Por Bruno Vaiano
Em entrevista à ComCiência, professor de composição há mais de 30 anos, um dos mais conceituados compositores de música eletroacústica do mundo e formulador do conceito de “música de escritura” explica que, paradoxalmente, é impossível ensinar composição. “Arte é invenção. É por isso que a inteligência artificial nunca vai fazer alguma coisa que preste em Composição, só vai manipular dados pré-existentes”, diz Menezes, que é docente no Instituto de Artes da Unesp e fundador do Studio PANaroma de Música Eletroacústica.
Bach, Beethoven, Mozart… Todo mundo tem na cabeça uma lista de compositores do que se costuma chamar de música “clássica” ou “erudita” ou de “concerto” – ainda que todos esses termos sejam deficientes de uma forma ou de outra, porque não definem realmente o que ela tem de diferente da música popular. No imaginário da maioria, essa forma de arte praticada por pianistas e orquestras está presa no passado: é sinônimo de violinos e smokings ou da trilha sonora de Tom e Jerry.
O curioso é que esses compositores se eternizaram justamente porque, no tempo em que viveram, suas obras não soavam empoeiradas. Pelo contrário: eram a vanguarda, o produto da imaginação de pessoas que não se conformaram com os padrões do seu tempo e fizeram a linguagem da música avançar. Compositores assim continuaram existindo ao longo do século 20 – que o diga John Cage, com a silenciosa peça 4’33”. E existem até hoje.
É só que o trabalho deles não soa parecido, na superfície, com o de seus antecessores europeus dos séculos 17, 18 ou 19, os monstros sagrados do cânone. A vanguarda da música, hoje, obviamente ainda envolve organizar sons e silêncios no tempo – e está impregnada de influências e referências ao passado. Mas a natureza dos sons e a duração dos silêncios não poderiam ser menos familiares a quem está habituado à dieta típica do Spotify.
O paulistano Flo Menezes, professor do Instituto de Artes da Unesp, e fundador do Studio PANaroma de Música Eletroacústica, é um desses vanguardistas. Flo é um dos mais conceituados compositores de música eletroacústica do mundo. (Não vamos tentar explicar o que é música eletroacústica: ouça algumas de suas peças com um bom par de fones de ouvido – há muitas disponíveis em seu site e seu canal no YouTube –, se deixe levar e tire suas conclusões.)
Abaixo, Menezes comenta inteligência artificial, o autoritarismo de Wagner e como ensinar o que não se pode ensinar: composição.
ComCiência: Você é um militante marxista assumido. Como você encara a obra de compositores com ideologias que batem de frente com a sua? Dá para separar o artista da arte? Ou a arte está impregnada pela ideologia?
Flô Menezes: Resumindo muito, acho que a arte obviamente é impregnada por uma questão ideológica, mas mantém um nível de autonomia. Marx reconhecia isso, Trotsky reconhecia isso. Os grandes marxistas cultos sabiam que a arte, por mais que fosse impregnada e determinada pelo seu meio, mantém um grande nível de autonomia. Há algo que diz respeito a ela mesma, e a nada mais que ela.
Existe uma dimensão social. Mas existe o que o Roman Jakobson – na minha opinião, o maior linguista do século 20 – definia como semiosis introversiva, ou seja, a linguagem que significa dentro dela mesma. Os elementos de percepção estética, sensorial. Então, é muito difícil você condenar a arte quando você percebe que ela é super-bem feita, ainda que tenha elementos autoritários.
Vou dar um exemplo claro: Wagner. Em sua música transparece um espírito autoritário a partir de um projeto megalomaníaco de construir uma cidade em torno da própria obra, um teatro só dele. [Em 1872, iniciou-se a construção de um teatro grande o suficiente para ambientar as obras de Wagner, já que as casas disponíveis na época não comportavam suas óperas.]
Ele tinha obras que mexem com toda a história da mitologia alemã e que ocupam toda uma tarde de um espectador. É querer chamar o mundo todo para si, e nisso tudo transparece um germanismo pré-nazista, inclusive porque ele era um assumido antissemita. Só que Wagner é um gênio. É impossível negar a maestria e a beleza da música de Wagner.
Então, a gente precisa saber separar o joio do trigo. O fato de você não só não se identificar como condenar determinada costura ideológica não implica necessariamente negar o que aquela criação artística tem, dentro da própria linguagem musical, de absolutamente pertinente e genial.
Eu não caio nessa cilada condenatória simples porque o objeto de arte é muito mais complexo do que uma mera prescrição ideológica do que é ou não positivo. Justamente devido ao fato de que ela mantém níveis de articulação que são autônomos, que não estão necessariamente ditados pela ideologia.
