Modo como se entende e se vive a morte sofre infuências desde culturais até econômicas
Alexandre Hilsdorf, Maíra Torres e Mariana Meira
O sol se põe no horizonte, quando dois homens atravessam a Caatinga. Padecendo do calor, carregam em um dos ombros um pedaço de pau, no qual uma rede fora amarrada por braços fortes e cansados. Nela, jaz o corpo de Severino, que será enterrado quando a caminhada fúnebre, acompanhada de cantos e orações, chegar ao seu fim.
Essa é uma cena da peça Morte e Vida Severina, um auto de Natal escrito por João Cabral de Melo Neto em 1954, encenada pela primeira vez em 1957 no 1º Festival Nacional de Teatro de Estudantes em Recife. Após sua publicação, em 1965, a peça teatral se tornou uma das mais relevantes obras da literatura brasileira. Apesar de ser uma obra ficcional, retrata as dificuldades econômicas encontradas no sertão nordestino do Brasil há mais de meio século. A cena descrita está próxima da realidade: ainda exemplifica a vida (e a morte) em algumas comunidades no interior do Brasil.
Isso se dá porque a questão financeira é um dos fatores que influenciam no modo como as pessoas ritualizam a morte. A ponderação é feita por Roberto Barreto Marques, antropólogo e professor de sociologia do Instituto Federal do Maranhão, em Açailândia (MA). “Algumas pessoas ainda colocam seus entes nas redes em que dormiam e os enterram assim, porque a estrutura de um caixão não é algo economicamente acessível a todos”, explica.
“Seja qual for a concepção de morte adotada, ela é um evento que mobiliza e articula diferentes esferas da vida social de um determinado grupo: há, certamente, uma dimensão religiosa, mas também uma jurídica, uma social propriamente dita, uma que é psicológica, outra que é econômica e mercadológica etc”. A frase é do antropólogo Hugo Ricardo Soares, que entende a morte a partir de um termo cunhado pelo antropólogo francês Marcel Mauss, o “fato social total”, lembrando como ela é um evento no qual diversas esferas da vida social e psicológica são tecidas em conjunto.
Um exemplo é como, até hoje, em alguns lugares no interior do Brasil, persiste o costume de velar uma pessoa falecida na sala de estar, com portas e janelas abertas como uma forma de convite à cerimônia. Ao final, levam o corpo e, ainda com a casa aberta, varrem o local como um simbolismo de limpeza do espaço.
Ricardo Soares, professor na Universidade Federal do Espírito Santo, estabelece uma distinção geral entre as concepções de caráter laico e racionalista e as religiosamente informadas. Na primeira, a morte é entendida como ponto final natural de toda e qualquer forma ou impulso de vida, enquanto que nas religiosamente informadas, a morte pode ser vista como uma passagem ou como uma travessia que todo ser vivo, em algum momento, “precisará enfrentar para alcançar a outra (e verdadeira) vida”.
Já para o enterro, não há tanto espaço para poesia. Na maior parte do Brasil existe um conjunto de regras sanitárias que impedem o sepultamento em terrenos particulares, porque o necrochorume liberado pelo cadáver pode interferir na qualidade do solo e do lençol freático. Mesmo assim, longe dos grandes centros urbanos, essas normas às vezes são contrariadas, e os entes são enterrados próximos de casa, em “cemitérios privados” da família. É o que conta Barreto, que observou diversas ritualizações da morte durante seus anos de mestrado e doutorado em antropologia.
As mudanças culturais em torno da morte
No entanto, os costumes não estão cristalizados e sofrem alterações com o tempo, promovidas por fatores internos à cultura ou influências externas, advindas de povos colonizadores ou tomados como “modelo” por uma sociedade.
No Brasil, por exemplo, nem sempre velamos o corpo da maneira como a maioria faz hoje. Em um período pré-colonização, os membros do grupo indígena Timbira guardavam partes de seus parentes em vasos fúnebres. Depois, com a chegada dos europeus, os costumes relacionados aos cultos da morte começaram a mudar, se assemelhando cada vez mais ao que era praticado na Europa à época: caixão na sala, refeição para os convidados, cortejo do caixão ao túmulo por vezes com cavalos e carruagens para demonstrar a importância social da pessoa, e, como tradição para as mulheres, longos períodos usando preto e respeitando o “luto”.
Soares aponta que uma das novidades trazidas pelo cristianismo foi a alteração das relações entre vivos e mortos. Citando o trabalho do historiador Ernesto de Martino, que se dedicou ao estudo das populações do sul da Itália, ele afirma que teria havido uma “fratura na instituição cultural do lamento fúnebre”. Cristo seria um vencedor da morte, “que ensina aos homens o destemor ao falecido”. Assim, o cristianismo rejeitou o lamento fúnebre, por considerá-lo um costume pagão. Ao mesmo tempo, a lamentação de Maria “imortalizada pelas muitas ‘Pietàs’ esculpidas e pintadas ao longo da história, tornou-se o exemplo paradigmático da dor da perda de um ente querido”. Assim, o cristianismo teria elaborado uma técnica cultural, com um saber chorar adequado ao rito da lamentação.
Outro costume importante, e de relação entre o mundo dos vivos e dos mortos para o catolicismo, seria o culto dos santos, que institui a figura do morto público. Segundo Soares, esse fato “altera a relação com o cadáver que, sendo ‘muito especial’ deixa de ser um objeto repulsivo e marcado por tabus para se tornar um objeto de desejo”. Os restos mortais de pessoas santificadas passam a ser conhecidos como “relíquias”, capazes de guardar a força religiosa e espiritual mesmo após a morte. “Essa é a representação mais clara que de o santo venceu a morte”, completa.
