Por Jessica Falconi
Numerosos artigos e volumes de ensaios, surgidos e publicados em contextos académicos americanos e ingleses, procuraram estabelecer a genealogia e a periodização do desenvolvimento da Ecocrítica enquanto campo de estudos que analisa as representações literárias do ambiente e das relações entre os seres humanos e a biosfera.
De acordo com Lawrence Buell, a primeira vaga da Ecocrítica veio identificar a chamada escrita da natureza (nature writing), privilegiando textos narrativos inscritos nos géneros literários da autobiografia e do memoir, onde abundam descrições de uma natureza considerada incontaminada ou selvagem, dando lugar à chamada representação da wilderness[1].
Uma segunda vaga da Ecocrítica pretendeu repensar os pressupostos da primeira, integrando representações literárias de zonas de fronteiras e interfaces entre “natureza” e “ambiente construído” (built environment), termos cada vez menos utilizados para designar realidades contrapostas, o que aponta para uma revisão radical dos mesmos conceitos de natureza e ambiente. Na revisão proposta pela segunda vaga, surgiu também a conexão entre questões ambientais e justiça social. Esta conexão esteve na base do surgimento de uma terceira vaga da Ecocrítica, iniciada na década de 2000 e centrada na inclusão das categorias de raça, etnicidade, género, etc. na análise de cariz ecológico[2]. Na década seguinte, se foi afirmando uma quarta vaga, na sequência da mais ampla viragem materialista das ciências humanas e sociais, cada vez mais atentas e centradas na condições materiais que originam e impactam os imaginários e as produções culturais.
Para além desta periodização clássica, estruturada em vagas, é um facto que o campo da Ecocrítica, sobretudo a partir dos meados da década de 1990, tem vindo a alargar-se e a desdobrar-se em diferentes perspetivas e vertentes, traduzindo a multiplicidade das questões inerentes ao binômio literatura/ecologia e as variadas reflexões filosóficas sobre a relação entre o domínio humano e o não-humano, bem como distintas formulações dos conceitos de natureza, ambiente, ecologia, cânone literário, narrativa etc.
É um facto também a atenção “tardia” dos estudos de Ecocrítica para as literaturas africanas e do Sul Global em geral. Trata-se de um aspeto que se prende com uma generalizada hegemonia dos paradigmas críticos e dos cânones literários anglo-saxónicos nos sistemas académicos e literários internacionais. No entanto, cabe assinalar que diversos estudos e reflexões procuraram questionar esta hegemonia dos Estados Unidos e da Inglaterra nos estudos de Ecocrítica, ao equacionarem as literaturas de outros contextos geográficos, como por exemplo as das Caraíbas, e destacando as literaturas pós-coloniais do Sul global. A articulação entre a crítica pós-colonial e os estudos ambientais, proposta em diversos ensaios e artigos[3], foi fundamental na descentralização epistémica da Ecocrítica, originando-se uma vertente de Ecocrítica pós-colonial de grande relevância para uma abordagem “verde” das literaturas africanas. Tal vertente tem vindo a reinterpretar as preocupações da Ecocrítica canônica em perspetiva pós-colonial, abordando questões como o impacto ambiental do desenvolvimento económico ou a relação entre direitos humanos e não-humanos, entre outras, encarando também o agravar-se da mudança e da crise climática e seus efeitos devastadores nas áreas do Sul global. As perspetivas da ecocrítica pós-colonial põem em relevo também a continuidade de formas “imperiais” de dominação social e ambiental e os impactos ecológicos das relações coloniais, imperiais e neo-coloniais, bem como a relação entre justiça social e problemáticas ambientais. Do ponto de vista mais especificamente literário, a ecocrítica pós-colonial tem vindo a promover uma releitura dos cânones literários ecocríticos, apelando para a inclusão das literaturas africanas, tendo em conta a importância das temáticas naturais/ambientais, articuladas a questões sociais, raciais, políticas, económicas, culturais etc., em muitas obras de autores e autoras africanas. A este proposito, também Byron Caminero-Santangelo questiona a recorrente exclusão do continente africano no debate ecológico e ecocrítico ocidental e analisa a multifacetada relação entre literaturas africanas, luta anticolonial, justiça social e ambientalismo[4].
As literaturas africanas de língua portuguesa têm vindo a receber uma atenção ainda mais tardia por parte dos estudos de Ecocrítica. Uma das razões remete para as desigualdades de circulação e receção das obras literárias de áreas periféricas e semiperiféricas no espaço literário internacional. No entanto, esta atenção tardia se deve também ao permanecer, nos estudos destas literaturas, de paradigmas críticos centrados em categorias analíticas como a nação, ou a identidade nacional e cultural, isto é, paradigmas ainda pouco articulados às preocupações dos estudos de ecocrítica.
Por um lado, alguns estudos recentes têm vindo a reconhecer a importância de uma perspetiva ecocrítica para a abordagem da temática da “maldição dos recursos” e do capitalismo extrativista em obras como Os Transparentes (2012) do escritor angolano Ondjaki ou A Lágrima Áurea do Mal (2006) do são-tomense Aito Bonfim, narrativas que se inscrevem no género da Petrofiction, termo cunhado já na década de 1990 pelo escritor e ensaísta indiano Amitav Gosh.
