Por Soraya Smaili
Ultimamente temos ouvido a frase “tempos difíceis”. Certamente difíceis, especialmente para a Universidade Pública Brasileira. Já vivemos períodos complexos e outros muito duros. Os tempos da Ditadura Militar não podem ser esquecidos. Lembramos das perseguições aos estudantes que se levantaram contra a repressão, dos desaparecidos e dos torturados. Lembramos dos inúmeros professores que foram injustamente retirados de seus cargos, como demonstrado no livro do Controle Ideológico na USP. A Comissão da Verdade da Unifesp mostrou que o Diretor da Escola Paulista de Medicina, à época reitor da temporária Universidade Federal de São Paulo (UFSP), que a ditadura desfez, foi destituído de seu mandato com perda do cargo público.
Marcos Lindenberg viveu com dignidade e trabalhou como médico e sua família viveu as consequências deste período. Anos mais tarde, felizmente, pudemos restituir o título de professor honoris causa post mortem e hoje um busto em sua homenagem figura na galeria dos reitores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A Unifesp cumpriu seu ideal em 1994 e materializou o sonho de Lindenberg, mesmo que ele não estivesse mais aqui para ver.
A Universidade Pública Brasileira viveu momentos auspiciosos a partir da criação da Universidade de Brasília (UnB) e das propostas de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e muitos intelectuais. Porém, a ditadura trouxe ali as invasões históricas e as perseguições violentas à Universidade Pública brasileira. Mesmo assim, Anísio Teixeira produziu elementos fundamentais e importantes para a Reforma Universitária de 1968 e que nos levou a um sistema que se fortaleceu, especialmente no tripé ensino, pesquisa e extensão e na estruturação da pós-graduação.
Com o crescimento da pós-graduação, cresceram também as pesquisas. A ciência brasileira se desenvolveu neste cenário e, por isso, verificamos que boa parte da ciência brasileira continua sendo realizada no interior das universidades, especialmente aquelas que criaram e fortaleceram os seus programas de pós-graduação. Exatamente por isso, nos anos 2000, quando as universidades federais foram estimuladas a realizar uma expansão da graduação, verificou-se um crescimento atrelado da pós-graduação e também da extensão.
Tempos desafiadores para as universidades incluem a tentativa do governo Collor ao extinguir a Capes. No período Fernando Henrique Cardoso (FHC) foram grandes as dificuldades para as Universidades Federais. Foram 8 anos de cortes, da extinção de concursos e vagas a partir da Reforma do Estado e da tentativa de implementar o emprego público precarizado. Não foram anos de chumbo, mas foram anos de asfixia.
O período de Lula como presidente foi marcado por incentivos e programas de valorização das universidades, da expansão de matrículas na graduação, da criação de diversos programas de apoio e incentivo à pós-graduação e extensão, com certa recomposição dos orçamentos e a criação de vagas. É possível que o período, embora tenha sofrido com a falta de planejamento, seja percebido como um dos melhores momentos da história das universidades brasileiras. O período do governo Dilma buscou dar continuidade aos processos nas áreas de Educação e Ciência. Porém, o processo de impeachment, com base nas chamadas pedaladas, das quais Dilma foi inocentada, interrompeu mais uma vez os projetos para a Educação. Surpreendente foi constatar que parte das questões fiscais elencadas como problemas da gestão de Dilma tenham sido para que programas de Educação e Saúde não parassem.
Para lembrar Darcy Ribeiro mais uma vez, é bem provável que a crise na Educação do Brasil seja mesmo um projeto. E o governo Bolsonaro tem sido a quintessência deste projeto, superando todos os precedentes anteriores. Entre 2018 e 2022 tivemos perseguições, repressões, quebra da autonomia, redução de orçamentos, bloqueio de verbas, confisco de recursos, evasão na graduação, falta de recursos para assistência estudantil, evasão de pesquisadores, crescimento das grandes corporações da Educação, tentativas ilimitadas de pressionar e agredir de maneira violenta a comunidade acadêmica, entre tantas outras coisas. Um desmonte cujas reais consequências saberemos somente mais adiante.