Ao seu modo, os brasileiros foram somando ritos e simbologias, até que, ao longo do século XX, o ritual pós-morte passou a ganhar características mais semelhantes ao da América do Norte, acompanhando a expansão do capitalismo – e dos Estados Unidos como berço econômico e cultural da globalização. Com isso, criaram-se locais privados para os velórios, mais rápidos e impessoais, agora feitos fora de casa e sem uma “recepção” por parte dos familiares. O uso de carpideiras, ainda comum em alguns lugares, ficou mais obsoleto, assim como os cortejos foram substituídos pelo hábito de pessoas próximas ao morto carregarem-no até a cova. A representação social do luto, antes prolongada e aparente nas vestimentas por meses, se tornou mais breve e restrita ao velório.
Barreto defende que, além dos ritos, o choro e a maneira de se comportar durante uma cerimônia fúnebre também estão sob influências culturais. “Se você estivesse no Brasil do século XIX, seria normal ver pessoas usando preto por algum tempo depois da morte de alguém próximo, numa representação de um período de luto, socialmente estabelecido”, pondera. Para ele, esse comportamento não seria bem visto nos dias de hoje, já que existe uma cobrança social de rápida superação do luto, coerente ao ritmo da vida contemporânea.
Renato Alves de Oliveira, sociólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e pesquisador de antropologia da morte, afirma que é impossível dissociar a religião da maneira de encarar a morte. Seu principal objeto de pesquisa é a escatologia da morte, ou seja, a forma como cada indivíduo tenta lidar com a noção de fim da vida, que, segundo ele, é uma questão que se busca resolver por meio da fé. “A morte sempre passa pela religião, visto que ela está dentro de um sistema de práticas culturais. E toda religião, não importa qual, tem uma abordagem escatológica, pois quer solucionar o problema de que não se vive para sempre”, justifica.
Tanatologia, o conjunto de saberes em torno da morte
Por conta das mudanças e incorporações de diversas visões que as pessoas têm sobre a morte ao longo dos anos, Barreto defende que o tema do luto é “muito vasto, especialmente quando se faz um recuo temporal grande, de séculos”. Para Oliveira, a discussão em si sobre a morte é contínua e abrangente, explorada pelos meios de comunicação e ambientes acadêmicos, principalmente a partir do século XX, considerado como o “século da morte”. Mesmo assim, para ele, ainda existe um tabu ao debater sobre isso. “As pessoas, de forma geral, têm pouco apetite para falar desse tipo de tema existencial profundo e se embaraçam, justamente porque não desejam morrer”, aponta.
A ausência de diálogo sobre o tema é mais comum no Brasil, segundo Soares. Aqui, o estudo da história, da sociologia e da antropologia da morte, a tanatologia, não ganha o mesmo espaço dado na Europa, especialmente na Itália, e nos países anglo-saxões. Nesses últimos, o estudo da “história da morte” “é um campo relativamente conhecido e desenvolvido, compondo inclusive currículos acadêmicos nas universidades”, afirma. O uso desse conhecimento não tem finalidade restrita à análise da academia, mas é empregado “por ‘profissionais da morte’, como funcionários de funerárias, que ‘preparam’ os cadáveres para velórios e enterros; e profissionais de saúde que trabalham com tratamentos paliativos de doentes terminais, por exemplo”, exemplifica.
Momento de passagem
Oliveira compara o processo de morrer, antigamente “assistido” por toda a família e amigos, ao estar moribundo nos dias de hoje, mais individualizado. “Houve um tempo em que o sujeito padecia de uma morte com caráter social, porque naquele momento ele era rodeado de várias pessoas para experienciar seu óbito. Um mensageiro era responsável por avisar sobre a morte e até mesmo as crianças eram autorizadas a ir assistir. Já hoje, o hospital é o endereço do início e do fim da vida”, diz Oliveira.
Essas mudanças na forma de ver a morte permanecem constantes até os dias de hoje. A preocupação dos antropólogos, no entanto, como Barreto expõe, é sobre como as pessoas são afetadas ao longo do tempo por encurtar ou até excluir o evento da morte de suas vidas. “O ser humano precisa sentir a perda para compreender a ausência. Ele precisa de marcos, como aniversários e velórios, para sentir a passagem do tempo e a mudança na rotina”, defende. Soares, ainda citando o trabalho de De Martino, lembra do conceito de “crise da presença”. A “presença” refere-se à capacidade de agir histórica e culturalmente. Já a “crise” está ligada à perda dessa capacidade, podendo “atingir indivíduos (uma depressão, um luto que não passa, uma crise de autoestima etc.) ou grupos inteiros (movimentos apocalípticos, messiânicos etc.)”.
A pandemia de Covid-19 foi um evento que serviu de cenário para acelerar essa discussão. Por questões sanitárias, não foi permitido o velório de pessoas que morreram em decorrência do coronavírus. Foi necessário e, pela frequência das mortes, tornou-se normal a realização de um velório mais curto e impessoal.
Essa maneira de se comportar, também diante do luto, caracterizada por Barreto como sendo mais “individualista”, deve se tornar uma tendência cada vez mais popular e comum, sendo um reflexo do momento e contexto atual. Diante da liquidez das relações humanas e do frequente fluxo migratório para trabalho ou moradia em escala local e até mesmo global, a ausência em velórios e sua celebração de maneiras cada vez mais breves deve ser uma tendência.
Alexandre Hilsdorf é doutor em ciências biológicas e aluno da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)
Maíra Torres é jornalista e aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)
Mariana Meira é jornalista e aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)