Por Cláudio R. V. Braga
Quando se consolida, resultando no destaque para artistas negros e suas temáticas, a arte afrofuturista fortalece o senso de identidade e autoestima dentro da comunidade negra. Fora dela, contribui para que a diversidade humana seja mais bem visualizada e entendida.
Introdução
Tem-se falado bastante em Afrofuturismo nos últimos anos. Para os mais desinformados, o termo chega como um modismo, uma ideia inventada a partir do filme estadunidense Pantera Negra, de 2018, que se baseia no super-herói de mesmo nome, antes difundido nos quadrinhos da Marvel Comics. Mas a verdade é que o Afrofuturismo é um conceito mais antigo e mais sólido, utilizado para denominar um amplo movimento artístico-cultural transnacional, que combina de maneira complexa referências culturais africanas e afrodiaspóricas com elementos futuristas.
O termo em si foi cunhado por Mark Dery em 1990. Antes disso, porém, artistas negros de diversas áreas já eram afrofuturistas. Como destaca Ytasha Womack,
[...] com o surgimento do Afrofuturismo como um estudo filosófico, de repente artistas como a lenda do jazz de vanguarda Sun Ra, o pioneiro do funk George Clinton e a autora de ficção científica Octavia Butler foram redescobertos e reenquadrados pelos afrofuturistas como agentes de mudança social (WOMACK, p. 17).[1]
Ou seja, não há exatidão quanto à origem do Afrofuturismo como práxis, muito embora um recorte temporal plausível a ser considerado seria entre as décadas de 1960 e 1970, no cerne do Movimento Negro estadunidense pelos direitos civis.
Além da incerteza da origem, há a incerteza do conceito em si. De fato, o Afrofuturismo necessita ser mais bem definido, tendo em vista que sua crescente popularidade nas primeiras décadas século XXI às vezes leva a interpretações equivocadas. Na tentativa de tornar o debate mais compreensível, vamos recorrer ao trabalho que talvez seja o mais consistente sobre o tema: Afrofuturism: The World of Black Sci-fi and Fantasy Culture (2013), de Ytasha Womack, já que é considerado o primeiro tratado a reunir uma teorização mais aprofundada sobre o Afrofuturismo.
Outra constatação atual é a de que o Afrofuturismo não está só. Recentemente, a discussão foi tornada ainda mais interessante com o conceito de AfricanFuturism (Futurismoafricano), proposto pela escritora nigeriano-estadunidense Nnedi Okorafor, abordado mais ao final deste artigo.
Premissa e aspectos da arte afrofuturista
Citando importantes pensadores afrofuturistas das décadas finais do século XX, como Kodwo Eshun e Reynaldo Anderson, Ytasha Womack, em seu livro, explica que o termo Afrofuturismo faz referência a um amplo movimento artístico-cultural transdisciplinar e heterogêneo, podendo incluir literatura, música, artes visuais, cinema, moda, quadrinhos e performances. No entanto, que premissa fundamental poderia unificar tamanha diversidade? Seja em qualquer campo da arte, é preciso que haja o protagonismo negro para ser afrofuturista.
E protagonismo negro não é pouca coisa. É uma questão de equilíbrio de representatividades. Quando se consolida, resultando no destaque para artistas negros e suas temáticas, a arte afrofuturista fortalece o senso de identidade e autoestima dentro da comunidade negra. Fora dela, contribui para que a diversidade humana seja mais bem visualizada e entendida. Assim, neste processo fundamental de ocupação de espaços de expressão, as artes afrofuturistas estão criando emancipação para pessoas historicamente alijadas, por meio da valorização promovida pelas próprias produções culturais e artísticas negras. Uma vez firmada, a representatividade negra por meio da arte afrofuturista se converte em poderosa ferramenta de combate a estereótipos e preconceitos, ajudando a construir uma sociedade mais justa e, principalmente, inspirando novas gerações de artistas negros a seguirem seus sonhos criativos, sabendo que suas vozes importam e influenciam o mundo.
