Por Jaime César Coelho
Nas últimas semanas o mundo assistiu estarrecido o vaivém da política tarifária do presidente dos EUA. As taxas de câmbio oscilaram, os mercados de capitais balançaram forte, os fluxos de comércio entraram em parafuso e a elite econômica dos EUA deu sinais de que talvez o presidente dos EUA seja não somente um jogador blefador, mas algo mais perigoso, um doido varrido.
Trump age como alguém que ateia fogo nos campos vizinhos e pensa assim: “vou meter fogo, queimar tudo em volta, inclusive sairei chamuscado, mas sou dono da única mangueira de liquidez mundial (o dólar), o que me permite aniquilar os vizinhos, apagar o fogo que me ameaça e depois ver o que sobrou e pegar o terreno ao redor”.
Há nisto tudo uma espécie de excesso de autoestima, típico de quem acredita na própria mentira que conta. O presidente com topete dourado e rosto bronzeado-vermelho mais parece um ator mambembe e desqualificado, que encena a própria loucura até que algum palhaço caridoso venha e diga a todos que o rei está nu, e quem sabe ele possa passar a coroa e o cetro para aqueles que, de alguma forma, consigam trazer uma dose qualquer de consequência e lógica ao mundo das relações multilaterais.
É provável que alguns recuos adotados na guerra comercial, em especial a suspensão tarifária recíproca em produtos tecnologicamente sensíveis que afetavam a cadeia de suprimentos de indústrias estadunidenses (como a gigante Apple) tenham sido efetivados também pelo susto que as medidas produziram nos mercados financeiros, ameaçando transformar a guerra tarifária numa crise de crédito e de pagamentos e produzindo algo mais grave para o poder americano: contaminar os títulos da dívida dos EUA e gerar uma crise sem precedentes na confiança no dólar.
A indústria dos EUA criou uma extensa rede de cadeias de valor durante o período da globalização, cuja gênese pertence ao longo processo de retomada da hegemonia americana depois da crise de Bretton Woods de 1971. “De acordo com a Associação Nacional de Manufatureiros dos EUA, 56% dos bens importados dos EUA são atualmente insumos manufaturados os quais em grande medida vêm da China.” (tradução nossa; Tariffs, Triffin and the dollar – Michael Roberts Blog, 13/04/2025)
Se os preços dos insumos são afetados pelas tarifas, a competitividade dos produtos da indústria dos EUA diminui e no curto prazo a elevação dos custos resultará em elevação dos preços. Se no longo prazo as tarifas podem gerar efeitos de substituição de importações, algo a ser comprovado, é razoável supor que num país com regras democráticas o governo de plantão já tenha sido afetado negativamente em termos de popularidade casos os preços aumentem mais que a renda.
Há um certo consenso que a inflação foi um fator decisivo para a derrota de Biden, então vale perguntar porque seria diferente com Trump. Sinais de fadiga da política em curso já poderão ser sentidos nas eleições de meio termo, como são conhecidas as eleições que ocorrerão durante o ano de 2026 e que renovarão 100% da câmara e 35% do senado. O presidente dos EUA terá que enfrentar as contradições que sua política tarifária está produzindo, pois a intenção de trocar a diminuição de impostos para os ricos por aumento das receitas de tarifa externa não parece sustentável e isto levará a um descontentamento crescente entre seus amigos bilionários. Tanto no plano interno como no plano externo o trumpismo enfrentará déficits gêmeos de credibilidade e legitimidade. No plano externo as recentes medidas de Trump causaram surpresa porque representam uma aparente mudança na política de friend-shoring que vinha sendo adotada desde seu primeiro mandato, passando por Biden.
A política de friend-shoring[1] consistia em fortalecer a aliança com os amigos e aumentar, via tarifas e sanções econômicas, a pressão sobre os inimigos, notadamente Rússia e China. Porém, neste início de mandato, Trump ateou fogo em todas as direções. Contou com apoio de repúblicas bananeiras, onde as elites locais estão sempre dispostas a trocar apoio por migalhas (conhecemos bem este comportamento na América Latina), mas gerou a ira de amigos tradicionais, como Canadá e União Europeia, embora neste caso tenha jogado uma batata quente na mão de seus aliados (Meloni e Orban). Sua atitude chegou a produzir encontros inusitados, como o ocorrido entre China, Japão e Coreia do Sul para discutir parcerias comerciais como resposta à agressão tarifária dos EUA.
