Enquanto assistimos à dança das cadeiras no Ministério da Educação, o cenário de desigualdade da educação brasileira é agravado pela falta de recursos e de planejamento. “É necessário que o Estado entenda e atue para diminuir o abismo”, afirma especialista
Por Luciana Rathsam
O Brasil ocupa hoje a segunda posição no ranking de países mais atingidos pela pandemia, o Ministério da Educação contou com duas demissões nos últimos 20 dias e o novo ministro já entra em confronto com a opinião pública, com depoimentos polêmicos nas redes sociais. Enquanto isso, autoridades discutem a reabertura da economia e a volta às aulas para setembro próximo.
A suspensão das aulas presenciais e adoção de atividades pedagógicas remotas desde março esbarraram em inúmeros problemas, como dificuldades técnicas, limitações materiais e logísticas, despreparo de professores e de alunos. O prolongamento do isolamento e os desdobramentos socioeconômicos da pandemia colocam em xeque o acesso à educação com equidade e qualidade, e podem aprofundar as desigualdades sociais. Para enfrentar os impactos na educação pública será preciso enfrentar questões de ordem política e financeira, repensar o papel da escola e planejar as ações futuras.
“A pandemia criará novas perspectivas, ampliará as desigualdades e é necessário que o Estado, ator principal da política pública, entenda e atue para diminuir o abismo descoberto. Esse abismo é econômico, de infraestrutura, de condições humanas e sociais, tanto de professores como de alunos em qualquer nível ou modalidade”, avalia Luis Enrique Aguilar, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas e Planejamento Educacional (LaPPlanE) da mesma instituição.
Ações emergenciais e (ausência de) políticas públicas
Ainda que a formulação de políticas públicas seja uma atribuição do Estado, outros órgãos têm assumido o papel de planejar ações, buscar soluções, orientar e dar suporte aos dirigentes de escolas da rede pública. “Não temos um Sistema Nacional de Ensino e isso acaba dificultando ainda mais a articulação e a realização das ações em cada rede de ensino nesse momento. Também estamos sem políticas públicas vindas do Governo Federal para o enfrentamento à Covid-19 no caso da educação. Por conta disso, os Conselhos Municipais, os Conselhos Estaduais e o Conselho Nacional (de Educação) estão cada vez mais unidos e articulados e, juntos com outros órgãos e instituições e colegiados, estão se fortalecendo”, pondera a pedagoga Márcia Bernardes, presidente da União dos Dirigentes Municipais do Estado de São Paulo (Undime-SP) e Secretária Municipal de Educação de Atibaia.
As redes públicas de ensino adotaram diversas estratégias para manter as atividades pedagógicas durante o período de isolamento, como a distribuição de materiais impressos, a veiculação de aulas em canais de televisão ou rádio, o uso de plataformas e aplicativos digitais e o estabelecimento de acordos com operadoras de internet para garantir a conectividade à rede de internet. Sem preparação prévia, escolas e professores procuraram ajustar suas práticas pedagógicas ao ambiente virtual, buscando manter os vínculos da comunidade escolar. Apesar dos esforços emergenciais, aproximadamente um quarto (24%) dos estudantes de escolas públicas não teve acesso a nenhum tipo de atividade não presencial, conforme pesquisa realizada pelo Datafolha em junho de 2020. A falta de acesso a atividades remotas é maior entre estudantes de escolas de menor nível socioeconômico.
Novos tempos, velhas desigualdades
Conforme o Censo Escolar 2019, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), o Brasil tem 47,9 milhões de alunos matriculados na educação básica e 80,9% dessas matrículas se concentram na rede pública de ensino. Esse contingente imenso de alunos apresenta condições de vida muito diversas, o que afeta as suas oportunidades de aprendizagem, as possibilidades de enfrentamento da crise e até a vulnerabilidade à doença. Para calcular o peso das variáveis socioeconômicas que afetam a saúde, um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e do Hospital Albert Einstein desenvolveu o Índice Socioeconômico do Contexto Geográfico para Estudos em Saúde (GeoSES), um índice que incorpora sete dimensões: escolaridade, mobilidade, pobreza, riqueza, renda, segregação residencial e acesso a recursos e serviços conforme artigo publicado em abril na revista científica Plos ONE.
