Por Maria Cristina Couto
Os filmes de ficção científica procuram projetar o futuro da humanidade a partir de dimensões diversas: os cenários, os objetos e as personagens. Essa projeção, em A chegada, além de referir-se ao futuro de maneira objetiva, aponta também para questões amplas da humanidade, como a incerteza, quais seriam as possibilidades a partir do conhecimento do tempo futuro e ainda qual a importância da linguagem e das comunicações nesse contexto.
Alguns filmes pertencentes ao gênero de ficção científica utilizam a estrutura do gênero para dialogar com temas universais, a partir da presença de um “outro” estranho que desencadeia processos individuais nos personagens, mas que se referem a questões amplas da natureza humana, discutindo em certa medida aspectos da filosofia.
Isso pode ser analisado no filme A chegada (The arrive, Dennis Vileneuve, 2016), o primeiro longa-metragem de ficção científica do diretor canadense Dennis Vileneuve. Trata-se de uma narrativa não linear, que conta a história da chegada de naves extraterrestres em alguns pontos do planeta com seres posteriormente chamados de heptapods, e a jornada da personagem da Dr. Louise Banks (interpretada por Amy Adams), uma linguista que acaba desenvolvendo uma forma de comunicação com esses seres a fim de descobrir os motivos pelos quais eles vieram para a Terra. A chegada dos seres de outro planeta é o tema escolhido para a discussão de aspectos da natureza humana e sua relação com o tempo, com o livre-arbítrio e com o controle de ambos pelo indivíduo a partir da trajetória da personagem de Banks.
O filme se inicia com flashbacks da personagem e a chegada dos heptapods desencadeia uma série desses flashbacks, confundindo o espectador a respeito do que é lembrança da personagem e o que é presságio futuro. Conforme a personagem de Banks desenvolve a forma de comunicação com os seres, tais flashbakcs/flashfowards tornam-se mais recorrentes e intensos. A constatação do tempo simultâneo, da não-linearidade do passado, presente e futuro é decorrente da imersão linguística da protagonista provocada pelo parceiro de trabalho Ian (Jeremy Renner) e da compreensão da língua dos heptapods dentro filme, representada, em forma escrita, por variações de círculos, representando o começo, meio e fim como algo único.
O filme trabalha a questão da ignorância humana a respeito do futuro, e a possibilidade de sabermos o que irá acontecer e o que então faremos com essas informações. As interrupções narrativas de Banks apresentam memórias/premonições da existência de uma filha, apresentada nos primeiros planos do filme, que nessa apresentação inicial, linear, localizava-se no tempo passado, e teria morrido de uma doença rara incurável. Com o desenvolvimento do diálogo da protagonista com os seres e a intensificação dessas interrupções, é revelado que Banks ainda terá/já teve/tem uma filha e que ela sabia/sabe/saberá que ela morreu/morrerá de uma doença. Assim, o poder de escolha é dado à personagem em relação ao que fazer sobre o futuro, tendo as informações a respeito da história da menina.
Se imaginarmos o tempo como algo que acontece simultaneamente, o conceito de livre-arbítrio, assim como o de um caminho pré-estabelecido, deixam de fazer sentido ou, no mínimo, deixam de ter o valor que damos a eles. A chegada estabelece um contexto diferente em que talvez os heptapods e Banks ajam para criar o futuro, mas sem que eles sejam determinados por ele. É como se o futuro (ou qualquer outro tempo) não existisse sem que houvesse algum tipo de ação para ratificá-lo, para sancioná-lo. Afinal, não fosse assim, não haveria razão para os alienígenas virem à Terra para catalisar os acontecimentos que vemos desenrolar não cronologicamente.
Segundo Luís Nogueira (2010) a preocupação com o futuro, tema característico ao gênero de ficção científica, é uma constante inerente aos seres humanos. Para o autor, a religião e a magia foram responsáveis durante muitos séculos pelas previsões e sustentaram expectativas a respeito do que está para vir. O desenvolvimento da “ciência e a tecnologia acabariam por ocupar o seu lugar enquanto meios privilegiados de especulação (através da experimentação laboratorial, do cálculo racional, da previsão lógica)” (2010, p. 29). Assim, A chegada trabalha um tema que faz parte da estrutura do gênero, porém dentro de uma narrativa não linear que problematiza de maneira mais intensa tal questão da incerteza (ou certeza) sobre o futuro.
