A família construída por laços afetivos da adoção

Uma criança encaminhada para a adoção certamente sofreu perdas e rupturas abruptas, e que seguramente farão para sempre parte de sua história. Entretanto há de se destacar que o rompimento com a família consanguínea pode significar esperança ao possibilitar um novo encontro com uma família que ofereça afeto, segurança e um ambiente seguro e propício para seu desenvolvimento. A adoção – apesar de visar ao bem maior da criança – proporciona tanto uma família a ela quanto também um filho aos pais/mães a partir de um processo de parentesco construído e ligado por laços afetivos.

 Por Jéssika Rodrigues Alves, Camila Aparecida Peres Borges e Martha Franco Diniz Hueb

Nas últimas décadas diferentes configurações têm permitido novas concepções de família, gerando também uma outra organização na vida de seus membros. Na perspectiva dinâmica, a família é formada por um conjunto de pessoa que interagem entre si e que são interdependentes, constituindo uma unidade afetiva, social, econômica e emocional, com regras, mitos e crenças (Fráguas, 2009).

A família, nas suas mais diversas formas, compõe um sistema formado por vários outros subsistemas – conjugal, paterno e materno, filial, fraternal, entre outros (Celestino, Bucher-Maluschke, 2015), em que há um processo de integração e interação de seus membros. Independente do modelo de família, ela será sempre constituída por um conjunto de pessoas que formam uma unidade social em que serão estabelecidas relações entre seus membros e o exterior (Dias, 2011).

Adoção

A partir das novas tecnologias reprodutivas e novas configurações familiares ressaltou-se a noção de “família que escolhemos”, e dentro dessa ideia destacam-se também as famílias por adoção.

A adoção não é uma prática pós-moderna. Está presente desde a Antiguidade, e a maioria dos povos acolhiam crianças em suas famílias biológicas. No antigo Egito a adoção pode ser apontada na escolha do Faraó; na Antiguidade Greco-romana o casal que não tinha filhos biológicos utilizava a adoção para promover a descendência com o objetivo de o filho realizar os ritos fúnebres e oferendas após o óbito dos pais. No Império de Napoleão Bonaparte, o Código Napoleônico estabelecia a igualdade de direitos entre filhos adotivos e biológicos. Entretanto, apenas na Segunda Guerra Mundial a adoção foi reconhecida, particularmente pelo número considerável de crianças órfãs e a necessidade de protegê-las (Pereira, Azambuja, 2015).

No Brasil, a adoção se fez presente desde a colonização, quando estava relacionada à caridade, em que os mais ricos davam assistência aos mais pobres, havendo a distinção entre filhos biológicos e adotivos. O primeiro caso de adoção na legislação no país foi em 1828, e tinha por objetivo solucionar o problema dos casais sem filhos – e por muito tempo a adoção esteve relacionada à infertilidade (Maux, Dutra, 2010).

Em relação à legislação, foram várias transformações. Em 1916, o Código Civil (Lei 3071/16), foi um marco importante, por considerar a adoção nos textos jurídicos. Permitia a adoção apenas para casais sem filhos, poderia ser revogada, e o adotando não perdia o vínculo com a família biológica. Em 1957 (Lei 3.133/ 57), as pessoas que tinham filhos poderiam adotar, mas esse não tinha o direito à herança. Em 1965, além dos casais, as pessoas viúvas e desquitadas também passaram a ter o direito a adotar, e através dessa Lei foi estabelecida a legitimação adotiva, a qual atribuía ao filho por adoção praticamente os mesmos direitos legais do filho consanguíneo (Maux, Dutra, 2010).

O Código de Menores (Lei 6.697/79) descartou a legitimidade adotiva e estabeleceu duas formas de adoção, a simples e a plena. A primeira tratava das adoções de crianças/adolescentes entre sete e dezoito anos que estivessem em situação irregular. Já na adoção plena a criança com até sete anos de idade passava à condição de filho, sendo um ato irrevogável (Maux, Dutra, 2010).

Apenas na Constituição de 1988 a diferença entre filhos por adoção e biológico foi abolida. E através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) os sujeitos envolvidos passaram a ter reconhecimento e proteção, extinguindo a adoção simples, e estabelecendo a adoção plena para todos. Estendeu-se o direito de adotar a todas as pessoas maiores de 18 anos, independente do estado civil ou de suas condições de fertilidade (Maux, Dutra, 2010; Merçon-Vargas, Rosa; Dell’ Aglio, 2015; Pereira, Azambuja, 2015).

