Por Piero Leirner
É “fato” amplamente espalhado pela imprensa que Bolsonaro provoca constantes “intervenções” nas Forças Armadas, e que há “militares bolsonaristas” que ajudam a produzir uma “polarização” interna em relação aos “legalistas”. Pouco se percebe que Bolsonaro é um biombo, produzido justamente pelo comando das Forças Armadas para que os raios caiam sempre em um mesmo lugar conveniente. O que será dele ainda não sabemos, mas é possível falar com alguma segurança que o processo de “reinicialização” do Estado em “modo de segurança” com militares atuando como “administradores do sistema operacional” ainda está em curso.
Como seria possível definir o papel dos militares no contexto atual, considerando que de forma diferente daquilo que fomos acostumados em diversas ocasiões na República, não houve “golpe aparente”? É notório que militares abundam na literatura acadêmica e na imprensa quando duas ocasiões ocorrem: em guerras ou golpes. Agora estamos numa situação em que não há semana que não se fale deles, mas nenhuma dessas ocorrências está exatamente clara. De um lado há sim uma ideia bastante disseminada – especialmente entre a esquerda – de que houve um “golpe parlamentar” em 2016, por ocasião do impedimento do Governo Dilma Rousseff; mas também que houve um “golpe” jurídico com a Lava-Jato e a prisão de Lula somada à impossibilidade de ele concorrer às eleições de 2018; e, finalmente, com a ideia de que Bolsonaro “dará um gople” a qualquer hora. Nenhuma dessas possibilidades vê claramente, contudo, protagonismo militar nessas ações. É notável que nelas a carapuça é vestida no Poder Legislativo, no Judiciário, e no atual chefe do Executivo. Se militares aparecem, isto se dá em papéis subsidiários, como em “tuítes”, ou “obedecendo” e/ou “convencidos” por Bolsonaro.
Minha hipótese vai na direção contrária disso. Entendo que eles sempre estiveram imbricados a este processo, mas se utilizando de uma estratégia própria daquilo que é chamado de uma “guerra híbrida” (ou “guerra de 4ª geração”, ou “guerra psicológica de espectro total”), cuja estratégia principal é a “abordagem indireta”, i.é, o uso de agentes terceirizados para atingir seus objetivos visando o máximo de camuflagem possível. Se há golpe, portanto, ele se faz nos códigos de um novo tipo de guerra, que tem na disseminação de (des)informações e na ação direta sobre a percepção social seu “centro de gravidade”. Não estou obviamente tratando os militares como uma coterie que tem condições infinitas de manipulação da realidade, mas há alguns pontos que podem e devem ser considerados ao analisá-los: 1) eles têm mais coesão e interdependência pessoal interna que outras corporações e grupos, por conta de características intrísecas à sua socialização; 2) eles têm barreiras simbólicas e códigos próprios que dificultam a leitura de suas ações por quem é “de fora”[1]; 3) eles têm uma estrutura hierárquica que permite que um pequeno grupo no topo da hierarquia elabore ações e estratégias de modo coeso, integrado e sigiloso; 4) eles têm por dever de ofício treinamento e expertise em técnicas de dissimulação, camuflagem e criptografia de suas posições; 5) eles têm o controle de uma máquina de informações que opera no registro de uma legislação própria; 6) eles têm capilaridade em todo território nacional; 7) eles têm, no Brasil, hitórico de conspirações e golpes.
Todas essas características dão enorme vantagem a eles quando buscam uma ação política, com vias para disseminação de ideologias, mas, principalmente de informações e contrainformações. Em outras palavras, enquanto estamos engatinhando no terreno das fake news, militares estão operando “fakes” e “news” como um conjunto de dispositivos que produzem ações e reações monitoradas por uma extensa rede de sensores (as “segundas seções” de cada unidade militar do Brasil) que sobem na cadeia de comando o que é necessário para uma tomada de decisões que pode, por exemplo, favorecer ou desfavorecer uma política ou uma candidatura; ou então de passar informações para a imprensa que criem cenários mais ou menos favoráveis para seus “procuradores” realizarem ações em determinado sentido. Sei do risco de ser acusado aqui de realizar uma “teoria da conspiração”; mas posso assegurar que não há outro modo de se fazer a “teoria de uma conspiração” se não seguirmos minimamente aquilo que é da natureza dos nativos que a realizam. Permitam-me assim recuar um pouco no tempo para tentar reproduzir de forma minimamente plausível a engenharia militar dos fatos políticos que nos fizeram chegar até aqui.