Por outro lado, os estudos de literatura moçambicana têm vindo a inspirar uma releitura inovadora do cânone literário através de análises centradas na relevância das águas do Índico na produção poética e ficcional dos autores moçambicanos. Os suportes teóricos deste tipo de análise articulam a Ecocrítica, as Humanidades Oceânicas e o campo transdiciplinar dos Indian Ocean Studies. De acordo com estas perspetivas, o Oceano Índico surge como espaço físico e material, habitado por diferentes formas de vida, mas também contaminado por objetos e substâncias que vão alterando sua configuração “natural”. É também um espaço simbólico e estético, um arquivo líquido de histórias e imaginários. Nesta perspetiva, as produções culturais e literárias do Oceano Índico têm vindo a destacar-se de modo significativo na reflexão ecocrítica, tendo em conta as “lógicas naturais”[5] e as configurações materiais e culturais deste oceano, incorporadas em objetos, lugares e na própria substância aquática. O Oceano Índico emerge enquanto unidade de análise e dimensão estética fundada em relações constitutivas – humanas-não humanas; naturais-sociais; geológicas-culturais, configurando-se como um continuum natural-cultural de conexões[6], isto é, um “objeto” ecocrítico por excelência. Pense-se, nesta perspetiva, em obras como Índicos Indícios e Ponta Gea de João Paulo Borges Coelho, ou em textos canônicos de Mia Couto, como Terra Sonâmbula e A Varanda do Frangipani.
No entanto, no que se refere à literatura angolana, apesar de terem surgidos estudos em perspetiva ecocrítca da obra de Ruy Duarte de Carvalho, julga-se que uma abordagem ecocrítica mais sistemática à tradição temática da urbanização colonial e pós-colonial, alimentada por autores como Luandino Vieira, Pepetela, Manuel Rui, entre outros, levaria a uma releitura inovadora do cânone literário angolano análoga àquela trazida pelo paradigma do Oceano Índico na literatura moçambicana.
Do mesmo modo, abordar a poesia caboverdiana centrada nas temáticas da seca, da chuva e da fome a partir de perspetivas ecocríticas contribuiria não só para reler o cânone literário caboverdiano, mas também para enriquecer o cânone ecocrítico das formas literárias.
Ainda, cabe assinalar as potencialidades da articulação disciplinar entre ecologia literária e estudos de género e feministas, designada de ecofeminismo, cujo intuito é equacionar as analogias e correspondências entre a opressão patriarcal das mulheres – e das identidades de géneros não normativas, na vertente da ecocrítica queer – e a opressão/exploração da terra, dos animais e do não-humano em geral[7]. Afirmando a intersecionalidade das categorias de género, classe, raça, espécie, o ecofeminismo defende a importância de se analisarem tais dinâmicas de opressão em combinação com o racismo, o classismo, o especismo, consideradas expressões distintas mas análogas das estruturas de poder e dominação patriarcal e colonial. Tal vertente permitiria uma abordagem transversal aos vários cânones literários nacionais, na análise de obras de autoria feminina e não só. Pense-se, a este propósito, nos romances da escritora moçambicana Paulina Chiziane ou na poesia da angolana Ana Paula Tavares, isto é, produções até agora pouco exploradas do ponto de vista da Ecocrítica.
Em conclusão, se o encontro entre as várias vertentes da Ecocrítica e as Literaturas africanas tem acontecido em diversas latitudes geográficas e académicas, constituindo uma linha de investigação consolidada, cabe realçar sua incipiência no que diz respeito às literaturas africanas escritas em português e, ao mesmo tempo, as grandes potencialidades da Ecocrítica para abordagens inovadoras destas literaturas.
Jessica Falconi é investigadora e vice-presidente do CEsA- Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. Doutorada em Estudos Ibéricos pela Universidade de Nápoles “L’Orientale” (2008). É autora de numerosos artigos e capítulos de livros e co-editora de livros sobre literaturas e cinemas africanos de língua portuguesa.
[1] BUELL, L. The Future of Environmental Criticism. Environmental Crisis and Literary Imagination, Malden, Blackwell Publishing, 2005.
[2] ADAMSON, J. & SLOVIC, S. “The Shoulders We Stand on: An Introduction to Ethnicity and Ecocriticism”, Melus 34, 2, 5-24.
[3] Ver por exemplo NIXON, R. “Environmentalism and Postcolonialism”. In: LOOMBA, A. et al. (org.) Postcolonial Studies and Beyond, Durham, NC, Duke University Press, 2005; TIFFIN, H. & HUGGAN, G. Postcolonial Ecocriticisim. Literature, Animals and Environments. New York, Routledge, 2010.
[4] Caminero-Santangelo, B. Different Shades of Green African Literature, Environmental Justice, and Political Ecology (Under the Sign of Nature: Explorations in Ecocriticism). Charlotesville: University of Virginia Press, 2014.
[5] GOSH, D. e MUECKE, S. “Lógicas naturais do Oceano Índico”. In: LEITE, A.M.; BRUGIONI, E. e FALCONI, J. (org.) Estudos sobre o Oceano Índico. Antologia de textos teóricos. Excertos. Lisboa, Colibri/CESA, 2019, p. 81-100, http://hdl.handle.net/10400.5/19965.
[6] MUECKE, S. “Fabulation: Flying Carpets and Artful Politics in the Indian Ocean’. In: MOORTY, S. & JAMAL, A. (org.) Indian Ocean Studies. Cultural, Social and Political Perspectives, New York, Routledge, 2010, p. 39.
[7] EATON, H. & LORENTZEN, L.A. (org.) Ecofeminism and Globalization. Lanham, Rowman & Littlefield Publishers, 2003.