A Nova Lei da Adoção (12.010/09) estabelece algumas alterações em relação aos aspectos legais, como a habilitação dos candidatos pretendentes à adoção através do curso preparatório, o foco nas adoções de crianças maiores, com necessidades especiais, algum tipo de adoecimento, inter-racial, grupos de irmãos, entre outros, priorizando esses casos (Machado, Ferreira, Seron, 2015; Alves, Hueb, Scorsolini-Comin, 2017). A lei também contribuiu com o conceito de família extensa, a qual se refere aos parentes próximos da criança e que teriam prioridade em sua adoção caso não ficasse sob os cuidados dos pais.

Assim, de acordo com o ECA, a adoção é definida como a possibilidade de estabelecer com alguém que não conhece, por meio da lei, laços de filiação e paternidade legítimos (Weber, 2010). É uma medida protetiva, e tem por objetivo proporcionar à criança ou ao adolescente um ambiente adequado para o seu desenvolvimento e a convivência familiar (Alves, Hueb, Scorsolini-Comin, 2017). Os adotantes devem mais de 18 anos, independente do estado civil, com uma diferença de pelo menos 16 anos de idade entre adotante e adotado (Pereira & Azambuja, 2015)

A adoção é um campo que, com o passar do tempo, ganhou reconhecimento na sociedade, principalmente por oferecer à criança ou ao adolescente a possibilidade de ter uma família. É uma forma de configuração familiar e, como qualquer outra, apresenta suas peculiaridades. Há nesse processo várias questões envolvidas, como por exemplo a idealização do filho, o conflito do filho ideal e a criança real. Esse impasse deve ser bem refletido e resolvido para não interferir na efetivação da adoção e prevenir frustrações diante de uma idealização (Machado, Magalhães, Sampaio, 2020).

Pensando nessas questões, o pretendente pode definir um perfil da criança que deseja criar, buscando traçar características que aproximem a criança do casal. Normalmente a busca é pela adoção de bebês da mesma cor de pele da família, do sexo feminino e em especial com boa saúde. Características essas distantes da maioria das crianças e adolescentes institucionalizados disponíveis para adoção. Isto em parte explica o fato de que há uma diferença da quantidade de pessoas aptas para adoção em relação ao número de crianças à espera de uma família. A conta não fecha. A realidade do perfil de crianças que estão acolhidas são: meninos, negros e com alguma condição de adoecimento (Machado, Magalhães, Sampaio, 2020; Morelli, Scorsolini-Comin, Santeiro, 2015; Merçon-Vargas, Rosa, Dell’Aglio, 2014).

A família por adoção e sua dinâmica

Tornar-se um casal é uma das mudanças mais complexas do ciclo de vida familiar, sendo que a forma como é vivenciada a relação conjugal influenciará a forma como viverão a parentalidade, e essa transição é um período de estresse e alterações de papeis quando uma criança é inserida na família (Oliveira, Magalhães, Pedroso, 2013).

Alves, Hueb, Scorsolini-Comin (2017) apontaram que há diversos motivos para iniciar o processo de adoção, dentre eles infertilidade, caridade, salvar o relacionamento, exercer a paternidade ou maternidade, entre outros. No entanto a infertilidade ainda é colocada como um dos aspectos mais citados. Contudo, ressaltam em sua revisão que, de acordo com Weber, não parece existir correlação entre a motivação para a adoção e o sucesso dela. E, segundo Merçon-Vargas, Rosa, Dell’Aglio (2015), essa concepção de filiação com o foco no casal se transformou, e se atribuiu à adoção novos sentidos, como a possibilidade de dar à criança ou ao adolescente uma família.

Nesse sentido, ao decidir realizar uma adoção é fundamental a preparação dos pais, para que ela seja bem orientada e planejada (Schettini, 2007). A adoção emerge da vontade de consolidar um vínculo de parentesco por meio de vínculos afetivos, sem ligação consanguínea. Adotantes tardios, de acordo com Ebrahim (citado por Oliveira, Magalhães, Pedroso, 2013), são mais maduros, altruístas e estáveis emocionalmente, além de terem um nível socioeconômico mais elevado e geralmente já possuírem filhos biológicos. Pessoas solteiras e casais homossexuais também preferem optar pela adoção de crianças maiores, ao contrário do que a maioria de pretendentes solicita (Oliveira, Magalhães e Pedroso, 2013).

Construção da parentalidade na adoção e desafios

Tornar-se pai e mãe tem por base, geralmente, a concordância trabalhada entre os cônjuges ao decidirem aumentar a família, sendo que na adoção, além dos aspectos legais, existem diversas questões subjetivas – como expectativas, ansiedades, medos – que devem sempre ser levados em conta (Cecílio, Scorsolini-Comin, 2016). A história de uma adoção inicia-se pela impossibilidade de os pais biológicos cuidarem da criança e pela disponibilidade dos pais adotivos, por variadas motivações, de oferecer cuidados e afetos a ela, estabelecendo uma família fundamentada em laços afetivos. Na base de toda história de adoção existe um vínculo que foi rompido precocemente, e é imprescindível que os pais por adoção estejam preparados para receber um novo membro em sua família, o que irá requerer adaptações e mudanças (Santos, Raspantini, Silva, Escrivão, 2003; Alves, Hueb, 2020).

