Por Pedro Vieira
Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no 14º Colóquio Brasileiro de Economia Política dos Sistemas-Mundo, Florianópolis, 10-11 de dezembro 2020. O objetivo deste ensaio é mostrar que desde 1840 até o presente, a China sempre esteve inserida na economia-mundo capitalista (E-MC), que é o sistema social histórico que surgiu na Europa no século XVI e que através da incorporação de áreas externas no final do século XIX já abarcava todo o globo terrestre. O sistema é capitalista porque a acumulação incessante de capital organiza e subordina a sociedade mundial. Essa é a regra mais importante do sistema e se impõe a indivíduos, instituições e países, que são recompensados se a seguirem e punidos se a negarem. A China resistiu às tentativas anteriores e só foi incorporada na primeira metade do século XIX. Desde então, as relações da China com a economia-mundo parecem ter passado por três fases: 1840-1949: integração forçada, parcial e fragmentada; 1949-1978: integração mínima; 1978-presente: integração voluntária, total e irreversível.
1840-1949: A incorporação forçada, parcial e fragmentada
Vamos tratar aqui somente da incorporação econômica, ou seja, a subordinação das atividades econômicas chinesas às redes mundiais de acumulação de capital. Até o fim do século XVIII, o comércio China-Ocidente era pequeno, com a China exportando seda, chá e porcelana, por cujo pagamento recebia ouro, prata e outros itens de pouca importância. Os comerciantes estrangeiros podiam atuar apenas nos portos de Macau e Cantão e em alguns outros pontos, mas sob supervisão. Tudo isso se modificou drasticamente na década de 1830, quando o governo chinês adotou a política de tolerância zero com o consumo e o comércio do ópio, chegando a queimar estoques. A Inglaterra, que exportava ópio da Índia para a China, reagiu deflagrando a chamada guerra do ópio (1840-42), que iniciou a incorporação da China à economia-mundo capitalista. Mas essa incorporação foi fragmentada e parcial, principalmente porque a agricultura e a indústria rural, as duas mais importantes atividades econômicas e que empregavam cerca de 80% dos 400 milhões de chineses, permaneceram praticamente desconectadas da E-MC. Outras evidências da capacidade de resistência da economia chinesa: em 1894, a indústria artesanal abastecia 86% do mercado internos de tecidos de algodão. Mais baratos, os fios de algodão importados substituíram a fiação artesanal, mas isso aumentou a competitividade da tecelagem nacional, que se expandiu. A indústria da seda ilustra bem como a incorporação não provocou a eliminação da produção nacional. No sul da China, a moderna indústria da fiação da seda de propriedade chinesa prosperou, passando de 6 unidades em 1880, para 63 em 1890 (So e Chiu, 1995). Apesar da derrubada de quase todas as proibições à entrada de produtos estrangeiros, incluindo o ópio, este continuou o produto mais importado no século XIX, o que ilustra a falta de competitividades das mercadorias importadas. Até o início dos anos 1890, através do controle da indústria de bens intermediários (carvão, minérios), transportes (ferrovias, empresas de navegação), estaleiros e serviços públicos, as elites e governo imperial conseguiram influenciar a integração à economia-mundo. Mas a situação mudou completamente após a derrota na guerra contra o Japão em 1894, que levou ao tratado de Shimonoseki (1895), que obrigou a China a fazer mais concessões, pagar pesada indenização e a aceitar empresas estrangeiras, inclusive na mineração e ferrovias, o que o governo vinha impedindo desde os anos 1860’s. Também no endividamento externo, 1895 foi um divisor de águas. Raros até então, os empréstimos aumentaram muito daí para frente, devido à insuficiência das receitas públicas para pagar as despesas da guerra contra o Japão, as indenizações impostas e para investir em ferrovias.
Sob o comando do Partido Nacionalista Chinês (PNC), o estado republicano instalado em 1912 teve que lidar com as guerras entre os potentados locais, o crescimento do Partido Comunista, a invasão japonesa em 1937 e o descontentamento social causado pela destruição das atividades econômicas e das relações sociais. Tudo isso impediu a criação de Estado forte o suficiente para centralizar o poder e implementar uma estratégia mais coerente de integração à E-MC. Em meio à invasão japonesa de 1930, à crise mundial e à Segunda guerra Mundial, os conflitos entre o PNC e o Partido Comunista Chinês (PCC) evoluíram para uma guerra civil, vencida pelo PCC, que em 1/10/1949 instaurou a República Popular da China (RPC). Com isso, a incorporação parcial e fragmentada sofreu um retrocesso radical, mas a China continuou ligada à economia-mundo capitalista.
