Por Christian Dunker
Tanto o riso (pensado como correlativo do júbilo) quanto o rubor (pensado como correlativo da vergonha) são refratários à intromissão discursiva de suas causas. Um chiste apresentado junto com sua explicação se torna inócuo, é um chiste-falho. Uma irrupção de vergonha se dissolve pela explicitação das suas motivações.
Trata-se de um advogado às voltas com problemas relacionais envolvendo especialmente seus pares. Alguém que, no trabalho e na vida social, teme triunfar. Alguém que, por exemplo, durante uma partida de tênis, onde se encontra em posição de vencer o ponto e o jogo, é compelido a arremessar a bola longe garantindo assim seu fracasso. Ainda no quadro deste jogo aparecem manifestações em que o paciente em questão não consegue deixar-se zombar, rir ou provocar pelos adversários. O jogo tornou-se assunto envolto em seriedade. O caso clínico é da psicanalista inglesa Ella Sharpe, e foi comentado detalhadamente por Lacan em 1959[1].
Sobrevém então um sonho crucial no qual o paciente realiza uma viagem pelo mundo seguida de um encontro com uma mulher sedutora. Mas quando ela mostra seu desejo ele se envergonha, fica embaraçado e se inibe. Esta combinação entre afetos, emoções e sentimentos é o que chamamos de humor. O humor é uma espécie de disposição a reagir, uma inclinação ou atmosfera que reproduz ou reverbera afetos, intensifica emoções e qualifica sentimentos. Um humor depressivo tende a multiplicar afetos de desprazer, intensificar emoções como a tristeza e a raiva e a polarizar sentimentos como a vergonha e a culpa. Historicamente os humores se ligam à composição do mundo (terra, fogo, água ou ar), de certos estados de páthos (tédio, bliss, angústia ou desamparo), do corpo (sangue, linfa, bílis negra, bílis amarela) e até mesmo tipos psicológicos (sanguíneo, leptossômico, melancólico e maníaco). O humor pode ser cômico, trágico, lírico ou épico quando observamos que ele se traduz em formas de discurso e laço social. Daí que ele comporte uma ficcionalidade e uma performatividade que se autorreproduz.
Na sessão subsequente uma leve tosse anuncia a chegada do paciente ao consultório. Aquilo poderia passar desapercebido não fosse o vasto e prolixo comentário sobre a tosse que o próprio paciente é compelido a fazer. Finalmente se esclarece tratar daquele tipo de tosse que se faz intencionalmente antes de entrar em um lugar onde se poderá pegar alguém desprevenido. É uma tosse que anuncia, que previne a vergonha. Ocorre que tal tipo de associação é, imediatamente, comprometedora: sugere que afinal a analista encontrava-se em posição constrangedora… na fantasia do paciente.
A tosse, comenta Lacan, é uma mensagem. Mas como costuma acontecer com as mensagens quando estas são tomadas no fantasma do neurótico acaba-se sem saber se se trata de uma resposta ou de uma pergunta. Em outras palavras, tusso para avisar, indicar, acusar ao outro minha presença. Por outro lado tusso para perguntar: “O que é esse significante do Outro em mim?” ou ainda “O que sou eu quando me faço tossir para o Outro?”.
A chegada do terceiro separa os amantes. Por outro lado é este terceiro quem cria os amantes. Resultado: se verifico a posição do terceiro não tenho a velocidade dos amantes, se tenho a velocidade dos amantes perco a posição do terceiro. Suspendamos momentaneamente o desenvolvimento do caso para salientar que a estrutura fechada desta alternatividade, que caracteriza o afeto da vergonha, poderia ser rompida com um chiste. Pensemos em um dos exemplos examinados por Freud em seu livro sobre o Witz. Trata-se de um sujeito em grandes dificuldades financeiras que pede a seu amigo rico dinheiro emprestado. Depois de emprestar a quantia, qual não é a surpresa do amigo rico ao encontrar o amigo pobre no restaurante mais caro da cidade comendo maionese de salmão. Interpelado sobre seu ato o amigo pobre responde:
“Se não tenho dinheiro não posso comer maionese de salmão; se tenho dinheiro também não posso comer maionese de salmão. Quando então poderei comer maionese de salmão?”[2]
Concedamos que em 1905 este chiste poderia ser eficaz o suficiente para evocar o riso. Fica claro que o dilema da maionese é uma solução possível para o impasse dos amantes. Ou seja, riso e vergonha possuem, discursivamente, estruturas simétricas e complementares. O que nos faz rir é também o que nos traz a vergonha e assim inversamente, como as duas faces de uma mesma folha de papel recortadas simultaneamente pelo mesmo gesto. Para explicar a passagem de um afeto ao outro é preciso recorrer à uma torção da folha que a tornaria uma superfície unilátera, como a banda de Moebius. Este ponto conjectural permitiria a localização do sujeito pela via dos afetos.
