Por Mariana Ribeiro
Ninguém é coitado. A frase, dita pelo redutor de danos Thiago Carvalho, resume o espírito do documentário Territórios marginais, no qual dez pessoas em situação de rua em Campinas (SP) e onze em Niterói (RJ) trocam vídeo-cartas sobre suas histórias e cotidiano. Com respeito e naturalidade, os relatos abordam diferentes dimensões da vida na rua e criam diálogos francos entre os protagonistas.
A multiplicidade de trajetórias aparece em histórias como a de Layla, que saiu de casa aos 12 anos após sofrer abusos físicos e psicológicos da mãe; Rogério, que conta ter perdido mulher, filho e emprego devido à dependência de álcool; Andréa, que tem problemas com a justiça; e José Antônio, que “já morreu cinco vezes” e teme ainda ser procurado.
“Eu usava muita droga quando eu vivia com a minha família, depois que eu vim para a rua, no começo eu fiz bastante consumo, mas depois parei. Eu sentia tanta vontade que eu mordia a Layla de machucar mesmo. Ela tem marcas”, conta Danilo, que vive em Campinas. “Minha família tem dinheiro, mas quando eu vou lá eles não querem me deixar sair. São dependentes do dinheiro, não saem de casa, não passeiam, não fazem nada”, diz Clóvis, também de Campinas.
Os relatos sobre passado e origem são intercalados com cenas do dia a dia. Os protagonistas contam como conseguem dinheiro e comida, onde escondem cobertas, o que pensam sobre abrigos. Aparecem conversando, cozinhando, cantando, puxando carroça e procurando ouro na praia. Rezam, falam de música e nomeiam amigos do presente e do passado.
“Neste centro aqui eu já tenho praticamente 19 anos, já peguei mês aqui de eu tirar R$ 4 mil com carroça. Agora não, com este desemprego muita gente partiu para a reciclagem”, diz Clóvis, que é ouvido por Rogério, de Niterói. “‘Garimpo’ é uma sorte. É que nem pescaria, tem dia que a gente se dá bem, tem dia que não”, comenta Rogério enquanto assiste ao depoimento.
A importância de políticas de saúde pautadas na redução de danos – que vêm perdendo espaço para abordagens de abstinência e internação compulsória – também é um tema lateral no documentário, abordado principalmente nas falas dos redutores de danos. Além de Carvalho, do Consultório na Rua de Campinas, também participa Phillipe Rocha Silva, que atua em Niterói.
“Eu falo muito na palavra convite, porque nada na redução de danos é imposto. Ela aproxima, cria vínculo, desconstrói estigma, promove acesso à saúde. Não passa pela norma, eu acho. Passa por outras coisas. Talvez a gente construa essa norma juntos”, diz Silva em seu relato. “Através de uma conversa, de uma escuta, a gente tenta criar outras possibilidades. Acho que a redução de danos é bem isso. Porque é a vida delas, às vezes a gente querer interferir naquela situação é ruim”, acrescenta Carvalho.
Lançado em 2019, Territórios marginais foi dirigido por Julio Matos, sociólogo pela Unicamp e mestre em mídia e comunicações na Goldsmiths – Univestity of London. Foi produzido pelo Laboratório Cisco, produtora audiovisual sediada em Campinas da qual Matos é um dos fundadores, e contou com recursos da Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec), que presta serviços de apoio à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
O documentário completo, com 28 minutos, está disponível aqui .