1949-78: Integração mínima
Como acontece com os movimentos antisistêmicos, o estado comunista chinês também foi hostilizado pelas forças capitalistas mundiais e por isso teve que limitar ao mínimo as conexões com a economia-mundo capitalista, mas estas continuaram existindo através das relações comerciais com a URSS, com outros países socialistas e também com países capitalistas. No que segue vamos utilizar dados e informações de Fan (1973)[1] sobre o comércio externo chinês como comprovação das conexões da China com a E-MC, conexões estas vitais para o nascente estado comunista.
Na década de 1950, a China recorreu aos países socialistas, especialmente à URSS, importando sobretudo máquinas e fábricas inteiras, e exportando alimentos, matérias-primas e bens de consumo. Entre 1950 e 1960, o comércio externo cresceu de US$ 350 milhões para US$ 3 bilhões, 70% sendo com a URSS. Apesar de bem menor, o comércio com países não comunistas se aproximava dos 25%, chegando a 30% do comércio exterior chinês em 1959. Após o rompimento com a URSS no início dos anos 1960s, as transações com países não comunistas passaram de US$ 1.37 bilhão em 1960, para 2,12 bilhões de dólares em 1964. Nos mesmos anos o comércio com a URSS caiu de US$ 1,7 bilhão para US$ 450 milhões.
Devido ao fracasso do Grande Salto Adiante, pela primeira vez a China importou grandes quantidades de grãos, principalmente do Canadá e da Austrália. E como a agricultura se tornou a prioridade número um, também cresceu a importação de fertilizantes químicos, que vinham majoritariamente do Japão e da Europa Ocidental, de onde também eram importadas fábricas completas, além de assistência técnica e créditos. Ao mesmo tempo que importava trigo, a China exportava arroz, que nos anos 1960s alcançava bons preços no mercado mundial.
O comércio externo diminuiu levemente durante a Revolução Cultural, voltou a crescer após a restauração da ordem em 1969 e chegou ao recorde de US$ 4,5 bilhões em 1971. Os principais itens importados eram ferro, aço e metais não ferrosos, além de manufaturados de ferro e aço. A composição das exportações mudou pouco. Em 1970, o grupo alimentos e materiais brutos e o grupo químicos e manufaturados representavam, cada um, 50% do total exportado. Entre 1966-70 cresceu continuamente o comércio com países não comunistas, chegando em 1970 a mais de 80% do total. Com países da Europa do Leste, subiu de 5% em 1964 para 8% em 1970. Com os países desenvolvidos, passou de 39% em 1965 para 53% em 1970.
A tabela 1 abaixo mostra a participação do comércio exterior chinês no comércio mundial. Como se pode ver, os percentuais diminuíram consideravelmente após 1949, chegando nos anos 1970’s a pouco mais de 1/3 do que eram em 1945. Além do comércio, também havia financiamentos. Diferente do que fez a maioria dos países periféricos e semiperiféricos, nos anos 1970, a China recorreu pouco ao crédito externo.
Tabela 1-Comércio exterior da China (CEC)/Comércio exterior do mundo (CEM)- %
Período | CEX/CEM |
1913 | 1,88 |
1925 | 2,30 |
1930 | 1,83 |
1938 | 1,98 |
1945 | 1,98 |
1950s | 1,70 |
1970s | 0,70 |
Fonte: Keller et alli , 2010.
Contudo, quando as relações com o Ocidente se intensificaram após 1972, o “déficit comercial se deteriorou como resultado da onda de importações de máquinas” (Hung, 2015, p.49). Como consequência da política maoísta da autossuficiência, em 1981 a relação dívida externa/renda nacional bruta chinesa era 2,99. Brasil e Argentina chegavam a 52,6 e 46,6, respectivamente (Hung, 2015, p.50). O aumento da importação de máquinas denota que a redução dos laços com a economia-mundo gerou um certo atraso tecnológico. Esse atraso, em grande parte causado pela priorização da ideologia revolucionária em detrimento do crescimento econômico e do bem-estar material, ajuda a entender porque no início da década de 1980 a China era um dos países mais pobres do mundo e ao mesmo tempo igualitário, com um índice de Gini de 0,35.
1978 até o presente: integração voluntária, total e irreversível
O processo de reforma e abertura iniciado em 1978 pelo grupo liderado por Deng Xiaoping concretizou a decisão de integrar totalmente a China à economia-mundo capitalista (E-MC). Por que o mesmo PCC – embora não mais sob o comando de Mao – resolveu inverter completamente a relação da China com a economia-mundo? Porque a relação anterior não mais atendia os novos objetivos da ala dominante do PCC: promover o bem-estar material do povo chinês e o poder interno e externo do próprio partido. Espelhando-se na experiência do Japão, Coreia do Sul e outros países da Ásia, a ala reformista do PCC viu que seus objetivos seriam alcançados reconciliando-se com a economia-mundo capitalista e adotando o método de maior sucesso para a criação da riqueza material criado pelo ser humano: a acumulação sem fim de capital, mesmo que para isso tivessem que negar todos os princípios ideológicos e práticas econômicas do partido desde 1921 até 1976. Alguns poucos dados dão conta do acerto da decisão: o país tirou 800 milhões de pessoas da pobreza desde que começou o processo de reformas e abertura em 1978; a renda per capita passou de US$ 1.744 no ano de 1978 para US$ 13.102 em 2018 a preços de 2011. A China agora é um país de renda média, com uma população de 1,4 bilhão de pessoas; o PIB chinês representava 5,9 % do PIB mundial em 1980 e 16% 40 anos depois; a China já enviou uma nave à lua e suas empresas lideram ramos das tecnologias mais avançadas, como o 5G e a inteligência artificial.