Antes de a adoção ser concretizada legalmente, os pais e a criança passam por um período de convivência. As mudanças que ocorrem na díade familiar serão grandes com a chegada desse novo membro, mudando a rotina de todos, sua dinâmica e estruturação, sendo o pertencimento à família construído ao longo dessa convivência (Oliveira, Magalhães e Pedroso, 2013; Alves, & Hueb, 2020).

Na adoção, assim como quando nasce um filho biológico, a família irá necessitar de um período de adaptação. É preciso que os pais por adoção tenham em mente que não encontrarão no filho adotivo a identificação no sentido biológico, e que é necessário ter vivido e realizado o luto pelo filho biológico nos casos em que esse era o desejo inicial (Santos, Raspantini, Silva, Escrivão, 2003). Em vista disso, para que as famílias possam construir dinâmicas favoráveis e mais saudáveis, é de extrema relevância que as vicissitudes do processo adotivo sejam trabalhadas de forma preventiva, sendo tão necessária, dessa forma, a preparação dos pais para a adoção, em que estejam conscientes de que o filho adotivo terá outro casal como genitor e que carregará consigo uma história que não poderá nem deverá ser ignorada. Pelo contrário, necessitando – para a saúde psíquica da criança e da família – que essa história seja integrada à história de vida da criança (Schettini, Amazonas, Dias, 2006; Alves, Hueb, Scorsolini-Comin, 2017).

Assim, a adoção é permeada por algumas peculiaridades, como o reconhecimento dos pais por adoção da história de vida integral da criança. De uma forma geral, esses pais podem apresentar dois significativos receios/medos em relação à adoção, que interferem na dinâmica familiar e nos vínculos estabelecidos nesse meio, que são o medo de serem abandonados e a dificuldade de revelar a adoção para o filho. O primeiro ponto está relacionado ao desejo de a criança conhecer seus pais consanguíneos e com isso abandonarem seus pais por adoção (Maux, Dutra, 2010). Segundo Schetinni Filho (1998) essa interferência ocorre porque os pais por adoção podem apresentar a fantasia do roubo, em que acreditam que o filho deve sempre estar ao lado de seus pais consanguíneos. Não sentem o filho como seu, mas sim pertencente a outro casal.

Maux e Dutra (2010) apontam que essa insegurança pode gerar aspectos negativos para a educação da criança, como a não colocação de limites e regras pelo receio de contrariá-la – ao pensar que assim ela pode preferir os pais consanguíneos, ao achar que não é amada pelos pais por adoção. Os efeitos gerados por não se resolver plenamente essa questão pode reforçar a ideia que filhos por adoção são rebeldes, sem limites, quando, no entanto, pode-se perceber que essa característica não está ligada à adoção, mas sim à insegurança desses pais em exercer a parentalidade.

Esse aspecto também influência a revelação da adoção, e o medo por serem rejeitados pelo filho pode fazer com que esses pais façam da adoção um segredo familiar. Desta forma, criando mentiras sobre a vida da criança e não possibilitando a ela a significação de sua história de vida, podendo, inclusive, originar sintomas nas crianças e adolescentes (Alves, Hueb, Scorsolini-Comin, 2017). Para Levinzon (2004) e Otuka, Scorsolini-Comin e Santos (2012), a história de vida da criança deve fazer parte do cotidiano familiar, tanto na família nuclear como a extensa, para que a adoção seja algo natural e não um segredo, e com isso a criança se sinta realmente pertencente à família, evitando os impactos e sintomas que um segredo pode ocasionar nos membros da família e nas relações presentes nesse sistema. Assim, a adoção é permeada por algumas peculiaridades. Ressalta-se não só a importância da preparação para a adoção como a extrema relevância de um acompanhamento pós-adoção em que seja proporcionado um espaço para que os pais possam discutir as especificidades da filiação por adoção.

Jéssika Rodrigues Alves é mestre em psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (USP) e docente da Universidade de Uberaba (Uniube) jessikaralves@yahoo.com.br

Camila Aparecida Peres Borges é mestre em psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Especialista em psicologia jurídica pela Faculdade Cândido Mendes. Docente no curso de psicologia da Universidade de Uberaba (Uniube).

Martha Franco Diniz Hueb é professora aposentada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Doutora em Ciências Médicas (USP).

Referências
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