Por Raphael Alves
Pesquisas recentes da neurociência explicam como as sinapses são capazes de sincronizar com o ritmo de determinados estímulos sonoros, e de que forma essa ressonância auxilia na recuperação e desenvolvimento de funções cognitivas e motoras.
Estímulos musicais são capazes de ativar praticamente todas as áreas do cérebro, promovendo reações emocionais e físicas. Escutar determinado som é somente a primeira parte de um complexo processo que inclui, além da recepção, a interpretação, transmissão e sensação da música. “Nosso cérebro é música, ou a música é o nosso cérebro”, afirma o neurocientista e professor de neurobiologia da Stanford School of Medicine, Andrew Huberman. No episódio “Como usar música para impulsionar motivação, humor e melhorar o aprendizado” (tradução livre) do podcast Huberman Lab, ele afirma que, ao escutar música, quase todas as partes do cérebro são ativadas – não simultaneamente. O pesquisador explica que “a frequência dos impulsos neurais se combina com a frequência dos sons que são escutados”. Em outras palavras, o som externo é captado pelo sistema auditivo, e a partir daí o cérebro e o corpo atuam como se fossem um instrumento musical que vai tocando a música internamente, através dos impulsos elétricos do sistema nervoso.
A ação conjunta proporcionada pelos avanços das tecnologias e das técnicas de avaliação cognitiva permitiram um grande salto na compreensão do funcionamento do cérebro desde a década de 1980. Alexander Pantelyat, professor associado de neurologia do centro médico John Hopkins, afirma que, ao se analisar o nível de atividade cerebral através de imageamento por ressonância magnética, “múltiplas redes de neurônios são ativadas por consequência do ato de escutar música”. Segundo ele, ainda mais redes são ativadas ao cantar ou tocar um instrumento musical.
“Música é um fenômeno neurológico”, resume Huberman. Embora seja percebida, naturalmente, como um acontecimento externo, a música também engloba o conjunto de sinais elétricos que se propaga através do cérebro e do corpo. O estímulo sonoro produz a ignição dos circuitos neurais, resultando em uma reação em cadeia das células cerebrais. O neurônio é responsável por receber, interpretar e transmitir a informação do som. Nesse processo, cada célula contagia as células seguintes com maior ou menor intensidade, ativando ou suprimindo determinadas substâncias – os neurotransmissores e neuromoduladores. O processo se desenrola no ritmo da música que serve de estímulo. “Uma sinfonia de emoções, de impulsos elétricos e reações químicas que é tocada pelo corpo e pela mente”, completa o neurocientista.
Essa ressonância que ocorre entre um sinal – sonoro ou luminoso – de frequência bem definida e o fluxo elétrico dos neurônios é chamada de sincronização de ondas cerebrais (entrainment, em inglês, ou ainda BWE, sigla para brainwave entrainment), e tem sido estudada sistematicamente desde a década de 1980 – embora a primeira aplicação clínica registrada do uso de BWE é datada do fim o século XIX, resultado de uma experiência do psicólogo francês Pierre Janet.
Em um artigo publicado no Journal of Exercise Rehabilitation, os autores discutem aplicações da sincronização rítmica por meio de terapias musicais como formas de intervenção, tratamento e melhora da capacidade cognitiva, oral e motora de indivíduos identificados dentro do espectro autista. Em outro trabalho publicado na Scientific Report, do grupo Nature, pesquisadores identificaram melhora de desempenho em tarefas cognitivas de indivíduos submetidos à sincronização cerebral através de sons binaurais de 40 Hz. Os sons binaurais ocorrem quando ambos os ouvidos recebem um sinal tonal de frequências levemente distintas (neste caso, com uma diferença de 40 Hz).
O terapeuta musical Kyle Wilhem, que coordena a área de terapia musical na Colorado State University, utiliza o conceito da sincronização para recuperar pacientes vítimas de infartos que resultaram em sequelas motoras e cognitivas. “Eu uso a música como uma ferramenta para atingir objetivos não musicais”, afirma. A terapia não serve para ensinar a pessoa a cantar ou a tocar um instrumento, mas recuperar suas capacidades motoras, proporcionando melhora do caminhar e falar com mais clareza. Wilhem explica que os pacientes são submetidos a um som de ritmo bem definido, de maneira tal que “sincronizam os sinais motores com o som, e assim são capazes de, pouco a pouco, caminhar de maneira rítmica, no tempo do beat”.
Ao escutar música, há um aumento da atividade neuronal do córtex frontal, área do cérebro que ocupa a superfície logo abaixo do crânio, localizada atrás da testa. O córtex frontal é responsável, entre outras coisas, pelas tomadas de decisão e ação. Nesse sentido, a ele também é associado o senso de previsão e expectativa, criando reações do tipo “se acontecer isso, faça aquilo”. A ativação do córtex frontal pela música ocorre justamente porque ele tende a prever o som que será ouvido baseando-se nos sons que já foram captados. “O cérebro prevê quando a próxima batida vai acontecer, o que diz ao corpo quando dar o próximo passo”, complementa Wilhelm acerca do processo feito em pacientes com limitações motoras.
Essa capacidade de previsibilidade do córtex frontal está por trás da sensação de conforto e relaxamento que é experimentada diante de um som de ritmo lento e constante, características dos chamados ruídos branco e marrom, e que são bastante comuns em plataformas de streaming como sons estimulantes de atividades cognitivas. Outro exemplo constitui as batidas do gênero lo-fi (baixa fidelidade – low fidelity), que se tornaram bastante populares durante a pandemia de covid. Com ritmo lento (abaixo de 90 batidas por minuto), repetição e ausência de letras, esse tipo de música atende a essa demanda cerebral por padrões definidos, ao fornecer um estímulo sonoro facilmente identificável e previsível.
Por outro lado, a quebra de expectativa também gera uma reação no cérebro no corpo, impulsionando a sensação de surpresa. Quando a previsibilidade do córtex não é satisfeita, devido ao aparecimento de frequências inesperadas pelo cérebro, entram em ação os neurotransmissores e neuromoduladores. Eles podem, a partir da presença de um estímulo novo e inesperado, elevar o nível de serotonina do próximo neurônio, levando à sensação de satisfação, ou o contrário, derrubando o nível de serotonina a um nível abaixo do nível vigente, e trazendo desconforto ao ouvinte.
Raphael Alves é graduado em física (Unicamp), doutor em astronomia (USP). Cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)