Por Mariana Ribeiro
Aumento da população em situação de rua carrega consigo a história de um modelo de cidade que favorece a desigualdade
Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Reflexo de um complexo conjunto de fatores sociais, econômicos e sanitários, o aumento da população em situação de rua em momentos de crises carrega consigo também uma história de escolhas de planejamento urbano que construíram e reforçaram a segregação nas cidades. Ao mesmo tempo em que a lógica de organização do espaço favorece a desigualdade, uma paisagem composta por muros, grades e objetos pontiagudos voltados a separar os “indesejáveis” evidencia o uso do mobiliário urbano como ferramenta de exclusão.
O nascimento do urbanismo já foi acompanhado de contradições, aponta Adalberto da Silva Retto Jr., professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da Unesp. “Ele nasce como uma ciência querendo resolver problemas gerais, mas já com uma clara segregação espacial entre classes sociais”, afirma. Sidney Piochi Bernardini, docente do Departamento de Arquitetura e Construção da Unicamp, acrescenta que o desenvolvimento da área se deu a partir de uma visão que priorizou as elites, que puderam escolher como e onde viver. “Esse é um reflexo claro da nossa herança escravocrata. Ela está no DNA dos espaços urbanos e é fundamental para entendermos por que o tema população em situação de rua se tornou uma problemática tão importante no país”.
No começo do século XX, com a intensificação dos processos de êxodo rural e industrialização, assim como o fortalecimento do imaginário de cidade moderna, houve uma mudança radical que estabeleceu as bases de um modelo de desigualdade no espaço urbano. “Parte dessa população, inclusive de ex-escravizados, que chega nas cidades, vive de subempregos, parte não é absorvida. Crescem as moradias alternativas, os cortiços, as favelas”, observa Bernardini. “Já é possível identificar a existência de população em situação de rua desde aí. São pessoas que fazem parte do grupo dos indesejáveis, dos que não condizem com esse lugar moderno que se busca”.
A construção de um padrão de cidade pautado na dicotomia centro-periferia também intensificou os desafios e tensões presentes no espaço urbano e favoreceu a concentração de pessoas em situação de rua nas regiões centrais. A lógica de estabelecimento de um centro muito delimitado e não um modelo urbano mais descentralizado, com vários centros, contribui com o cenário observado hoje em diferentes lugares, explica Deborah Fromm, pesquisadora do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Fromm, que conduziu pesquisas na Cracolândia, na capital paulista, explica que as regiões centrais atraem pessoas vindas de outros municípios ou áreas periféricas por oferecerem mais oportunidades para obtenção de recursos, além de concentrarem aparelhos de assistência, sejam os oferecidos pelo Estado ou por ONGs e entidades religiosas. Há ainda um fator ligado à insegurança habitacional, já que parte da população em situação de rua é formada por pessoas que em alguns momentos têm casa, regular ou irregular, e, em outros, não. “Na pandemia isso ficou muito claro”, diz a pesquisadora.
Políticas públicas habitacionais, legislações urbanísticas e planos diretores construídos desde o século passado incorporaram interesses políticos e econômicos que intensificaram distorções, principalmente nas grandes cidades, explica ainda Bernardini. Houve uma consolidação da segregação. “Em vez de reequilibrar as externalidades, ou seja, atuar nas situações de desequilíbrio, o Estado se associa ao mercado”.
O pesquisador reforça a relação entre a força do mercado imobiliário e os processos de gentrificação e insegurança habitacional. A busca de novas áreas para exploração comercial e o aumento do valor dos imóveis em determinadas regiões têm efeito cascata sobre a população e parte desse contingente vai viver nas ruas, acrescenta o professor da Unicamp. Ele cita os dados do Observatório de Remoções, do LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que mostram que, de 2017 a 2023, foram 42 mil famílias atingidas por remoções na Região Metropolitana de São Paulo e outras 238 mil famílias ameaçadas.
Arquitetura excludente
Estratégias de exclusão e expulsão também se manifestam por meio do uso do mobiliário urbano, no que ficou conhecido como “arquitetura hostil” ou “excludente”, explica Retto. É o caso, por exemplo, dos bancos ondulados ou com divisões colocados em praças e dos espinhos, pontas metálicas ou pedras introduzidas perto da entrada de estabelecimentos ou sob viadutos. Essa estratégia pode se dar ainda por meio da retirada de elementos que antes traziam conforto ao espaço público, como bancos e marquises. São barreiras criadas para que a divisão entre a cidade pública e a privada fique delimitada.
“Existe sim uma arquitetura hostil e nós, arquitetos, fomos coniventes. Nós, diante de um cliente, também projetamos lugares para distanciamento. Ao invés de termos uma arquitetura generosa, começamos a criar elementos de afastamento. Isso acontece não só no Brasil, mas no mundo todo”, afirma o professor da Unesp.
No lugar de uma arquitetura voltada a repelir pessoas, é preciso criar elementos de convivência que tornem as cidades mais diversas, acrescenta o pesquisador. Para ele, estratégias eficazes de regeneração dos centros são essenciais nesse processo e o bom uso do espaço público passa por garantir que as pluralidades possam coexistir. “Isso não acontecerá de forma pacífica, sempre haverá disputa, mas precisamos começar a construir uma cidade a partir das diferenças”.
Mariana Ribeiro é formada em jornalismo (Unesp) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)