Por Carlos Vogt
Tecnologia e contemporaneidade são nomes cujo modo de significação tem várias características comuns, entre elas a da coexistência conceitual e prática num mundo que sem elas não existiria para nossa compreensão e cuja existência só se compreende por sua relação.
Contemporaneidade e tecnologia constituíam o tema dorsal da revista Luz que, infelizmente, no terceiro número se apagou.
Retomo aqui parte do que escrevi na “Apresentação” de cada número, assinalando que, entre os paradoxos que são marca da contemporaneidade, um deles dá bem a medida do intrincamento do mundo atual com a tecnologia.
Diz ele respeito à complexidade crescente das tecnologias e à simplicidade de seu acesso e funcionamento para o usuário, de tal modo que a sua formulação poderia ser: quanto mais complexo, mais simples, ou, vice-versa, quanto mais simples, mais complexo.
Se lembrarmos que o uso dos computadores, no início, era tarefa para iniciados e que a criação do computador pessoal abriu o caminho para a relação fácil e amigável do leigo com as TICs, nos damos conta da pertinência do paradoxo e do alcance de sua capacidade de explicação das nossas relações com as máquinas no mundo contemporâneo.
A sintaxe das máquinas mecânicas, embora complexa, reproduzia formas de organização e funcionamento cuja lógica, de certa forma, reproduzia a lógica da linguagem comum, ou ao menos das línguas naturais.
A sintaxe instituída pela eletrônica tem a estrutura lógica de linguagens abstratas, distantes da vivência que habita o potencial das línguas naturais mesmo que em níveis de alta sofisticação intelectual. Já não basta abrir o motor para entender o seu funcionamento. Contudo, é mais fácil fazê-lo funcionar para os fins a que se destina.
Essa distância sintática, e agora semântica, entre homem e máquina é também o que os aproxima, de um lado pela comodidade das facilidades que oferece, de outro, por uma espécie de novo fetiche, segundo o qual o incompreensível se torna acessível e manipulável para o bem-estar de quem se apropria da máquina e é apropriado pela tecnologia de sua inteligência.
Do ponto de vista da contemporaneidade, o enigma que nos acompanha é o de saber se somos ou não capazes de acertar nas perguntas. Em meio a tantas informações com tantos dados disponíveis, vivemos num mundo de respostas prontas, como que prisioneiros da liberdade de sermos escolhidos por soluções de problemas, também eles prontos, para cuja formulação temos a vaga e, às vezes, incômoda sensação de não termos em nada contribuído.
Como e quais questões formular para tentarmos tecer o fio de Ariadne, filtro de luz, que nos guie nas dúvidas corretas e nas incertezas pertinentes que possam ir conformando os enigmas a que responder com perguntas? As perguntas certas, ou ao menos certas perguntas, que possam conduzir o foco de nossa procura para os pontos de destaque dos discursos produzidos para explicar a sintaxe das indagações do homem contemporâneo e suas articulações semânticas com o mundo sendo refundado.
Uma das questões que caracterizou a contemporaneidade dos modernistas e que aparece em Baudelaire, citado por Peter Gay na obra O modernismo (2009), é a necessidade de ser contemporâneo. A sensação que guiava os homens era: É preciso ser contemporâneo! Em um mundo transformado pela Revolução Industrial e pela urbanização, o artista passa a sentir necessidade de atualizar-se e atualizar também sua arte, trazendo para esse universo elementos que, até então, não estavam inseridos na produção artística, por exemplo: estruturas de metal, velocidade, a indústria, o texto jornalístico etc. A arte e a literatura modernistas, portanto, tentam refletir o que é atual e contemporâneo, mudando com isso a concepção do que é belo.
Diferentemente dos modernos, a sociedade de hoje não tem necessidade de ser contemporânea. Ela tem desejo de ser contemporânea. Trata-se de uma mudança importante. Motivados que somos pelas novas tecnologias e por uma nova percepção do tempo, temos desejo de ser contemporâneos, e não uma necessidade, como no passado. Um dos traços fundamentais da contemporaneidade é justamente este: uma nova percepção do tempo. Um tempo fracionado pelo advento de uma era digital que representa e simboliza um tempo descontínuo, que resulta em uma percepção de que agora ele passa aos saltos diante de nós, despedaçado, como nos relógios digitais e nos tantos outros aparatos resultantes das novas tecnologias da informação. E o fracionamento do tempo resultará também no fracionamento do ser. O autor francês Paul Virillo nos diz que na pós-modernidade só há restos, nada mais é inteiro, panorâmico. O tempo da cronologia é substituído por um tempo que se expõe instantaneamente, um instantâneo que substituiu as longas durações estendidas em séculos pela intensidade dos séculos comprimidos no instante.
