Por Carlos Vogt
Platão, em A República, ao indagar, pelo diálogo entre ilustres personagens, o principal deles, Sócrates, sobre o lugar da justiça na cidade, enumera as virtudes que compõem a sinfonia da cidade: a sabedoria, virtude dos que governam; a coragem, virtude dos que a guardam e defendem, os guerreiros, a temperança, virtude de toda a cidade, sem distinção de classes e, por fim, a justiça causa das demais e virtude mais importante, que garante a distribuição harmoniosa e equilibrada, na cidade-estado, das funções adequadas à natureza de cada um dos que nela vivem.
Desse modo, é como que pressuposto o conhecimento como condição para a existência e o funcionamento da cidade, a politeia de que nos fala Platão.
No mundo contemporâneo – e como lá se vão séculos transcorridos desde a antiguidade grega – muitas transformações se deram ao longo da história das culturas ocidentais. Contudo, relação entre conhecimento e cidade se acentuou a ponto de que uma das características marcantes do mundo globalizado é o conhecimento, em economias e sociedades que se autodefinem por ele e que buscam, em projetos reais e virtuais, em realidades e utopias, edificar cidades-conceito em novas concepções de cidades do conhecimento.
Há muitos projetos em andamento distribuídos por diferentes países e em diferentes regiões do planeta focando o conhecimento como princípio organizador e articulador das sociedades contemporâneas.
Nesse sentido, tenho apontado, em diferentes momentos e em diversos textos, como por exemplo, aqui mesmo na ComCiência, nº 25, de outubro de 2001, ou na página da OEI, com data de julho de 2007, reproduzindo o artigo “Ética e conhecimento”, publicado também na ComCiência, nº 82, de novembro de 2006, o conhecimento como gerador de grandes desafios que marcam e mobilizam as sociedades contemporâneas.
Entre esses desafios, o de transformar conhecimento em riqueza e, vice-versa, riqueza em conhecimento, o de criar e estabelecer novos padrões de produção e consumo alinhados com a sustentabilidade do meio ambiente e da qualidade de vida no planeta, e o de produzir, reproduzir, consumir, gerar conhecimento, com o compromisso ético da socialização dos meios de acesso à riqueza, ela própria gerada como produto e como processo na dinâmica da economia global.
Ao primeiro desafio chamei tecnológico, ao segundo, ecológico, e ao terceiro, pragmático.
Esses desafios, como tive também a oportunidade de escrever, pautam um outro tema bastante recorrente na atualidade que é o tema da utilidade do conhecimento.
No texto que constitui meu discurso de agradecimento, por ocasião da outorga do título de Doutor Honoris Causa, em 2005, na École Normale Supérieure de Lyon, busquei estabelecer um nexo de necessidade e o conceito de utilidade através do caráter ético dessa relação.
Pude, assim, afirmar que todo conhecimento é útil, considerando que, sendo o fundamento da moral a utilidade, é essa utilidade o que o torna ético, por definição. Por isso, não há conhecimento inútil, já que a ação de conhecer está voltada para proporcionar felicidade, prazer e satisfação à sociedade.
Daí que o utilitarismo do conhecimento na sociedade globalizada não pode exceder sua utilidade para que não se perca de vista o balizamento que conforma os desafios tecnológico, ecológico e pragmático no âmbito dos requisitos éticos e sociais.
A cidade contemporânea tem, como a politeia de Platão, predicados de coesão e harmonia que lhe garantem, apesar das tendências à megalópole, formas de vivência e de convivência, nas quais os desafios acima mencionados constituem peças de agregação ao grande mosaico do conhecimento que une e separa a vida dos cidadãos no cotidiano de sua realidade e na utopia virtual de sua igualdade, sempre desejada: cidade de Deus, cidade do homem, cidade do conhecimento, cidade.
* Publicado originalmente em: Vogt, C. “A cidade e o conhecimento”. ComCiência, Campinas, 2011. Edição 125.