Por Alceu Castilho
É preciso sempre recordar a frase do Godard sobre imprensa televisiva: “Cinco minutos para Hitler, cinco minutos para os judeus”. Quando é pior que isso: são 30 minutos para Hitler, 30 minutos para Bolsonaro, 30 minutos para Salles, 30 minutos para todo o resto do planeta — e os excluídos só aparecerão embalados em formatos que não ameacem as estruturas.
Vejo a face do Ricardo Salles na home do UOL, a falar sobre ambiente e clima. E penso na extensão do cinismo jornalístico.
O alemão Peter Sloterdijk escreveu algumas das melhores linhas sobre imprensa em sua Crítica da razão cínica, uma obra-prima publicada em 1983.
Nela ele descreve (com fartas habilidades literárias) a essência do cinismo jornalístico: a sucessão ininterrupta de notícias, sem coesão, sem memória. Sem algo escrupuloso por trás — sem ética.
Não custa rememorar a diferença entre o cinismo original, o grego, do cinismo burguês. O primeiro, desafiador, tem em Diógenes seu símbolo. Aquele que carregava a lanterna em busca de um homem “honesto”.
O segundo é o cinismo burguês, essa implosão. Seu jornalismo violento e falsamente equilibrista coloca todos os dias uma fila de gente atrás do Diógenes para chutá-lo até que ele perca a compostura ou derrube a lanterna.
É preciso sempre recordar a frase do Godard sobre imprensa televisiva: “Cinco minutos para Hitler, cinco minutos para os judeus”. Quando é pior que isso: são 30 minutos para Hitler, 30 minutos para Bolsonaro, 30 minutos para Salles, 30 minutos para todo o resto do planeta — e os excluídos só aparecerão embalados em formatos que não ameacem as estruturas. (Histórias de superação, aquela coisa.)
Não é somente que o jornalismo esteja a serviço da burguesia, do capital. A exemplo do que definiu Pachukanis em relação ao direito, ele se perpetua (na imprensa corporativa) como uma forma burguesa, a serviço do individualismo, do direito à propriedade como algo à frente do direito à vida — e assim por diante.
Com isso não apenas Ricardo Salles passa sua boiada, sua agenda de destruição. Essa boiada foi antes definida por Luiz Frias, não apenas um dono de meio de comunicação (um ser supostamente imparcial, conforme determinadas Crenças Cândidas), mas também um capitalista múltiplo, dono de outros empreendimentos.
Ao lado de Frias estão os fiadores de toda essa farsa, dessa fila indiana de notícias e deboches: as empresas que anunciam no UOL, as mesmas que bancaram Salles no poder. E que bancam Bolsonaro e o desmatamento e em tempos de Conferência do Clima fazem de conta que defendem o planeta.
É um sistema. A imprensa comercial é uma instituição crucial nesse sistema. Definidora. As redes sociais corporativas foram inventadas depois de Sloterdijk (que não é um marxista, diga-se), mas basta copiar e colar tudo o que ele disse em relação à imprensa e aplicar às redes.
Mais ou menos como se os donos do poder tivessem maquiavelicamente criado um novo joguinho de manipulação sociopata.
Acima da face de Salles estão as mãos geladas de gente como Frias e Zuckerberg, a pautar a multiplicação compulsiva de pautas, necessariamente sob a órbita do mercado. (A mão do mercado é invisível e a multiplicação cínica de pautas ruma, no limite, filosófica e matematicamente, ao invisível.)
Até que tudo seja esvaziado, deformado, até que seja assegurado que bilhões de pessoas não enfrentem seus algozes.
Alceu Luís Castilho é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo (USP). Autor dos livros Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro (Contexto, 2012) e O Protegido – por que o país ignora as terras de FHC (Autonomia Literária, 2019). É diretor do De Olho nos Ruralistas, um observatório sobre agronegócio no Brasil.
Este texto foi publicado originalmente em 5 de novembro às 15h56 na página pessoal de Alceu Castilho no Facebook e foi aqui reproduzido, com algumas adaptações, com sua expressa autorização.