ComCiência: Você é professor de composição. Mas é possível ensinar a compor?
Flô Menezes: Eu vou dizer uma frase taxativa: é impossível ensinar composição. Eu sou professor de composição há mais de 30 anos. É impossível porque é impossível ensinar invenção, ela parte de cada um. O que você consegue fazer é orientar a composição.
Orientação no sentido de guiar, de pôr o dedo na ferida, de discutir, de fazer o aluno pensar em determinado aspecto da composição naquele ato… Mas, para isso acontecer, precisa haver uma criação inventiva, alguma produção criativa que venha do próprio aluno. E essa produção da invenção, apenas ele pode começar a fazer. Você não consegue ensinar o aluno a inventar.
A melhor aula de composição é a análise. A partir da análise você consegue destrinchar e decompor algo que já está composto e, portanto, regredir à fase anterior daquele compositor – porque, para compor, aquele compositor mesmo decompôs alguma coisa antes. É por isso que eu falo que o compositor é, na verdade, um recompositor. Isto porque ele, antes de “compor”, decompõe seus materiais.
ComCiência: Pensando na ideia de recompor: quando você compõe, como você lida com a sombra dos compositores que vieram antes de você? É difícil ser inventivo, você precisa tentar conscientemente quebrar a linguagem em vez de imitar a linguagem?
Flô Menezes: Não, pelo contrário: no meu trabalho, particularmente, eu nunca quis fazer tábula rasa. Eu sempre quis construir um culto à intertextualidade, que eu acho que é uma das coisas mais fundamentais da história do que chamo de música de escritura. A forma como você, por meio da invenção do teu gesto, respinga aquilo em vários fatos passados – às vezes, de épocas muito remotas, referências a Monteverdi e por aí vai.
Vou te dar um exemplo concreto, que me veio à cabeça agora. Nas 32 Variações em Dó Menor de Beethoven, de 1806, há um par de variações em Dó Maior (as variações XII e XII) em que ele mantém uma variante do tema exatamente no mesmo lugar, mas o acompanhamento da variação XII está em região grave, enquanto que o da variação XII está em região aguda. Ou seja, Beethoven de repente inverte a situação do acompanhamento com a mesma melodia continuando no mesmo lugar: o que estava no grave passa a acompanhar a mesma melodia em registro agudo, além, claro, de variar o próprio acompanhamento. Você tem aí uma espécie de caleidoscópio, em que a imagem do tema continua no mesmo lugar, mas tudo que está preenchendo esse tema muda de baixo para cima, do grave para o agudo.
Isso é uma ideia de inversão de textura, é uma coisa tão genial que eu refiz esse processo em uma das minhas peças, com materiais completamente diferentes. Mas quando eu fiz, eu me lembrei disso, ficou na minha cabeça. Não tem nada a ver com a “linguagem” de Beethoven, que é tonal [o sistema baseado em doze notas equidistantes que imperou na música de escritura até o começo do séc. 20, e que é a base da música popular do Ocidente até hoje], mas tem a ver com processos de escritura que estão lá e que independem do sistema de referência harmônico da época.
Ou seja, há sempre na grande música de escritura do passado procedimentos que são ou podem ser resgatados e relidos na atualidade em contextos completamente diversos. Tem-se, aí, um claro exemplo de intertextualidade.
ComCiência: Sua primeira peça, sua Opus 1, é um trabalho para piano preparado que você fez aos 17 anos. E antes disso você já compunha, já se interessava por música experimental. Você teve muitas oportunidades de acesso à cultura desde cedo, imagino.
Flô Menezes: Parte tem a ver com um talento meu, algum dom que me acompanha, obviamente. Eu tive sempre esse tino pela música contemporânea e pela especulação. Meus irmãos tiveram a mesma formação e seguiram outros caminhos. Minha irmã foi para o cinema, meu irmão tocava piano, mas foi para a literatura. E eu claramente tive, também, a influência da casa do meu pai, o poeta Florivaldo Menezes. Porque meu pai era a pessoa mais culta que eu conheci na minha vida, al lado de outras personalidades que também conheci, como os concretistas Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e outros. Todo esse pessoal vivia na minha casa.
ComCiência: Existe uma divisão entre música popular e música clássica, ou música erudita – e a música que você faz, é claro, está no campo dito erudito. Mas as palavras “clássico” e “erudito” não funcionam. Uma se refere a só um período – o classicismo. Exclui barroco, romantismo, as vanguardas do séc. 20… A outra tem um recorte de classe, elitista. Como resolver esse impasse? Que nome você daria?