Nota-se que a chave principal do filme é a inserção de um elemento estranho do âmbito do fantástico (os heptapods), externo, como meio de autoconhecimento individual (da personagem de Banks) e da humanidade – a chegada dos alienígenas é o ponto que desencadeia a discussão de questões individuais dos personagens, representações universais da humanidade. Nesse sentido, a linguagem, assunto que se desenvolve junto com a temática do tempo como protagonista, representada de maneira objetiva pela personagem de Banks, tem papel fundamental, já que é a busca pela comunicação com os elementos exteriores e estranhos que possibilita tais descobertas.
Estruturalmente, apesar desse protagonismo da língua e da linguagem no desenvolvimento da narrativa, o filme apresenta poucos diálogos, investindo em uma construção sonora que problematiza a dimensão da comunicação para além da fala da maneira que a conhecemos.
Ainda segundo Nogueira, os filmes de ficção científica procuram projetar o futuro da humanidade a partir de dimensões diversas: os cenários (cibernéticos, metropolitanos, espaciais ou apocalípticos), os objetos e as personagens (aliens, robots, cyborgs e androides) (2010, pg. 30). Essa projeção, em A chegada, além de referir-se ao futuro de maneira objetiva, aponta também para questões amplas da humanidade, como a incerteza do futuro, quais seriam as possibilidades a partir do conhecimento do tempo futuro e ainda qual a importância da linguagem e das comunicações nesse contexto.
Nessa mesma linha de desenvolvimento narrativo, temos filmes como Interestelar (Interestellar, Christopher Nolan, 2014) e Gravidade (Gravity, Alfonso Cuarón, 2013). Em Interestelar, a viagem através do espaço desconhecido age como elemento articulador das questões relativas ao tempo e ao controle que os seres humanos têm sobre o transcorrer do mesmo. No filme de Nolan, da mesma maneira, a questão da comunicação é discutida, mas a partir do ambiente familiar e das dificuldades de comunicação nesse núcleo, que geram desdobramentos para as personagens no que se refere à percepção do tempo e sua ação nele. Em Gravidade a chave é outra: a jornada ainda é ponto de início das reflexões sobre o tempo e sobre o papel da humanidade no contexto amplo do universal e da responsabilidade sobre a ação no planeta Terra, porém a partir da perspectiva do isolamento e da ausência de comunicação. No entanto, em ambos os filmes, tais temas são estruturados de maneira linear, guiando o espectador a partir de uma narrativa cronológica ainda que permeada de silêncios e grandes momentos de contemplação do espaço.
Outro filme que discute as mesmas temáticas de tempo e ação do homem sobre sua passagem é A árvore da vida (The tree of life, Terrence Malick, 2011) que, apesar de não pertencer a categoria do gênero ficção científica, dialoga com a mesma estrutura e ambientação narrativa. Pode-se observar, então, o aspecto híbrido e transitório das categorias e como um filme pode utilizar temas e estruturas narrativas de diversos gêneros. A árvore da vida mostra a rotina de uma família americana na década de 1950, apresentada como um arquétipo da origem do mundo e da vida na Terra. As imagens da vivência familiar são intercaladas com imagens que remetem a uma conexão com o princípio da vida em si, com uma abordagem do tempo e do espaço que é física, a partir de longas sequências abstratas do espaço, planetas, luzes e estrelas. O filme propõe o estiramento do tempo, com a utilização dessas imagens, e a representação da vida familiar fornece a dimensão objetiva da sua ação no desenvolvimento da humanidade representada pelo núcleo familiar.
Dentro dessas linhas temáticas, é inevitável a relação de tais obras com 2001: Uma odisseia no espaço (2001: A space odyssey, Stanley Kubrick, 1968), um representante canônico do gênero de ficção científica que, utilizando a estrutura linear, relaciona o desenvolvimento da humanidade, a passagem do tempo e a ação do homem sobre o planeta e sobre o tempo em uma representação monumental.
Da mesma maneira, as produções contemporâneas de ficção científica mantêm as características do gênero, mas atualizam as mesmas a partir de rupturas da linearidade, da inserção da família e da linguagem como elemento fundamental para compreensão do tema do tempo futuro e do diálogo com outros gêneros.
Maria Cristina Couto é doutoranda pelo programa de pós-graduação em multimeios da Unicamp.
Referências
Nogueira, L. Manuais de cinema II – gêneros cinematográficos. Portugal, Covilhã: LabCom, 2010.