A janela de 2013 e além
Desde 2013 houve uma grande especulação tanto em meios acadêmicos quanto em publicações das mais variadas sobre quais as causas de instituições estatais brasileiras viverem movimentos de “disrupção”. “Polarização”, “crise”, “anomia” foram termos amplamente usados para tentar explicar um movimento que começou com uma espécie de “história espontânea” eclodida em protestos que se dirigiam contra várias das cadeias de representação política em 2013; e, que, finalmente, culminaram na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Passando pela Lava-Jato e a ascenção de juízes e procuradores, pelo impeachment, pela prisão de Lula; quando estes eventos são tomados em seu conjunto, percebemos que há algo a se considerar: é preciso se perguntar o que traz sua conexão, para não tratar as disposições que levaram o País à sua “guinada reacionária” como mera coincidência. Há mais do que evidências de como certos atores estatais foram mutuamente reforçando seus papéis e buscando operar um certo tipo de “insurgência corporativa” cujos reflexos estão sendo bem sentidos exatamente agora, em 2022. As “instituições fragmentadas”, os “poderes sob ataque”, o “Brasil polarizado” não são obra do acaso. No meio disso alguém sempre permaneceu intacto e sempre está sendo lembrado como “fiel da balança”, e isso não é unilateral.
Não é só Bolsonaro quem diz que no fundo aqueles que decidem se somos ou não uma democracia são os militares. Quando o ministro Luís Barroso, do STF/TSE chama militares como “carimbo” que atesta a lisura das eleições, ele também está dizendo isso. Embora os atuais eleitos, mas não só eles, digam que até agora tudo se passou dentro de um “processo democrático”, em termos institucionais foram incontáveis as vezes em que agentes dos Poderes da República colaboraram ativamente na tomada do poder pelo atual consórcio direitista. O mantra de que “as instituições estão funcionando normalmente” foi particularmente pronunciado por setores do Judiciário e por militares que agora chegaram ao poder; mas não só. Basta lembrar que um mês depois da troca de Lula por Haddad como presidenciável, o PT abandonou o lema “eleição sem Lula é fraude” e atestou a lisura do pleito, reconhecendo que tudo operou dentro do jogo democrático. De outro lado, de forma bastante surpreendente, quem assumiu ainda durante o processo eleitoral o discurso de fraude foi o candidato vitorioso, que até agora sustenta esse “sequestro de pauta”. Caso ainda não se tenha percebido aonde podemos chegar com isso, permitam-me colocar que esse tipo de “operação de inversão de posições” é algo bem estudado em manuais de operação de dissimulação e manipulação psicológica militares, as chamadas decept operations.
Uma delas, e talvez a mais impressionante de todas, tem a ver com a manipulação da imagem do próprio Bolsonaro. Embora ele próprio seja um capitão do Exército, passado para a inatividade (a pedido) ainda no começo de sua carreira militar na sequência de um complicado processo por indisciplina (detonada pela tentativa de produção de uma conspiração), tomado até os idos de 2011 como um “mau militar” pelos próprios fardados, de repente surge para dentro das Forças Armadas como uma opção que vai retomar um País mitológico, outrora governado por eles mesmos, e que foi roubado por uma esquerda que visava sobretudo implantar um projeto de vingança em relação às próprias Forças Armadas. Este foi o registro disseminado internamente por militares que estavam confrontando a CNV (Comissão Nacional da Verdade). Para eles não era uma política de “reparação” histórica, mas sim uma tentativa de bombardear a imagem de integridade das Forças Armadas e provocar sua fragmentação, com a reabilitação de “colunas” que outrora polarizavam a cadeia de comando e criavam uma disrupção nesta. A isso foi associada a ideia de que o “modo petista” de produzir uma guerra cultural para dentro das Forças Armadas trazia consigo a criação de “boquinhas” e “aposentadorias” para “amigos”, complementando um projeto de “aparelhamento” da máquina de Governo e corrupção. Como procurei mostrar em outros textos[2], foi aí que ganhou densidade a versão de que o PT estava “fragmentando o País”, produzindo uma “polarização” etc.
Como estamos vendo hoje, essa versão ganhou muito corpo. Não estou dizendo que ela foi uma invenção dos militares – eles próprios pegaram isso de várias fontes, como por exemplo de Olavo de Carvalho. Mas ele próprio, por sua vez, outrora ouviu coisas sobre o “gramscismo” como nova estratégia das esquerdas mundiais nos próprios meios militares, como na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, na Escola Superior de Guerra e no Clube Militar, que já falavam disso desde os anos 1980. Essas noções e construções ideológicas circulam há tempos, não é possível nem preciso estabelecer sua origem, pois isso tanto faz. O que interessa é como se manipulou esse tipo de informação recentemente visando um objetivo. No caso das Forças Armadas, isso passou por uma manobra interna de disseminação da noção de que a “polarização petista” era uma ação de guerra híbrida visando uma balcanização do Brasil. É notável que aquilo que eles chamam de “ditadura do politicamente correto” apareceu como uma das várias camadas que foram usadas para preencher a estrutura desse argumento central: assim, “racismo reverso”, “feminismo”, “indigenismo”, “onguismo”, i.é, “identitarismos” formaram o platô que eles deveriam contra-atacar, neutralizar e ocupar. Note-se, assim, que de certa forma houve um uso da noção de guerra híbrida para produzir… uma guerra híbrida!
