílios com crianças até 4 anos (71%) e com crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos (66%). Ou seja, a grande maioria das nossas crianças (praticamente 3 de cada 4) e dos nossos adolescentes (1 de cada 3) viviam em domicílios que não tinham segurança alimentar durante o primeiro ano da pandemia!
Em resumo, a fome aumentou muito em 2020, o primeiro ano da pandemia, especialmente nos países da América do Sul – considerados o celeiro do mundo! Porque a fome junto com o sobrepeso e a obesidade aumentaram mais justamente na América do Sul onde o agrobusiness é tido como bem-sucedido, ultrapassa os limites desse artigo. Deixo apenas uma indicação bibliográfica para quem se interessar: Morris, Michael et al. – Cenários alimentares do futuro: reinventando a agricultura na América Latina e no Caribe. Banco Mundial, Washington, novembro de 2020.
Fome e Obesidade
E não é apenas o aumento da fome que preocupa, mas também o aumento da obesidade, especialmente entre crianças e adolescentes, em grande parte decorrente da má qualidade da nossa alimentação devido ao alto custo dos alimentos saudáveis numa região que exporta commodities para o mundo todo…
O economista chefe da FAO também destacou na sua palestra que as dietas saudáveis são muito mais caras na região (cerca de 4 a 5 vezes o custo de uma dieta energética mínima) e não estão disponíveis para a maioria da população latino-americana que tem rendimentos muito baixos: “A elevada proporção de pessoas que não podem pagar uma alimentação saudável nos países da região pode promover maiores aumentos de sobrepeso e obesidade em adultos. Na ALC, o sobrepeso e a obesidade estão aumentando, afetando 262 milhões de adultos e 50 milhões de crianças e adolescentes. (…) Por outro lado, o excesso de peso infantil aumentou para 7,5% em 2019, situando-se acima da média mundial de 5,6%. Na América do Sul essa proporção é ainda maior: 7,9%. Em 2019, havia 4,7 milhões de crianças com atraso de crescimento e 3,9 milhões de crianças com excesso de peso na ALC”.
Como sabemos, uma criança mal alimentada tem o seu desenvolvimento intelectual e motor futuro comprometido. Estamos, portanto, comprometendo a performance das nossas gerações futuras; e o sobrepeso e a obesidade são causas de diabetes, pressão alta e problemas cardiovasculares que induzem uma proporção maior de mortes, especialmente agora na pandemia. Vale dizer que antes mesmo da covid-19, as doenças não transmissíveis (DNTs) já eram a principal causa de mortalidade na ALC causando 3 em 4 mortes de um total de 2,8 milhões de acordo com o diretor da FAO.
Segundo reportagem do Jornal da USP no Ar de 08/06/21, “o Atlas da Obesidade Infantil no Brasil, de 2019, mostra que três a cada dez crianças de 5 a 9 anos estão acima do peso. A previsão da Organização Mundial da Saúde é que o Brasil esteja na quinta posição no ranking de países com o maior número de crianças e adolescentes com obesidade, em 2030, caso medidas efetivas não sejam tomadas”.
No Brasil, segundo a já citada pesquisa da Universidade Livre de Berlim em parceria com a UFMG e a UnB, em 2020 houve uma redução de 85% no consumo de alimentos saudáveis nos domicílios com insegurança alimentar no primeiro ano da pandemia, com destaque para as carnes (-44%), frutas (-41%) e hortaliças e legumes (-37%). Ou seja, mais de um terço das crianças e adolescentes brasileiros correm um sério risco de engrossarem a legião de obesos que cresce no país se sobreviverem à pandemia!
Note-se pelo gráfico 2 que a evolução do sobrepeso e da obesidade no Brasil já era alarmante antes mesmo da pandemia. Vale dizer que fome, sobrepeso e obesidade são diferentes manifestações da má nutrição embora muita gente ainda ache que uma criança “gordinha” é um modelo de saúde…
Gráfico 2 – Evolução da prevalência de sobrepeso e obesidade na população adulta (+22 anos) brasileira.
Fonte: IBGE, 2006; IBGE, 2015; IBGE, Ministério da Saúde, 2015; IBGE, Ministério da Saúde, 2020.
Não há dúvida que uma das razões do aumento da obesidade no Brasil e na região é o custo elevado de uma dieta saudável, como mostram os dados do gráfico 3, que impede que parte significativa da população mais pobre tenha acesso a alimentos de qualidade, principalmente os alimentos frescos como frutas, legumes e verduras.
Gráfico 3 – Custo por tipo de dieta no mundo, América do Sul e Brasil em US$ ppc.
Fonte: SOFI, 2020.
Mas não é apenas o custo maior de uma dieta saudável a causa dessa epidemia de obesidade no Brasil. Pelo menos dois outros fatores essenciais contribuem para isso. O primeiro deles é o baixo nível de salários pagos no pais. Ou seja, podemos dizer que não é apenas o custo dos alimentos saudáveis que é alto, também são os salários dos nossos trabalhadores que são muito baixos!