Além da representatividade, fica óbvio que o protagonismo negro é também uma questão de reparação histórica, ao proporcionar voz para talentos antes invisibilizados. As tragédias humanitárias da colonização e da escravização configuraram um mundo que priorizou as artes e as vozes europeias e estadunidenses, chamadas de “ocidentocêntricas” por Oyèrónkẹ Oyěwùmí (2020). Com o Afrofuturismo que agora se desenvolve e se firma, o “Ocidentocentrismo” é enfraquecido porque o reconhecimento de vozes e talentos negros combate o pensamento único. Vozes e talentos negros, cabe ressaltar, sempre existiram, mas quase nunca tiveram a devida visibilidade, tendo em vista as barreiras que discriminação levantou.
A partir da premissa inegociável de um protagonismo negro, outros aspectos fundamentais se juntam no entendimento de uma produção artística identificada como afrofuturista, como, por exemplo, a caraterística de ser elaborada e desenvolvida em relações com mitologias africanas e afrodiaspóricas. De modo geral, trazer tradições e culturas afro para as artes, além de preservá-las compartilhá-las, por si só já significa reequilibrar uma visão de mundo essencialmente ocidentocêntrica que tem predominado nos últimos séculos. Promove-se, assim, uma compreensão mais abrangente da vida, a partir da inclusão da contribuição dos povos africanos e seus descendentes para a construção de sociedades e culturas mais diversas.
A forma de abordagem dessas mitologias africanas e afrodiaspóricas no Afrofuturismo também é um aspecto essencial na definição do movimento. É que elas geralmente vêm em interseção com os elementos da ficção científica ou da fantasia e também da tecnologia. Neste sentido, a noção do “futurismo” presente na expressão em si adentra a discussão: os afrofuturistas utilizam sua criatividade para imaginar futuros nos quais pessoas negras desempenham papeis centrais, mas a seu próprio modo, isto é, em ambientações e circunstâncias ligadas às questões da negritude, dentre elas a ancestralidade. Por consequência, os futuros imaginados pelos afrofuturistas passam por um processo de reimaginação de passados também, que muitas vezes se perderam. E se o Afrofuturismo contribui para a recuperação de ancestralidades, isso vai provocar efeitos diretos na transformação do presente. Desta forma, supor que o Afrofuturismo estaria restrito à temática do futuro é um equívoco porque é um aspecto da arte afrofuturista ir além dele em temporalidades não-lineares, já que o futuro que se projeta é também passado e presente, simultaneamente.
E o Futurismoafricano?
A difusão do Afrofuturismo como uma super categoria acabaria por gerar a necessidade de uma reflexão a respeito de sua abrangência. Em 2019, Nnedi Okorafor, uma das principais autoras negras de ficção científica e fantasia do mundo, cunhou o termo Africanfuturism ou Futurismoafricano[2], para fazer uma diferenciação em relação ao Afrofuturismo. Okorafor é uma autora nigeriano-americana bastante lida e respeitada pela crítica, tendo conquistado os principais prêmios literários mundiais nas categorias ficção científica e fantasia. Em sua página eletrônica, Okorafor justifica o desenvolvimento do conceito Futurismoafricano a partir de sua própria necessidade de escritora, que sempre foi identificada com o Afrofuturismo pela crítica e pelo público. No entanto, Okorafor passou a observar que o Afrofuturismo apresentava várias definições e que algumas delas não descreviam sua literatura. Ser entendida como afrofuturista, ela acrescenta, provocava equívocos no entendimento de sua obra.