Nesse sentido, 2013 abriu para eles uma “janela” para operar uma intensificação de “ataque cognitivo” visando desestabilizar o então Governo Dilma. A noção de “protesto” não só viria a ser retrabalhada, com o aparecimento de grupos espalhados pelo País sugerindo uma “captura” do nacional, mas sobretudo foi sendo construída em vários canais de comunicação militares (por exemplo, com membros do Judiciário, MPF, PF, Polícias etc., em lugares como a ESG, Rotary-Clubes, Maçonarias, entre outros) a noção de que era necessária uma “insurgência” para retomar um Estado que estava sendo aparelhado por uma operação de guerra empreendida pela esquerda “internacional” (por exemplo, pelo “Foro de São Paulo”). Não foi mera coincidência que em 2014, apenas duas semanas depois do 2º turno das eleições, os militares da ativa lançaram a cadidatura de Bolsonaro à Presidência em 2018 dentro da Aman – Academia Militar das Agulhas Negras.
Epílogo: por que Bolsonaro?
Para responder a essa pergunta, precisamos compreender que a operação psicológica – ou cognitiva – de “inversão de percepções” ocupa o centro de gravidade do modus operandi dessa escala da guerra híbrida. Transformar o “mau militar” no “dispositivo da antipolítica” que produziria uma “reviravolta” faz parte de um mesmo encaixe de predisposições. A primeira, e mais importante delas, é a de que ele pode operar como uma máquina de contradições, disparando a esmo para todo lado, pois ele é simbolicamente vazio pela sua absoluta falta de comprometimento e pela sua negatividade absoluta. Assim, desde o começo da campanha – em 2014 – a ideia foi moldá-lo como uma peça de infantaria na “linha de contato” com o inimigo e estabelecer como contraponto uma “linha de comando” invisibilizada. É notável que os militares conseguiram disseminar a informação que “aderiram à campanha” somente em meados de 2018, mesmo com ele fazendo campanha autorizada dentro dos quartéis há 4 anos.
A conveniência desta versão reside justamente no fato de que coube ao Judiciário “limpar o terreno” prévio que pavimentou sua ascenção. Mas não só. Uma das peças fundamentais foi a intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018, que sepultou de vez as possibilidades do consórcio Temer/PSDB de entregar as “reformas” prometidas (durante intervenções a Constituição proíbe a tramitação de Propostas de Emeda Constitucional), além de produzir a imagem de que o Brasil estava à beira da anomia e que somente os militares poderiam evitá-la. Nesse período, testou-se, sob o comando do general Braga Netto – hoje figura que anda na sombra de Bolsonaro –, a instalação de uma “Central de Inteligência e Informações” que pode bem ser pensada como modelo para o que viria a ser o Governo pós-2019. Assim, com a vitória de Bolsonaro, vimos a máquina militar “aparelhando o Estado” e produzindo sua própria “guerra cultural”, bem ao modo que diziam ser o “padrão PT”.
O resultado, que estamos vendo agora, é a repetição de um padrão de disseminação da ideia de “fragmentação” do Brasil; mas a novidade atual está sendo conduzida pelo próprio Presidente, e alimentada pela falsa sensação de uma “polarização” precedida pela disposição “natural” do PT em “polarizar”. É notável que nesse discurso mais uma vez se coloque a noção de que as instituições estão à beira da anomia, e que estejamos presos numa aporia em que um “lado” sempre resulte das ações “do outro”. No meio disso aparecem os militares, sempre vistos como última possibilidade de colar os cacos de um vaso quebrado. Como parte dessa operação, é “fato” amplamente espalhado pela imprensa que Bolsonaro provoca constantes “intervenções” nas Forças Armadas, e que há “militares bolsonaristas” que ajudam a produzir uma “polarização” interna em relação aos “legalistas”. Pouco se percebe que Bolsonaro é um biombo, produzido justamente pelo comando das Forças Armadas para que os raios caiam sempre em um mesmo lugar conveniente. O que será dele ainda não sabemos, mas é possível falar com alguma segurança que o processo de “reinicialização” do Estado em “modo de segurança” com militares atuando como “administradores do sistema operacional” ainda está em curso.
Piero de Camargo Leirner, doutor em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP), é professor do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor de O Brasil no espectro de uma guerra híbrida – Militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica (Alameda, 2020). A reinicialização do Estado é um processo que Leirner vem analisando constantemente no blog Duplo Expresso, em conjunto com seu editor, Romulus Maya
[1] A ideia de que existe uma separação entre “nós militares” e um “mundo de fora” é amplamente explorada por Celso Castro em O Espírito Militar…
[2] Piero Leirner, O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda, 2020.