Mas insisto, para além da eficácia para lá de duvidosa das medidas tarifárias, existem perigos que atingem o mercado de títulos e moeda (Trump Trade War Could Challenge the US Credibility, says Jamie Dimon). O mundo financeirizado foi uma estratégia pensada e organizada pelo poder da superpotência após a crise do padrão dólar-ouro e a flutuação das taxas de câmbio com desregulamentações competitivas que levaram à abertura generalizada das contas de capital. Isto permitiu que os mercados financeiros e seus novos atores (fundos de investimento, fundos mútuos de gestão de risco, CIAs de seguros, Fundos de Pensão) passassem a gerir carteiras que se compõem por diferentes títulos (securities) que se comunicam em redes que ligam mercados futuros com mercados spot, títulos de baixos risco com títulos de alto risco, ações e renda fixa, tendo o dólar como moeda de referência, e os títulos do tesouro americano como refúgio em momentos de incerteza.
Neste mercado volátil, incerto, dinâmico e gigantesco, o Banco Central dos EUA aparece como emprestador de última instância e o dólar como referência de liquidação contratual. Alterações abruptas nas expectativas dos agentes repercutem de forma negativa na liquidez mundial e contaminam a economia real. A guerra comercial não se restringe ao universo dos bens transacionados, mas ao conjunto dos fluxos internacionais de um modo geral e altera o valor relativo das moedas impactando a dinâmica competitiva, algo que alguns supõem que o presidente dos EUA tenha noção, mas que não parece ter calculado com precisão. A guerra comercial pode se converter numa guerra econômica total gerando um novo período de estagflação e dividindo o mundo em zonas de influência.
E se o dólar começar a flutuar no sentido contrário ao pretendido, afetando a balança comercial negativamente? E se o movimento errático de Trump afetar a credibilidade no médio prazo da moeda estadunidense?
Esta resposta só o tempo trará. Os EUA são uma economia que consome mais que produz, e para isto apresentam déficits tanto nas contas internas como na balança comercial. Isto ocorre há muito tempo, mais precisamente desde os anos 1960. Uma economia que funciona assim é uma economia de dívida, que cumpre os compromissos basicamente pelo efeito de rede que a interdependência global gerou a partir da internacionalização do dólar. Como um Estado que produz a moeda que pode ser utilizada para cumprir com os compromissos externos, a conta acaba fechando, pois isto permite que os compromissos sejam honrados, sem efeitos inflacionários, mas ao custo de um endividamento crescente.
Qual o limite para este endividamento? Ninguém sabe, portanto, é muito improvável que se saiba, também, qual seria o limite para a manutenção do dólar como moeda internacional. Um cenário provável é que o mundo caminhe para uma substituição gradativa da moeda de referência – o dólar – para um sistema monetário internacional sem moeda líder, mas isto implicaria uma aceitação por parte do governo dos EUA de uma perda suave da hegemonia mundial com a consequente queda no padrão de vida da população estadunidense, algo que nenhum governo tem demonstrado aceitar, seja ele democrata, seja republicano.
O hegemon percebeu que seu poder está em queda e sua estratégia para reverter isto parece conduzir a uma atitude de exportação da guerra e agora, com Trump, de desestruturação das cadeias globais de valor. Está implícito nesta atitude a crença de que se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, ou seja, a fé na força do dólar, posto que não há possibilidade de uma substituição cabal do dólar por outra moeda qualquer existente. A atitude do governo Trump, como de resto foi com Obama e Biden, não conduze a uma possível construção de um novo Bretton Woods (a conferência de 1944 que consagrou a hegemonia do dólar), o que seria um passo em direção à uma aterrissagem hegemônica mais suave.
Na ausência de uma nova ordem e na permanência de uma superpotência predisposta a incendiar a ordem internacional, restará para cada país encontrar suas estratégias de sobrevivência, e se sairá melhor quem combinar capacidade de produção, dinamismo tecnológico, baixa dependência energética, capacidade de defesa, endividamento externo baixo e reservas robustas. Ao mesmo tempo o mundo terá que lidar com a urgência de uma estratégia que impeça a guerra total. Tempos de grandes desafios, de grandes riscos e de grandes oportunidades.
Jaime César Coelho é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os EUA (INCT-INEU/CNPq)
[1] Para uma leitura mais aprofundada do assunto ver: COELHO, J. C. e MARTINS, A. R. A. Ordem e Crise? A questão do poder financeiro e monetário dos Estados Unidos no contexto da guerra na Ucrânia. In: Sebastião C. Velasco e Cruz; Neusa M. Bojikian. (org.). Tempos Difíceis: o primeiro tempo do governo Biden e as Eleições de meio de mandato. 1ed. SP: Unesp, 2023, p. 193-206; BRANCACCIO, Emiliano; CALIFANO, Andrea. War, Sanctions, Deglobalizaiton: Which Comes First? In Revista Brasileira de Política Internacional, 66 (1) e004, 2023.