“Estamos com um problema de baixa adesão dos alunos. Não só porque falta aparelho para acessar os conteúdos e fazer as atividades, mas porque eles não estão motivados. Muitos alunos estão perdendo parentes próximos, muitos passam necessidades ou estão com medo de perder os pais, de perder o referencial. O estudo fica em segundo plano diante dessas questões”, explica a pedagoga e historiadora Sandra Heráclia, que ministra aulas em escolas da Brasilândia, na zona norte de São Paulo. O distrito de Brasilândia apresenta alto percentual de favelas (30% dos domicílios) e é um dos mais afetados pela Covid-19 no município, conforme mostra o Mapa da Desigualdade, elaborado pela Rede Nossa São Paulo em junho deste ano.
O acompanhamento das atividades pedagógicas remotas depende ainda de outros fatores, como a etapa da aprendizagem e a autonomia dos estudantes. Na educação especial ou nos primeiros anos do ensino básico, o estudante precisa da mediação de um adulto para acessar os conteúdos e receber as instruções das atividades. “Muitos adultos não têm condições de ajudar a aprendizagem das crianças, por falta de recursos materiais, por não saberem como usar a ferramenta, ou até porque estão preocupados com a própria sobrevivência. Nesses três meses, da minha turma de 33 alunos, só dois acessaram as atividades. É muito pouco”, lamenta Sandra.
Ficar longe da escola não implica apenas em um déficit de conteúdos aprendidos. Isolados, os alunos serão privados de contato social e de uma série de vivências que contribuem para seu desenvolvimento. Muitos enfrentarão também privações materiais, violências ou luto. “Outro dia li um artigo que tratava a cabeça da criança como um hard disk onde o conhecimento defasado seria reposto. Isso é totalmente equivocado. Essa ideia de depositar o conhecimento na criança corresponde ao modelo de ‘educação bancária’ denunciado por Paulo Freire.”, destaca Miguel Thompson, diretor acadêmico da Fundação Santillana no Brasil.
Investir na educação ou aguardar o seu colapso
A reabertura das escolas não será um processo simples. As decisões devem ser tomadas de forma articulada com a área da saúde pública, considerando riscos e benefícios associados. Em que pesem os fatores econômicos, não se pode desprezar que o fator demográfico é uma variável central na análise do contágio, conforme pondera Luis Enrique: “As escolas somente podem ser abertas quando a análise científica (e não econômica), outorgue plenas condições de segurança sanitária”. Eventualmente o retorno às atividades escolares demandará a compra de equipamentos, a adequação de espaços físicos, a ampliação da carga horária ou a contratação de novos profissionais. “Posso afirmar que municípios hoje não têm condições financeiras de retornar às aulas seguindo um rígido protocolo sanitário e pedagógico”, assegura Márcia.
O cenário se torna ainda mais crítico pela ameaça de redução da verba disponível para educação. Os gastos realizados para garantir o ensino à distância durante o isolamento já somam R$2 bilhões, e os impactos da crise econômica na arrecadação de tributos podem levar a perdas de até R$28 bilhões nas redes estaduais de ensino, conforme aponta o estudo do impacto fiscal da Covid-19 na Educação Básica em 2020, elaborado pelo movimento Todos Pela Educação e o Instituto Unibanco. A recomposição do orçamento da educação é imprescindível, para evitar o colapso das redes públicas de ensino. A principal fonte de financiamento educacional, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), expirará em dezembro de 2020. A votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC15/2015) que reformula o Fundeb foi adiada pela eclosão da pandemia e deve ser retomada com urgência. “Devemos evitar cair na falsa contradição entre economia x educação. A economia precisa da educação e é nesta ordem que devemos voltar”, lembra Luis Enrique.
Outro aspecto crucial a se considerar é o papel da escola na sociedade. Sandra observa que a discussão sobre a reabertura das escolas tem se pautado na necessidade de fornecer um local para os estudantes permanecerem enquanto os pais retomam seus trabalhos. “A escola não é depósito. O cerne da questão não está sendo discutido, que é rever o papel da escola de formar cidadãos verdadeiramente conscientes do seu papel como sujeitos históricos”. Para Miguel, a escola também tem que se repensar enquanto agente social. “Vamos ter que rever aspectos emocionais, afetivos, trabalhar valores. Porque, além da pandemia, há uma crise política, uma crise econômica, uma crise ética, uma crise ambiental. E a nação precisa discutir a educação em uma sociedade do conhecimento”, enfatiza.