Assim, Okorafor propõe o Futurismoafricano, uma subcategoria da ficção científica que reconhece a combinação das espiritualidades e cosmologias africanas com o imaginativo. Uma arte africanofuturista teria, sendo de base africana, uma tendência a apresentar elementos místicos, cultivados a partir de crenças culturais/visões de mundo africanas reais, não algo meramente inventado. A autora pondera que o Futurismoafricano é semelhante ao Afrofuturismo em alguns aspectos, no sentido da conexão histórica, espiritual, sanguínea e futurística compartilhada pelos habitantes do continente africano com seus irmãos na diáspora negra. A necessidade de se diferenciar, porém, estaria no fato de o Futurismoafricano servir para designar um enraizamento específico e direto na cultura, história, mitologia e ponto de vista africanos, sem passar por uma visão de mundo ocidental.
O Futurismoafricano, Okorafor continua, preocupa-se com visões de futuro, interessa-se por tecnologia e tende a inclinar-se para o otimismo. Predominantemente, está localizado na África, mas isso não impede que se ramifique para abraçar a negritude no Caribe, América do Sul, América do Norte, Ásia, Europa ou Austrália. Em outras palavras o Futurismoafricano é global, e objetiva ser “ponte” e nunca “muro”.
Principalmente, o Futurismoafricano apresenta um padrão não-ocidental, sendo este o ponto central que o distingue do Afrofuturismo, cuja definição, na opinião de Okorafor, prioriza temas e preocupações afro-americanas. A autora argumenta também que, como qualquer definição, há áreas cinzentas, misturas e contradições na conceitualização de Futurismoafricano. Um exemplo disso é que algumas obras podem ser africanofuturistas e afrofuturistas, dependendo de como são interpretadas.
Conclusão
Aparentemente, a distinção entre Afrofuturismo e Futurismoafricano tem sua relevância na necessidade dos artistas em combater a homogeneização e a má interpretação que uma categoria muito ampla possa induzir. Por outro lado, para uma reflexão sucinta como esta, é importante também a identificação de seus pontos em comum, aqueles que precisamente fazem ambos movimentos necessários para o século XXI.
Toda arte tem seu papel no desenvolvimento de nossa humanidade pela estética, o que acontece pela provocação de reflexões sobre a condição humana. Neste sentido, tanto o Afrofuturismo quanto o Futurismoafricano são igualmente essenciais por desafiarem visões unilaterais de mundo que não se sustentam mais. A imaginação de futuros por meio do protagonismo negro na arte, seja na obra afrofuturista ou na africanofuturista, promove aberturas de consciência para vivências mais diversas. A partir delas, a construção de uma nova sociedade, mais equilibrada em suas representações e valores, tende a acontecer de maneira mais efetiva. Nesse novo paradigma, o proveito principal é, evidentemente, das comunidades negras que reivindicam visibilidade, mas também para toda a sociedade, que carece de novas perspectivas de mundo e de vida.
Cláudio R. V. Braga é professor e pesquisador em literatura na Universidade de Brasília (UnB); autor e organizador de livros sobre literaturas africanas, com pós-doutorados realizados na University of Leeds, USP (2016-2017) e na Unicamp (2022-23).
Fontes:
OKORAFOR, Nnedi. Africanfuturism defined. In: Nnedi’s Wahala Zone Blog. 19 out. 2019. Disponível em: <http://nnedi.blogspot.com/search?q=africanfuturism>. Acesso em: 01 jul. 2023.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. 1ª ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, 324 p.
WOMACK, Ytasha. Evolution of a Space Ca- det. In: Afrofuturism: The World of Black Sci-fi and Fantasy Culture. Chicago: University of Chicago Press, 2013. p.9-24.
[1] “… with the emergence of Afrofuturism as a philosophical study, suddenly artists like avant-garde jazz legend Sun Ra, funk pioneer George Clinton, and sci-fi author Octavia Butler were rediscovered and reframed by Afrofuturists as social change agents.”
[2] Para Okorafor, é fundamental que as duas palavras sejam grafadas unidas, formando uma só, para indicar que os conceitos de África e de futurismo não podem ser separados ou substituídos por outra coisa porque a união de ambos é para identificar algo novo.