“Eu os disse: o que é próprio de todo afeto, de toda essa margem, esse acompanhamento, essa borda do discurso interior, ao menos como podemos reconstruí-lo quando temos a sensação de que este discurso não é tão contínuo como se acreditava, é que a continuidade ocorre, com efeito, principalmente por meio do afeto. A saber, quanto menos os afetos são motivados – é uma lei – mais eles aparecem ao sujeito como compreensíveis.”[3]
Ou seja, a continuidade do discurso é em grande medida ilusória, ela é, com efeito, induzida pela continuidade do afeto. Mas o que significa afirmar que quanto menos eles são motivados mais eles são compreensíveis? Em tese sempre os afetos são motivados, se pensamos no princípio da sobredeterminação psíquica. Motivação aqui parece se referir, portanto, à apreensão subjetiva da causa dos afetos, que deve permanecer ao menos pré-consciente para que o afeto cumpra sua função de estabelecer o efeito de continuidade discursiva. De fato, a prova empírica mostra que tanto o riso (pensado como correlativo do júbilo) quanto o rubor (pensado como correlativo da vergonha) são refratários à intromissão discursiva de suas causas. Um chiste apresentado junto com sua explicação se torna inócuo, é um chiste-falho. Uma irrupção de vergonha se dissolve pela explicitação das suas motivações. Em ambos os casos há um saber que cruza a barra da repressão (Unterdrückt). A adequação ou congruência dos afetos no eu (moi), sua compreensibilidade, depende, portanto de que sua motivação permaneça pré-consciente. Infere-se da lei proposta por Lacan que a explicitação das motivações afetivas, propugnada por várias formas de psicoterapia, implicaria um incremento da fragmentação discursiva. A estratégia psicanalítica aproveitaria tal fenômeno de outra forma. Ela faz inferir da incongruência dos afetos a presença da fantasia. A colocação da fantasia em discurso se faria acompanhar de uma espécie de curto-circuito dos afetos. Curto-circuito que se pode reconhecer, por exemplo, no Homem dos Ratos[4] quando da nomeação da fantasia de introdução anal dos ratos, nomeação acompanhada de uma face de “horror e satisfação”. Humores podem ser compostos por afetos dissonantes, como choro e riso ou emoções contrárias como alegria e tristeza, medo e raiva.
Riso e rubor possuem assim funções simétricas e complementares se os consideramos do ponto de vista da fantasia. O objetivo desta comunicação é tentar demonstrar esta tese bem como enfatizar a importância clínica do riso como indicador da travessia de situações fantasmáticas como a que se vinha apresentando no caso em questão. Continuemos com ele.
Ella Sharpe responde a esta situação não com um chiste, mas com uma interpretação da transferência, algo como: “você acha que sua analista estava em circunstâncias íntimas com um amante?” Recebe em troca uma sonora reprovação de seu analisante e também duas metáforas: “latir como um cachorro” e “para despistar a proximidade de algo importante”, em inglês – “to put the scent off”. Isso o remete a uma série de situações onde ele não deveria estar onde está. Aqui Lacan intervém assinalando o movimento operado pelo fantasma:
“Tive esta fantasia de que alguém poderia pensar que eu estava ali. Então pensei que para impedir alguém de entrar e me encontrar ali (onde eu não devia estar) eu poderia ladrar como um cachorro. Isso disfarçaria minha presença.”[5]
Ou seja, a função do fantasma, como regulador geral do humor, é mostrar que o sujeito não está ali onde ele está. Desta forma o fantasma permite que o sujeito se faça outro, que ele se passe por outro e mesmo que ele passe seu desejo pelo desejo de outro. Mas para que isso funcione é preciso um significante que comporte a ambiguidade de um latido ou a onomatopéia de uma tosse. Lacan toma isso como uma espécie de condição: o não sentido (non sens) é isso que permite que o significante seja tomado como um fantasma. É claro que o não sentido aqui não é uma condição estranha ao campo da significação, uma vez que é Lewis Caroll quem é chamado a exemplificar a mestria deste “não sentido”.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP (Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise)
[1] Lacan, J. (1959-1960) O Seminário Livro VI O desejo e sua Interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 2002, pp 189-228.
[2] Freud, S. (1905a) O Chiste e suas relações com o inconsciente. In Obras Completas de Sigmund Freud Vol 5. São Paulo: Companhia das Letras, p. 49.
[3] Lacan, J. (1954) O Seminário Livro IV As relações de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.232.
[4] Freud, S. (1909) Observações sobre um caso de caso de neurose obsessiva. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Casos Clínicos). Belo Horizonte: Autêntica.
[5] Lacan, J. (1958-1959) O Seminário Livro VI O desejo e sua Interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 2002, pp 189-228. p. 192.