Por Flávia L. Consoni e Edilaine Camillo
A transição energética precisa ser parte de um plano maior e sistêmico de transformação para uma economia de baixo carbono, isto é, todos os setores da economia e da sociedade precisam realizar mudanças consistentes e progressivas na forma e na intensidade que a energia é utilizada e no modo como se faz as coisas. Esta mudança deve ser um compromisso assumido por todos os atores da sociedade. As políticas públicas têm o papel central em promover e direcionar esta mudança e atuar como mediador de interesses e conflitos. Entendendo que políticas públicas são todos os meios e instrumentos utilizados pelo Estado, seja em nível federal, estadual ou municipal, para agir, intervir e provocar mudanças.
A transição energética pode ser entendida como o caminho para reduzir nossa dependência por combustíveis fósseis, frear emissão global dos gases de efeito estufa (GEE) e evitar consequências ainda maiores provocadas pelas mudanças climáticas.
Para que a transição energética avance efetivamente são necessárias várias iniciativas combinadas, tais como:
- a substituição por fontes renováveis, como a solar e a eólica, na geração de eletricidade;
- a substituição do diesel e da gasolina por etanol nos meios de transporte; a introdução do veículo elétrico;
- a substituição de processos industriais que consomem muita energia por outros mais eficientes;
- a mudança na configuração das cidades para tornar a mobilidade mais eficiente e menos dependente de meios de transporte;
- o uso consciente de energia nas nossas casas, o que inclui a substituição de eletrodomésticos antigos por outros mais eficientes etc.
É urgente que o governo, em conjunto com a sociedade, avance na implementação de iniciativas como essas para reduzir o risco de provocar, por exemplo, o deslocamento de populações em situação de vulnerabilidade, perdas significativas nas safras e alteração geográfica da agricultura, aumentando ainda mais as injustiças sociais ao comprometer as oportunidades de sobrevivência no planeta Terra.
A transição energética precisa ser parte de um plano maior e sistêmico de transformação para uma economia de baixo carbono, isto é, todos os setores da economia e da sociedade precisam realizar mudanças consistentes e progressivas na forma e na intensidade que a energia é utilizada e no modo como se faz as coisas. Esta mudança deve ser um compromisso assumido por todos os atores da sociedade.
A fabricação de aço, por exemplo, é uma das atividades industriais que mais consome energia no mundo e ainda libera CO2 em grandes quantidades: 70% do aço global é produzido pela tecnologia do alto-forno, que usa carvão mineral para a redução do minério de ferro. O Aço Verde do Brasil (AVB), lançado em 2015 ao substituir o carvão mineral pelo carvão vegetal, produzido a partir das florestas de eucalipto, já conseguiu um avanço considerável na redução das emissões.
Porém, para a indústria siderúrgica no mundo conseguir reduzir em ao menos 50% suas emissões de CO2 até 2050, vai ser necessário buscar e implementar novas tecnologias. A substituição do carvão pelo hidrogênio verde parece, por ora, um caminho promissor.
O hidrogênio verde é uma forma de produção de hidrogênio que utiliza fontes renováveis de energia (isto é, energia limpa, tais como eólica, fotovoltaica, hidrelétricas e biomassa) para alimentar o processo de eletrólise da água, que separa a molécula de água em hidrogênio e oxigênio. Quando o carvão que é injetado nas fornalhas é substituído pelo hidrogênio verde, as emissões de CO2 são reduzidas a zero.
Mas para que a indústria do aço passe por esta transformação, serão necessários muitos recursos, investimentos elevados, aceitação por parte dos diversos atores envolvidos e tempo. Em primeiro lugar, o hidrogênio tem que deixar o estágio experimental em que a tecnologia se encontra hoje e passar a ser produzido em grande escala nos próximos anos. Em segundo, a indústria siderúrgica vai ter que transformar progressivamente o processo de produção de aço.
Esse exemplo demonstra que a transição energética não envolve um único setor e que as mudanças devem ser impulsionadas por muitos agentes ao mesmo tempo. Além disso, há muitos conflitos de interesse e resistência à mudança tanto da indústria como da sociedade como um todo.
É aí que entra a atuação das políticas públicas, que tem o papel central em promover e direcionar esta mudança e atuar como mediador de interesses e conflitos. Entendendo que políticas públicas são todos os meios e instrumentos utilizados pelo Estado, seja em nível federal, estadual ou municipal, para agir, intervir e provocar mudanças.
Vale lembrar que as mudanças necessárias para que a transição energética ocorra são diferentes de outras transformações que a sociedade viveu no passado porque não se resume a um lucro maior. As dificuldades em implementar esta transformação são enormes pois implica alterar sistemas já consolidados de infraestrutura, produção e padrões de consumo que ainda trazem muitos retornos econômicos.