Portanto, até agora é inegável o acerto da estratégia de integração total à economia-mundo através do comércio, da abertura aos investimentos externos, do estímulo à acumulação sem fim de capital, aos investimentos chineses nos quatro cantos do mundo, da assimilação das tecnologias ocidentais, e do aprofundamento das relações diplomáticas, científicas e culturais com o maior número possível de países.
Se o sucesso do caminho tomado em 1978 parece estar comprovado, quais são e poderão ser as consequências dessa decisão para a China?
A primeira, e talvez mais importante, é que se trata de um caminho sem volta. Depois de 40 anos os destinos da China e da E-MC estão de tal modo unidos que uma separação poderia provocar o desmoronamento de ambas. Talvez por isso a integração vem sendo continuamente reafirmada e aprofundada em vários momentos posteriores a 1978: a) em 1989, quando as divisões internas no PCC e os protestos estudantis ameaçavam as reformas, mas Deng e os reformadores sufocaram os protestos sociais e os adversários dentro do PCC; b) em 2001, com a entrada na OMC; c) em 1990, com a política going global, com a qual o Estado chinês incentivou a internacionalização de suas empresas; d) em 2013, com a Nova Rota da Seda, que é uma grande proposta para conectar a China ao mundo por meio de estradas, ferrovias, portos, telecomunicações, comércio, finanças e relações interpessoais. Na perspectiva deste ensaio a Nova Rota da Seda e as instituições a ela associadas (Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, o Novo Banco de Desenvolvimento, o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Importação-Exportação da China) compõem uma estratégia de conduzir a integração segundo os interesses e valores chineses, e, no limite, influenciar o funcionamento da própria E-MC.
Uma segunda consequência é que a subordinação da China ao funcionamento e características da economia-mundo a obriga: a) a incentivar a acumulação sem fim do capital com todas as suas consequências em termos de desigualdade, deterioração da natureza e redução do ser humano a produtor e consumidor); b) a acirrar a competição interestatal uma vez que o acúmulo de riqueza por um Estado é proporcional à sua influência na política mundial, que depende de sua capacidade militar; c) dado que a acumulação incessante de capital e de poder determinam o desenvolvimento científico e tecnológico, a China forçosamente terá que desenvolver tecnologias que se afastam das necessidades verdadeiramente humanas.
Ao fortalecer a E-MC, a China estará se distanciando mais e mais do que o PCC pretendia com a revolução de 1949. A alternativa seria a China mudar o funcionamento do sistema, mas de qual China estamos falando? Esta pergunta se deve a que as mudanças econômicas, políticas, sociais dos últimos 43 anos estão criando uma nova China, ainda indefinida. Diante do que aconteceu com a “China de Mao”, não se pode dizer que a “China de Deng” esteja consolidada. E qual é o futuro da E-MC? Mesmo sem considerar que esse sistema pode estar vivendo sua crise terminal (Wallerstein), o declínio da hegemonia dos EUA e a ascensão da China nos induzem a pensar que as próximas décadas serão caracterizadas por conflitos e instabilidades geradas 1) pelos EUA, que, não aceitando a nova realidade do poder global, tentarão desestabilizar a China, e 2) da própria China, que atravessa uma conjuntura de transição para uma nova identidade econômica, política, ideológica e social pós-Mao. E períodos de transição são, por definição, incertos.
Pedro Vieira é membro do programa de pós-graduação em relações internacionais da UFSC e coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia Política dos Sistemas-Mundo. E-mail: pavieira60@gmail.com
Referências
Fan, Liang-Ching. “The economy and foreign trade of China”. Law and Contemporary Problems, Vol. 38, No. 2, Trade with China (Summer – Autumn, 1973), pp. 249-259
Hung, Ho-Fung. The China boom. Columbia University Press, 2015.
Keller, W.; Li, Ben; Shiue, C.H. “China’s Foreign Trade: Perspective from the past 150 Years”. NBER Working Paper No. 16550, 2010. Disponível em: https://www.nber.org/papers/w16550. Acessado 5/3/2021.
Moulder, Frances W. Japan, China and the world economy. Cambridge University Press, 1977.
So, Alvin Y.;Chiu, Stephen, W.K. East Asia and the world economy, Sage Publications, 1995.
[1] Esta descrição está inteiramente baseada neste autor.