Na Educação experimentamos as maiores crises das últimas décadas, ao vermos importantes órgãos do Ministério da Educação (MEC), como o Inep, a Capes e o FNDE, passando por severas crises. Foram 5 ministros e muitos desastres, além de um dos maiores escândalos de corrupção. Seria coincidência que estes mesmos organismos tenham sofrido fortemente com o corte de orçamentos durante o último período? O Painel do Financiamento do SoU_Ciência, no Item “Execução Orçamentária”, mostrou os orçamentos de 21 Unidades Orçamentárias do governo federal, que executam ou fomentam pesquisa e atividades ligadas à Educação. Lá é possível verificar que o Inep teve 51 % de variação negativa nos últimos 2 anos e praticamente todos as unidades orçamentárias da Ciência sofreram quedas.
O Painel do Financiamento do SoU_Ciência também mostra, no eixo “Universidades Federais” a derrocada orçamentária. Trata-se de um sistema composto de 68 universidades federais, que fizeram a maior expansão de matrículas de graduação (mais do que o dobro entre 2008 e 2014), pós-graduação (mais do que 40% entre 2008 e 2014), residências e pesquisa dentre as instituições do setor público, mas que teve também uma das maiores quedas orçamentárias. Os gráficos apresentados no painel mostram as séries históricas dos orçamentos de “Investimentos”, que são os recursos destinados a reformas, compras de livros, construções e laboratórios, onde verifica-se uma redução de 96%. Para os recursos chamados de “Outras Despesas Correntes”, que incluem os valores utilizados para despesas de água, luz, telefone, internet, limpeza e assistência estudantil, a variação negativa foi de aproximadamente 50%.
Todos nós sabemos que a autonomia de gestão financeira é fundamental e exemplos bem sucedidos estão nas universidades estaduais paulistas. Porém, mesmo estas universidades sofrem atualmente com o desmonte orçamentário do CNPq, principal agência de fomento de projetos do sistema federal, bem como com os contingenciamentos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que é a fonte de recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que beneficia projetos de universidades públicas e privadas.
Mas, não foram só os desmontes orçamentários que o Ensino Superior Público e a Ciência sofreram nos últimos 4 anos. Foi também o ataque ao sistema como um todo, a partir da disseminação de notícias e vídeos falsos. Temos relatos e levantamentos concretos sobre perseguição aos professores, especialmente aqueles que apresentam críticas ao atual governo. Aos estudantes reservaram a difamação, apresentando-os à sociedade como drogados e pervertidos, em vídeos e fotos falsas, que buscam humilhar e intimidar os movimentos estudantis. Aos reitores e reitoras a perseguição e o inferno das tentativas de devassas nas contas, que nada provaram. Logo no início de 2019, anunciaram a “Lava Jato da Educação”, que não passou de mais do que um conjunto de ameaças e perseguições aos gestores, trazendo sofrimento e que nada provou. O Programa Future-se, criado por um dos mais violentos ministros, que virou pó pelo baixo nível e aversão da população, mostrou a falta de consistência e de política voltada verdadeiramente aos interesses do Estado.
Perante a Sociedade, as tentativas tiveram pouco resultado, como mostraram os levantamentos do SoU_Ciência, em parceria com o Instituto IdeaBigData, a população brasileira é contra os cortes da ciência e das universidades, apoia as universidades públicas e confia no que ela informa, especialmente no que diz respeito à ciência e sobre a pandemia, ao contrário do que veiculou Jair Bolsonaro.