Quando o motor a combustão começou a se disseminar em meados do século XIX, não houve dúvidas de que era uma tecnologia muito mais eficiente que o motor a vapor e que os ganhos econômicos da sua difusão seriam enormes. Voltando ao exemplo do aço: o carvão mineral largamente utilizado em sua produção é um combustível barato que atende as necessidades atuais da indústria; a sua substituição pelo aço verde vai gerar custos adicionais para as empresas levando os consumidores a pagarem por um mesmo produto, ainda que seja um produto que implicou em menor impacto ambiental.
Ou seja, há uma contraposição de forças e interesses diversos que deve ser confrontada pelas políticas públicas, que deve assumir o papel de orientar e guiar a sociedade para que a transição possa ocorrer progressivamente. As políticas públicas podem tomar a forma de planos, programas, ou instrumentos específicos, regulados por legislação própria, para orientar estas tomadas de decisão. O governo pode, por exemplo, estabelecer um plano com metas, para que em 2050 um certo percentual do aço produzido pelo Brasil seja verde e criar condições que permitam que a indústria alcance tal meta.
Para isso, será necessário um programa de estímulo à novos investimentos, apoio à pesquisa em desenvolvimento e outros instrumentos específicos que podem ter caráter econômico, como a isenção de impostos ou créditos fiscais para empresas que consumirem aço verde, ou regulatório, como a imposição de padrões mínimos e máximos de emissões na produção do aço para ele seja considerado verde.
Todavia, não há como transformar a indústria siderúrgica sem estimular a promoção de hidrogênio. Será necessário, considerando aqui nosso caso hipotético, que os planos, programas e mecanismos de incentivos financeiros e não financeiros também incorporem uma estratégia para o desenvolvimento do hidrogênio verde. Ou seja, as políticas públicas para a transição energética não podem trabalhar com planos e programas isolados e específicos, mas deve considerar que as mudanças são interdependentes e estão interconectadas.
E mais do que isto, é necessário que estas políticas públicas sejam coerentes, ou, em outras palavras, que os programas, planos e mecanismos de incentivo tenham sinergia um com os outros.
A coerência das políticas públicas voltadas para transição energética é um assunto pouco trabalhado no Brasil. Sendo assim, o eixo Políticas Públicas e Governança do Centro Paulista de Transição Energética (CPTEn) tem como foco principal o desenvolvimento de instrumentos de análise que possam orientar o Estado de São Paulo no aprimoramento das suas políticas voltadas para a transição energética.
No contexto da análise de políticas, a coerência é entendida como um atributo do conjunto de programas e instrumentos de incentivo que pode reduzir sistematicamente os conflitos e divergência de interesses entre os diferentes atores alcançado pela política e, com isto, produz sinergias e possibilita ações coordenadas entre setores complementares (Nilsson et al., 2012)
No campo mais instrumental, a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) vem desenvolvendo e aplicando, há mais de uma década, o Policy Coherence for Sustainable Development framework (PCSD framework) para estimular os países a aprimorarem a coerência e a integração das políticas relacionadas ao desenvolvimento sustentável.
No nosso caso hipotético, se há um plano em vigor para estimular a substituição da produção do aço comum pelo aço verde no longo prazo, as empresas que continuarem a usar carvão mineral nos seus processos produtivos não podem receber, por exemplo, nenhum incentivo fiscal ou serem beneficiadas por nenhum outro programa governamental.
Quando um setor baseado em combustíveis fósseis ainda é beneficiado pelas políticas públicas, pode-se considerar que há uma falta de sinergia ou um trade-off com as políticas públicas voltadas para a promoção da transição energética.
Em outras palavras, os recursos investidos na transição energética podem ter um impacto menor do que o esperado em termos de redução de CO2, porque há também recursos públicos sendo direcionados para a manutenção e desenvolvimento das indústrias que usam combustíveis fósseis e emitem CO2. Ou seja, no balanço final, a política pública perde sua eficácia no propósito último de combater as mudanças climáticas.
Logo, é urgente que se pense as políticas públicas de forma combinadas e coordenadas, sempre considerando e atentos a observar se uma intervenção não está reduzindo o impacto de outra política em outro setor. Esta abordagem sistêmica, que observa a política pública de forma transversal deve, portanto, ser privilegiada e estimulada.
Flávia L. Consoni é pesquisadora do Eixo 3 do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/3178864999293864
Edilaine Camillo é pesquisadora do Eixo 3 do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/9060974474062619
Referências
Nilsson, M; Zamparutti, T.; Petersen, J. ; Nykvist, B.; Rudberg, P.; McGuinn, J. “Understanding policy coherence: analytical framework and examples of sector–environment policy interactions in the EU”. Environmental Policy and Governance. 2012
OECD. “Better policies for sustainable development 2016: a new framework for policy coherence”. OECD Publishing, Paris. 2016