Na ausência da duração contínua, o sinal da passagem do tempo não é dado somente pela ruína, pelo envelhecimento, mas pode ser visto também na juventude e em outros símbolos. No lugar das horas, dos minutos do relógio analógico surgem as imagens gravadas que se tornam subitamente relógios do tempo, do resto do tempo. Essa mudança está intimamente ligada ao desenvolvimento das tecnologias de áudio e vídeo, a multiplicação dos canais de televisão, em detrimento das tecnologias dos automóveis, dos meios de transporte, e do deslocamento. É o movimento na imobilidade.
A velocidade das transformações do mundo e as novas tecnologias tornam o desejo de ser contemporâneo imperioso, inadiável. E é esse desejo que está ligado ao consumo, à permanente atração que se criou nos consumidores pela constante atualização de seus objetos, que tudo tem a ver com a aceleração, as angústias, as marcas materiais que diferenciam os indivíduos. Os atos de consumo e a intensificação do consumismo são, portanto, fundamentais para se entender nossa sociedade e seu desejo de consumo que é, antes, a expressão do desejo de contemporaneidade, de acompanhar o acontecimento, a velocidade, a transformação. O consumo dos produtos da tecnologia é constantemente alimentado pela busca de novidades, por parte dos mesmos consumidores: é o mesmo consumindo o diferente, o novo. Isso é diferente do que se observava na sociedade de massa, em que cada vez mais pessoas passavam a consumir o mesmo produto inovador que atingira os consumidores pioneiros, isto é, um indivíduo diferente consumindo o mesmo. Essa é uma diferença fundamental entre a sociedade industrial e a sociedade pós-industrial, movida pela permanente criação de produtos tecnologicamente mais avançados, com novas funcionalidades, que rapidamente são descartados para serem repostos pelo último lançamento.
Com a ajuda da mídia, esse poderoso apelo para o consumo da novidade continua alargando o número de consumidores, mas agora com base em um princípio de organização que não privilegia mais a quantidade de consumidores, mas sim a capacidade de o mesmo consumidor consumir mais. Assim, há os consumidores da tecnologia e há os consumidores da sobra da tecnologia. O foco muda: a produção não é mais realizada para ganhar amplitude de mercado, mas sim, para rapidamente reconquistar o mercado dos consumidores ávidos pela novidade. É sobre o desejo que se trabalha toda a motivação social, publicidade, marketing etc.
Ser contemporâneo está ligado ao desejo da contemporaneidade e esse desejo está ligado à velocidade da inovação tecnológica desenvolvida também de forma acelerada, para manter a sociedade consumindo.
Outro aspecto que marca a contemporaneidade decorre da mudança de paradigma de uma sociedade industrial para uma sociedade baseada no conhecimento — bem intangível e, ao mesmo tempo, agora, objeto de troca.
Com essa transformação, o meio físico perde especificidade, o produto se desmaterializa, se “comoditiza”; tudo é convertido para o formato digital. A indistinção é característica marcante do contemporâneo, acompanhada pela diluição das fronteiras. O mundo pós-moderno abre mão de um centro irradiador: assim como na internet, o tráfego acontece por várias rotas. Ninguém é proprietário e, ao mesmo tempo, todos são autores e donos de sua produção. Poucos, contudo, seguem sendo os que possuem as regras de controle da economia e do grande capital financeiro, permanecendo no mundo real uma concentração de poder que não espelha diretamente a sua distribuição virtual. Quer dizer, a imagem do mundo é mais democrática do que o mundo que se oferece à sua imaginação.
As tecnologias de comunicação possibilitam a exposição da privacidade de uma forma sem precedentes. O valor da privacidade é proporcional à capacidade de exposição da intimidade. Perde-se o pudor da exibição e, nessa exposição consentida, o que se mostra não é propriamente o indivíduo, mas uma imagem dele. As novas mídias permitem a vivência da realidade pelos seus simulacros; as imagens deixam de representar os fatos, elas são fatos em si. A distância entre a imagem e o que ela representa desaparece. Não há tempo suficiente para separar as duas coisas. Novamente, a indistinção entre sonho e realidade, entre realidade e representação, entre representação e espetáculo, entre espetáculo e recolhimento. O mundo recolhido em imagens expande-se, multiplica-se, fragmenta-se, em apresentações que são espetáculos passageiros, breves, corriqueiros, do indivíduo posto em notícia, em pose para a dispersão do instante.
Estamos longe, embora perto cronologicamente, das angústias existenciais e filosóficas que a técnica provocou no século XX, sobretudo em sua primeira metade. A tecnologia, superado o mundo da técnica industrial, põe-nos dentro do presente como numa cápsula de eternidade periódica que navega entre o passado e o futuro, agora como portos da sinapse eletrônica dessa navegação.
Não há angústias, há dúvidas; não há crise existencial, há a existência crítica de uma desconfiança de que a viagem encapsulada no presente possa transformá-lo de simulacro da mobilidade em imobilidade da simulação e, assim, ficarmos prisioneiros da liberdade de, como clones iludidos dos poderes de deuses, estarmos em toda parte sem estar em lugar nenhum.
* Publicado originalmente em: Vogt, C. “Tecnologia e contemporaneidade”. ComCiência, Campinas, 2011. Edição 131.