Por Fabrício Albergaria
Professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC (UFABC) concedeu entrevista para ajudar a entender os processos ligados ao racismo estrutural e sua conexão com a habitação e a segregação social do Brasil. Patrícia é doutora em geografia pela USP, com pós-doutorado em planejamento e gestão do território pela UFABC.
Podemos afirmar que o racismo e a segregação urbana pela moradia, de modo geral, estão diretamente ligados?
O problema da urbanização precária, de ocupações irregulares, loteamentos clandestinos, favelas mais ou menos densas, mais bem localizadas ou de pior localização, não aconteceu agora. Precisamos recuar para entender que está estabelecida desde a Lei de Terras de 1850. Essa lei propiciou que a propriedade privada seja viabilizada para quem pode pagar por ela, ou seja, as pessoas brancas – até porque data de 30 anos antes da abolição da escravidão no Brasil.
A segregação tem uma origem muitíssimo mais remota e que tem a ver com raça e racismo. São as pessoas brancas que acessam a terra desde o século XIX. O quesito raça não aparece na política pública habitacional brasileira porque propositalmente o Estado e a sociedade se organizam para não o considerar.
Quando se abole o sistema de escravidão no Brasil, no final no final do século XIX e primeiros anos do século XX, há o favorecimento do acesso à terra ao grupo de imigrantes europeus que, num primeiro momento, são italianos, alemães e, na década de 1940, de maneira mais acentuada, asiáticos, japoneses. Esses grupos, sim, tiveram acesso à terra para serem colonos, para trabalharem, coisa que a população negra não recebeu.
Também estamos falando de inserção no mercado de trabalho. A população negra que estava trabalhando escravizada nas lavouras é substituída por esse outro grupo. A partir de 1930, na industrialização, os trabalhadores fabris e os operários são brancos pobres, não são negros pobres. O trabalho fabril brasileiro nunca foi para a população negra.
Também é muito interessante pensar em provisão habitacional, porque entre as décadas de 1930 e 1940 não tem um Estado produzindo habitação. No primeiro surto da industrialização quem produz as poucas habitações para os operários são os próprios donos das indústrias. Antes disso, do final da escravidão até essa década de 1930, não existe casa própria. O acesso à casa é coletivo, daí os cortiços, as habitações coletivas privadas, rentistas, paga-se aluguel. A literatura brasileira é fortíssima de textos que narram essa condição. Acho que o mais famoso é O cortiço, de Aloísio de Azevedo, que narra o encortiçamento na cidade do Rio de Janeiro. Um historiador, também carioca e que fala bastante disso é o Sidney Chalhoub, que escreveu A cidade febril. Só se acessa casa pagando muito caro por ela.
Quando e como surgem as políticas habitacionais massivas no Brasil? E qual era a relação com a população negra e mais pobre?
Quando chega essa industrialização, os melhores empregos fabris não vão para a população negra. A população negra são os varredores de trilho, esvaziando as latrinas, fazendo faxina, os trabalhos de cuidado. Os comerciantes não são os homens negros. E desde o início é um viés economicista, é o viés da renda: se você tem renda, você tem habitação; seja ela própria, seja alugando. Até porque não tem política habitacional com estrutura, com financiamento, com público elegível. Não existe ainda esse desenho. Isso começa a aparecer na década de 1940, com Getúlio Vargas, de uma maneira bastante incipiente, mas é ali que vai aparecer a casa própria como ideologia, como discurso. Ele empreende uma primeira tentativa de política habitacional para um público muito específico, que são os IAPIs (Instituto de Aposentadorias e Pensão). É o dinheiro dos próprios trabalhadores que vai dar substância para um fundo que vai produzir a casa desses operários. São operários, com carteira assinada; são os bancários, metalúrgicos, industriários, trabalhadores da indústria têxtil, setores muito específicos. É uma primeira tentativa, não é uma política habitacional massiva e estruturada institucionalmente.
Da década de 1940 até 1970 a industrialização se torna bastante sólida, que é a industrialização com baixos salários, e isso vai refletir numa urbanização com o surgimento das favelas e ocupações irregulares. Entre as décadas de 1960 e 1980 um fluxo de imigrantes vem para trabalhar na industrialização sudestina e há crescimento avassalador dessas áreas.
No período da ditadura militar começa a empreender uma política habitacional com estrutura e o principal agente desse momento para a habitação é o Banco Nacional da Habitação (BNH). Todas as cidades importantes brasileiras receberam conjuntos habitacionais empreendidos pela política do BNH, que faz isso via Companhias Estaduais de Habitação – Cohab. Um pouco depois também tem a Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU) e as cooperativas, mas em menor escala.
Falando em números, em todo o período foram 4 milhões de habitações, teoricamente para a população de menor renda, mas pesquisas importantes detectaram que apenas 30% desse total foi direcionado de fato para a população de zero a três salários-mínimos, que é a faixa que o programa “Minha casa minha vida” tem como prioritária. Todo o restante foi para uma classe média-baixa.
Como os programas de moradia popular contribuem para o aprofundamento da segregação social?
Tanto o programa “Minha casa minha vida”, lá na sua primeira versão, como agora, já prevê a requalificação de edifícios em áreas centrais, mas na primeira versão foi um número irrisório – é possível contar nos dedos de uma mão os edifícios que foram beneficiados por esse instrumento. Agora há uma tentativa com várias prerrogativas e diretrizes para que isso alcance um número maior de produção.
Não é verdade que no interior do tecido urbano não tem espaço, não é verdade que não dá mais para fazer habitação. Se assim fosse, nós não veríamos tantos prédios novos sendo erguidos. Em São Paulo, nesse momento, tem um número gigantesco de edifícios sendo construídos, em áreas que estavam vazias, esperando a especulação imobiliária, ou em terrenos em que foram compradas várias casas numa mesma quadra por um mesmo empreendedor ou incorporadora.
A pergunta que precisamos fazer é por que que essa produção habitacional não atua para a população de menor renda dentro do tecido urbano já estruturado, dentro dessa cidade que já está funcionando, com sistema de transporte viário minimamente resolvido, equipamentos de lazer, cultura, educação e, principalmente, postos de trabalho.
O município deve olhar para seu mapa e diagnosticar o uso, ocupação do solo e terrenos que sejam interessantes, públicos, abandonados, ociosos. Há vários no Brasil que também são da União. Há ainda terrenos possíveis de transformar em uma habitação popular. Esse é o conceito das Zeis (Zona Especial de Interesse Social).
O problema se repete em todo o Brasil: áreas centrais dotadas de infraestrutura e vários terrenos com problemas, abandonados e ociosos. É preciso haver um esforço de melhorar as condições de habitabilidade desses edifícios e dotá-los de capacidade para que sejam ocupados pelas famílias com menor poder aquisitivo.