Flô Menezes: Todos esses termos são limitados. Um termo que o poeta Augusto de Campos tentou emplacar e que algumas pessoas usam, e que dá título a um livro de ensaios que ele lançou pela editora Perspectiva, é “música de invenção”.
É um termo OK, porque a invenção é, de fato, o que norteia a música de vanguarda e a arte de um modo geral. E Mozart foi vanguarda, Monteverdi foi vanguarda, Bach foi vanguarda… Eles eram o que havia de mais interessante em suas épocas. Houve alguns compositores mais regressivos e menos inventivos. Mas, em geral, a linguagem é levada adiante, os estilos vão mudando a partir da vanguarda.
O que diferencia a arte em geral – e a música em particular – da ciência e da religião é justamente a invenção. A ciência é baseada na veracidade. Você tem que verificar a verdade pra coisa ir para frente, se a hipótese não é comprovada, a tese toda cai, não é? Já para a religião, o que vale é a crença, é um dogma em que você acredita. Na arte, por sua vez, opera a invenção. É por isso que a inteligência artificial nunca vai fazer alguma coisa que preste em arte. A inteligência artificial, na arte, vai manipular dados pré-existentes. Fazer como ela fez com o jogo de xadrez: mapear a possibilidades a partir dos dados já disponíveis.
Só que na arte, ao contrário do xadrez, você inventa. No xadrez, você pode prever os próximos movimentos e dar um lance genial, mas, na realidade, aquele lance não é uma invenção. Já está previsto matematicamente. É por isso que a máquina Deep Blue acabou ganhando do Kasparov.
Mas a arte inventa coisas que não existem antes. Ela não manipula esses dados, apenas. Ela parte, sim, de elementos que fazem parte da contemporaneidade e do passado. Mas não é só um agenciamento desses elementos, ela é alguma coisa que vai além desses elementos.
E se ela não inventa, é tautológica. Repete e acaba sendo uma arte medíocre, não vai para frente. A inteligência artificial pode até ser apreciada como um artista mais ou menos anacrônico, que faz coisas bonitas, mas não empurra a linguagem para frente, não causa mudança de estilos, que é o que caracteriza toda a história da cultura.
Então, existe uma coisa fundamental que é invenção. Nesse sentido, o Augusto de Campos tem razão quando fala de música de invenção.
ComCiência: Mas não existe invenção na música popular? Ela é só uma reciclagem dos padrões de cada gênero?
Flô Menezes: A invenção é algo que está presente em qualquer movimento artístico – mesmo naqueles que têm os dados, os elementos com os quais o artista mexe, muito regulamentados. Como, por exemplo, a música popular. Ela tem os seus estilos muito definidos, e em cima disso o cara inventa alguma coisa. Mas inventa em cima de um patamar muito cristalizado, em cima de padrões e paradigmas predifinidos. O que a gente faz [os compositores da dita música de vanguarda], além da invenção, é uma especulação em cima da linguagem. De forma que a invenção não é só uma manipulação em cima de standards que você já tem. O que acontece é que a própria linguagem se inventa. E essa invenção da própria linguagem é que faz com que haja quebra de paradigmas.
ComCiência: Você propõe um termo alternativo à “música de invenção”, que é “música de escritura”, e que escapa desse problema de que a música popular também envolve invenção, certo?
Flô Menezes: Sim. Essa processualidade, a estruturação desses dados rumo à invenção é o que se define por escritura. O que não acontece na música popular. Ela tem um aprisionamento muito maior dentro de paradigmas, que faz com que os jogos de linguagem da música popular sejam muito mais limitados.
A música de escritura vem desde o início da escrita musical, que se deu lá pelos anos 700 depois de Cristo. Essa escrita, que foi a forma de você começar a anotar o pensamento musical, a vertê-lo em notação, em escrita musical, permitiu a decolagem de uma processualidade inventiva: a escritura, que não se confunde com a escrita [que é a partitura em si, ou qualquer outra forma de registrar música no papel]. Fui o primeiro, no Brasil, a fazer essa distinção entre escrita e escritura.
A escrita é a forma de notação. A escritura se vale da escrita para evoluir enquanto invenção. Precisa existir uma escritura na cabeça para que a escrita seja necessária. E chega o momento, na música eletroacústica, por exemplo, em que a escrita já não é sequer necessária. Sobra só a escritura, você trabalha direto com os sons, já não há partitura. É uma coisa muito complexa e é por isso que é muito difícil que nossa arte seja compreendida.
Bruno Vaiano é editor da revista Superinteressante e cursa a Especialização em Jornalismo Científico do Labjor-Unicamp