Apesar de todos os ataques, as Universidades e Institutos de Pesquisa Públicos Brasileiros atuaram e seguiram atuando de forma decisiva e na defesa da vida durante a pandemia da Covid-19. Um outro levantamento feito pelo SoU_Ciência, em colaboração com a Andifes – Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior, trouxe o painel das “Universidades em Defesa da Vida: atuação das universidades federais na pandemia da Covid-19”. O quadro mostra mais de 1.100 ações qualificadas e duradouras, realizadas em 500 municípios, abarcando ações da linha de frente em saúde e pesquisas relacionadas à prevenção, tratamento e controle da pandemia, bem como ações nas áreas de direitos humanos, combate à fome, redução de vulnerabilidades sociais, apoio à educação básica, informações sobre vacinas e as campanhas de esclarecimento à população. Estes dados talvez expliquem por que houve um crescimento de mais de 41% na confiança e valorização aos cientistas.
Está cada vez mais claro que será preciso retomar o financiamento da Educação e da Ciência, o que não ocorrerá com um governo Bolsonaro. É preciso voltar a trabalhar para atingirmos os 10% do PIB para a Educação e os 2% para a Ciência e Tecnologia, já que o Brasil é um dos países que menos investe em termos per capita. É preciso aplicar integralmente os recursos do FNDCT, para que não ocorram desvios de finalidade como o ocorrido em 2021 com os mais de R$ 35 bilhões acumulados e que não foram aplicados na Ciência. Novas fontes de recursos existem e podem vir com uma reforma fiscal socialmente referenciada e com a revisão de isenções a alguns grandes grupos econômicos. Não podemos esquecer do Fundo Social do Pré-Sal, onde 25% deveriam ser destinados à Educação, Saúde, Ciência e Tecnologia.
Com a reposição orçamentária, será possível um planejamento e um projeto para restaurar a capacidade instalada, apesar de combalida, assim como vislumbrar um novo ciclo de crescimento e expansão. O suporte e o investimento deverão ser acompanhados de um projeto de reconstrução do País, acompanhado de rigoroso controle social e democrático. Será a oportunidade de constituir um real Sistema Nacional de Educação, articulado ao Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, composto por todos os níveis e formas de ensino e produção de conhecimento, públicos, comunitários e privados (como um amplo sistema “cognitivo” nacional), mobilizando conferências, fóruns e conselhos setoriais representativos e participativos.
As universidades do século XXI, alinhadas ao tempo presente e às necessidades da humanidade, devem acolher as agendas essenciais do mundo em transformações, incluindo a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. Devem refletir e acolher novos saberes, sujeitos e epistemologias, tanto em suas dimensões práticas, como teóricas, atendendo em especial às populações negra e indígena e em uma perspectiva emancipatória. As universidades no Brasil desenvolverão grandes projetos sociais e de prestação de serviços à sociedade. Cumprirão a sua função social e fortalecerão a produção de conhecimento e da tecnologia para as áreas estratégicas e para a solução dos grandes problemas. Como demonstrado fartamente durante a pandemia da Covid-19, quando colaboraram para o combate ao desemprego, à fome e à pobreza, além da produção de conhecimento para resolver a crise sanitária.
Um novo ciclo de crescimento deverá incentivar e apoiar as universidades em busca de uma atuação convergente em torno de grandes temas nacionais e regionais, com pesquisas nas áreas da saúde, do meio ambiente, da preservação das águas, da geração de energias sustentáveis, da preservação da Amazônica e demais biomas fundamentais, na biotecnologia e na busca de novos medicamentos para as doenças emergentes e reemergentes, assim como para a segurança alimentar entre tantas outras. É importante ampliar as redes interuniversidades para partilhar aprendizados e soluções rápidas diante de emergências sanitárias. As ações serão rápidas e potencializadas pela formação de redes, nacionais ou internacionais, de colaborações entre universidades, comunidades, sociedade civil, governos e instituições privadas. Estas serão as bases para as novas Políticas Públicas, voltadas para o bem-estar da nação e direcionamentos dos governos na tomada de decisões. Será o momento da Educação e da Ciência a serviço da Sociedade e na construção e exercício permanente do Estado Democrático de Direito.
Soraya Smaili é professora titular do Departamento de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Graduada em Farmácia e Bioquímica pela Universidade de São Paulo. Mestrado, doutorado e livre-docência pela Escola Paulista de Medicina, Unifesp. