Por Alanis Mahara
Há 20 anos, lei que estabelece a obrigatoriedade do ensino de cultura afro-brasileira e africana nas escolas ajudou a abertura do mercado editorial especializado
Em 1993, a escritora afro-americana Toni Morrison recebeu o prêmio Nobel de literatura por seus romances, figurando como a primeira mulher negra a receber a condecoração. Em discurso à premiação, Toni ressalta o papel transformador da escrita. “A língua é um pássaro na mão de alguém”, diz a autora, “vai depender de todo mundo se o pássaro está morto ou vivo, se voa e alcança novos rumos ou se permanece imóvel, infértil e inerte”.
Até 2023, o prêmio Nobel se reservou, majoritariamente, a uma premiação pouco diversa, laureando apenas 4 autores negros. Esse dado está atrelado às políticas editoriais e se reflete, também, nas obras disponibilizadas nas livrarias pelas grandes editoras.
No Brasil, há uma lei desde 2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de cultura afro-brasileira e africana nas escolas. Isso permitiu uma abertura do mercado especializado em literaturas africanas. Com respaldo da lei, as dinâmicas editoriais e sociais viabilizaram o surgimento de novas produções – essenciais em um país composto por 47% de pessoas pardas e 9% de pessoas negras, segundo dados de autodeclaração divulgados em 2022 pelo IBGE.
Para Rogério Andrade Barbosa, professor de literatura africana da Universidade Cândido Mendes, no contexto escolar, “o livro é como um espelho e as crianças precisam se ver refletidas neles para além das figuras estereotipadas”. A abertura do fluxo editorial para a produção afrocentrada permitiu, entre tantas outras ascensões, a identificação da população e a construção da subjetividade das personagens negras – já não mais relegadas aos papéis coadjuvantes – e expandiu, sobretudo, as possibilidades do letramento racial.
Segundo Rogério, que também é autor de livros infanto-juvenis premiados, o mercado se abriu aos poucos já que, a partir da lei, “as editoras perceberam que tinham um chão para publicar obras da literatura africana, e assim surgiram mais autores interessados na temática”. Gerada a demanda, as editoras foram estimuladas a terem em seu catálogo publicações que circundam a África e seus conhecimentos. Com 35 anos de atuação no campo literário e mais de 100 livros publicados, Rogério relembra o percurso de ascensão da literatura africana no Brasil: “O panorama mudou, atualmente quase todas as editoras têm em seus catálogos livros sobre a cultura africana”.
Até os anos 1980, entretanto, essa não era a realidade, conta o autor, sobretudo na esfera da literatura infantil. “Não tínhamos produções para as infâncias”, diz. Um dos projetos iniciais foi a coleção “Autores africanos”, com 27 volumes publicados pela editora Ática entre 1979 e 1990. Com o tempo, escritores e editoras pioneiras ganharam outras companhias, respaldadas pela demanda comercial e pela instituição da lei, em meados dos anos 2000.
Apesar do crescimento da oferta e da procura por livros da cultura africana, ainda existem desafios que devem ser enfrentados. “A lei é muito bem-vinda, mas o professorado tem dificuldade em aplicá-la porque na formação não teve disciplinas sobre o assunto. Apenas algumas cadeiras nas universidades se voltam para o campo das literaturas africanas”, diz o autor e pesquisador. As políticas públicas voltadas ao letramento da população não estão desvinculadas, a falta de disciplinas universitárias que discutam uma formação afrocentrada se reflete na sala de aula e no ensino básico.
Como estratégia de aplicação da lei, é preciso cursos que estimulem a capacitação dos professores e garantam a fruição de saberes comprometidos com a africanidade. Sem essa formação, as organizações educativas “se reservam a convidar autores para palestras”, pontua Rogério, que também atua como palestrante em ambientes escolares.
Em sua experiência, o autor considera os estigmas que devem ser enfrentados, “há que se desfazer os estereótipos lançados ao continente africano”. As imagens limitadas sobre o continente revelam o terreno imagético que ainda deve ser enfrentado pela literatura a fim de criar outros pontos de vista.
Foco maior em língua portuguesa
No panorama de livros trazidos ao Brasil, destacam-se as obras escritas em língua portuguesa. “As publicações que demandam traduções encarecem a produção”, aponta Rogério.
Para Alexandre dos Santos, jornalista e professor de história da África e de África Contemporânea no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio existem lacunas no panorama editorial brasileiro. “Ainda falta no Brasil atenção à África Índica – oriental, e à África muçulmana”. Ele também destaca o fato de alguns territórios estarem desfalcados no mercado editorial brasileiro: “Ainda não temos um livro do Lesoto ou do Essuatíni”, citando países da África Austral.
Segundo o pesquisador, também não há livros da República Centro Africana, do Chade – país da África Central, nem mesmo de Burkina Faso, representando a África Ocidental. Apesar dessas limitações, porém, concorda que é possível encontrar produções. “De uma maneira geral, temos produções literárias de muitas regiões do continente africano. Em relação ao panorama de dez anos atrás estamos bem servidos em termos de publicações, o que não significa que elas sejam suficientes”.
Alanis Mahara cursa Artes Cênicas (Unicamp), jornalismo e é bolsista Labjor (BAS-Unicamp)