Por Peter Schulz
Cientistas são, acredito, como outros seres humanos quaisquer e, portanto, têm humor, contam piadas e riem delas. A pergunta a ser feita, no entanto, é se fazem e falam da ciência com humor. No ramo há 40 anos (da ciência, não do humor), não sei bem o lugar que ele ocupa nela, mas exemplos, pelo menos isolados, não faltam.
Alguns deles já foram coletados anteriormente[i], mas dão a impressão de que seriam coisas do passado e de cientistas graúdos, afinal são apenas os chistes desses que ficam registrados na história. Gente miúda do ramo (da ciência) não deveria fazer humor sobre o conhecimento e o fazer científicos. Mas os casos de humor de alguns grandes personagens da ciência são exatamente sobre isso, ironizando e parodiando coisas cada vez mais caras à atividade: a obsessão sobre certos temas, que a comunidade científica abraça de tempos em tempos, abordada em artigos científicos que são paródias, sobre a autoria falsa (mas aceita com humor) de artigos ou em relação à ‘seriedade’ dos relatórios de atividades. Estão lá na referência citada anteriormente. Um caso contemporâneo merece ser acrescentado. Andre Geim é um físico holandês nascido na Rússia e que hoje trabalha na Inglaterra. Ainda na Holanda, pesquisava efeitos diamagnéticos em campos magnéticos intensos. Não vale a pena aqui entrar em detalhes da física da coisa, a não ser o fato de que seres vivos são diamagnéticos, o que quer dizer que poderiam (devido aos detalhes da física da coisa) flutuar em campos magnéticos devidamente intensos. No estudo, cujo título, autoria e periódico científico aparecem na imagem, ele realçou isso, fazendo flutuar o hamster da filha, que assina o ‘paper’, vejam lá: H.A.M.S ter Tisha. Antes ele fizera o mesmo com um sapo, este anônimo, que lhe conferiu o Prêmio Ignóbil de Física de 2000.
Andre Geim levou numa boa e foi receber o prêmio com bom humor, numa época em que a maioria se sentia constrangida com a honraria. Vale lembrar que o russo-holandês bem-humorado recebeu 10 anos depois o Nobel da mesma área, isto é, Física. E o Prêmio Ignóbil hoje é uma festa, que os agraciados aprenderam a levar com a leveza que o projeto merece. O prêmio anual, dado para categorias fixas e especiais, é conferido pelo portal dos Anais da Pesquisa Improvável[ii], cujo lema é “Pesquisa que faz as pessoas rirem e… depois pensar”. Entre os prêmios especiais temos, por exemplo, o de “ensino de medicina de 2020”, conferido, entre outros, a Jair Bolsonaro, “por usarem a pandemia de covid-19 para ensinar ao mundo que os políticos podem ter um efeito mais imediato sobre a vida e a morte do que os cientistas e médicos”. Rir, para depois pensar. Os anais são uma publicação satírica, abrangendo desde rankings de cantinas universitárias (ah, os rankings…), artigos científicos sobre resultados absurdos e/ou obtusos publicados em periódicos científicos, aqueles com política editorial seletiva e revisão por pares, paródias de artigos ou anúncios classificados obviamente falsos e engraçados.
Os Anais de Pesquisa Improvável, sediados lá na Universidade de Harvard, foram precedidos pelo Journal of Irreproducible Results, fundado em 1955 por um virologista e um físico, que publicava sátiras de práticas científicas, piadas e discussão de pesquisas reais, mas engraçadas. É um humor absolutamente necessário para uma comunidade cada vez mais preocupada como os números de artigos científicos, venda de autorias, publicações predatórias e outras fraudes na ciência séria.
Toda atividade humana precisa de sua sátira. No caso da ciência, as sátiras começaram junto com sua institucionalização, ainda no começo do século XVIII. Uma das quatro viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, era para as remotas e imaginárias Laputa, Balnibarbi, Luggnagg, Glubbdubdrib e ao remoto, mas não imaginário, Japão. Nessa viagem, Gulliver “é resgatado pela ilha voadora de Laputa, um reino devotado às artes musicais, matemáticas e astronômicas, mas incapazes de usá-las para fins práticos […] Gulliver passa por Balnibarbi, um reino governado por Laputa, e vê o estrago causado pela busca cega da ciência sem resultados práticos, uma sátira contra a burocracia e a Royal Society e seus experimentos. Na Grande Academia de Lagado, em Balnibarbi, muitos recursos e mão de obra são gastos na pesquisa de esquemas completamente absurdos, como extrair raios de sol a partir de pepinos, aprender como misturar tinta por cheiro, e desmascarar conspirações políticas examinando o excremento de pessoas suspeitas.”
(As aspas são citação direta da Wikipédia, pois reli as viagens já há um bom tempo, mas não tão distante para perceber que as aspas são apuradas.)
Sátiras contemporâneas são impagáveis. O seriado “The Big Bang Theory” eu acompanhei fervorosamente durante suas 12 temporadas, rindo bastante dos personagens que personificavam e tornavam engraçados os tantos vícios entre membros da comunidade científica, que na realidade cotidiana eram até então apenas enfadonhos, quando não abusivos e silenciados. Curiosamente, a comunidade de cientistas se dividiu entre fãs escancarados e detratores reservados.
Lembro de um colega, que foi um divulgador científico bastante famoso com seus livros nem sempre precisos (segundo outros colegas), que escreveu uma longa crítica em jornal de grande circulação, dizendo que ciência era coisa séria e deveria preferencialmente ser apresentada num programa… sério. Que seja, mas é inescapável pensar em parte desse conjunto de seres humanos como outros quaisquer como adeptos do venerável decano do mosteiro onde se passa o enredo do livro O Nome da Rosa de Umberto Eco. Jorge de Burgos era o guardião de um fictício segundo volume da Poética de Aristóteles, que falaria da comédia. Mestre Jorge envenenara suas páginas, para que aquele que se atrevesse a ler morresse e não espalhasse as ideias que ali estariam contidas. Ideias sobre a importância do riso e da jocosidade, que o monge ancião considerava perigosos instrumentos do demônio. A história que se passa no século XIV se refere ao século XX, parecendo a viagem de Gulliver, que se passava em lugares remotos, mas tinha o centro do mundo ocidental na mira.
Se a ciência obviamente estuda o humor, ela, aparentemente, pouco se preocupa em perscrutar o humor na ciência, mas possivelmente estou equivocado. Pelo menos um artigo recente, publicado na revista Humor (periódico científico), tem o sugestivo título de “Rindo para amar a ciência: contextualizando a comédia científica”[iii]. A comédia seria uma boa forma de divulgação/comunicação científica. O resumo já é sugestivo, anunciando que os praticantes da comédia buscam desafiar as atitudes de outros comunicadores da ciência, além de considerarem a comédia como um espaço para que pressupostos não ditos sejam expostos e negociados.
Humor na ciência é coisa séria, necessária e oportuna.
Peter Alexander Bleinroth Schulz foi professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). Foi secretário de comunicação da Unicamp.
[i] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/viva-o-humor-dos-cientistas
[iii] https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/humor-2022-0030/html