É preciso entender que os salários estão muito mais baixos no Brasil atualmente em grande parte pela falta de uma política de valorização do salário mínimo, diferentemente do que ocorreu no período dos governos Lula e Dilma. O salário mínimo funciona como um piso para os salários pagos nos diferentes setores da economia, sendo inclusive uma espécie de “farol” para os pagamentos de prestação de serviços nos estratos de renda mais baixos, especialmente nos segmentos informais da economia, como mostrou o nosso saudoso professor e ex-reitor Paulo Renato de Souza na sua tese de doutoramento pelo IE/Unicamp. Foi essa política de valorização do salário mínimo na primeira década dos anos 2000 uma das principais razões de o Brasil ter saído do mapa da fome em 2014!
Ocorre que os reajustes de salários ocorridos nos últimos meses esteve sempre abaixo da inflação como mostra o gráfico 4, o que significa simplesmente que o poder aquisitivo da população mais pobre diminuiu ainda mais durante a pandemia, sem considerar o aumento dos níveis de desemprego e de informalidade. E chegou a aumentar até mesmo o índice de Gini da distribuição da renda no país, que já era um dos maiores do mundo, e que aumentou ainda mais na pandemia! Em resumo houve uma redução generalizada da renda dos segmentos mais pobres da população brasileira, o que já vinha ocorrendo antes mesmo da pandemia, levando a um aumento da fome, sobrepeso e obesidade. E também da desigualdade!
Gráfico 4 – Reajustes salariais medianos nos últimos 12 meses
Fonte: Salariômetro, FIPE, 2021.
Mas há ainda um segundo e fundamental elemento que ajuda a explicar o rápido aumento do sobrepeso e da obesidade no Brasil: a falta de uma política pública ativa para controlar a publicidade e rotulagem dos alimentos. Como explicou a pesquisadora Daniela Neri, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens) em entrevista ao Jornal da USP no Ar já citado, “Demos um passo em relação à rotulagem, mas, infelizmente, não adotamos o modelo de perfil nutricional adotado nesses países” que já adotaram essa prática. “No Brasil, essa questão da rotulagem nutricional foi discutida pela Anvisa por seis anos, de 2014 a 2020. A decisão final, tomada em outubro do ano passado e que entra em vigor a partir de outubro de 2022, foi a de usar uma rotulagem frontal em formato de lupa para alertar sobre o alto teor de nutrientes considerados críticos para a saúde, diferente daquela adotada pelo Chile — que inspirou regulamentação em outros países latino-americanos, como Peru, Uruguai e México”. Ainda segundo a reportagem, “a lei chilena de rotulagem nutricional fez parte de um projeto político para combater os altos índices de obesidade no país, principalmente a obesidade infantil. Outra medida foi a proibição da publicidade televisiva de alimentos ultraprocessados, com excesso de calorias, das 6h às 22h, tanto para TV aberta quanto fechada. As embalagens dos alimentos não podem, também, estampar personagens infantis, desenhos ou outros atrativos voltados ao incentivo do consumo”.
O que fazer?
Na sua recomendação final, o economista-chefe da FAO destacou que “a pandemia covid-19 envia um alerta sobre a fragilidade da segurança alimentar na região da América Latina e Caribe. Mas também nos dá a oportunidade de reavaliar como abordamos as causas profundas da fome e construímos resiliência contra os riscos para construir um futuro melhor”. Destaco duas medidas recomendadas pelo economista-chefe da FAO:
- Foco em mecanismos de proteção social para apoiar o acesso à alimentação para os mais pobres e aqueles cuja renda foi mais afetada;
- Redirecionar subsídios agrícolas das commodities para os alimentos saudáveis.
Quero acrescentar uma terceira, que me parece fundamental para o Brasil que possui um sistema público e gratuito que entrega merenda escolar de qualidade para as nossas crianças e adolescentes: fortalecer o Programa Nacional de Alimentação Escolar!
O PNAE é uma política pública fundamental para a promoção da segurança alimentar e nutricional das nossas crianças e adolescentes, reconhecida internacionalmente por garantir comida saudável em todo o Brasil. Infelizmente, diferentes Projetos de Lei (PLs) atualmente em discussão no Congresso Nacional ameaçam reduzir as compras de diferentes segmentos da agricultura familiar, na contramão da garantia de uma alimentação saudável e nutritiva para os nossos estudantes.
A pandemia dificultou muito as compras locais de alimentos frescos da agricultura familiar, que a lei prevê ser de 30%, além de ter deixado milhões de crianças sem merenda por diferentes razões, como vêm insistentemente denunciando alguns poucos meios da nossa imprensa.
A PNAE precisa ser preservada para continuar a ser o raio de esperança de um novo amanhecer da longa noite da fome que estão enfrentando milhões de crianças brasileiras.
Agradeço os comentários de João Pedro Magro. Uma versão preliminar resumida com o mesmo título desse artigo foi publicada pelo blog do Estadão de 16 de junho de 2021.
José Graziano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Foi ministro extraordinário da Segurança Alimentar e Combate a Fome do primeiro governo Lula e diretor geral da FAO entre 2012 e 2019. Atualmente é diretor geral do Instituto Fome Zero (www.institutofomezero.org)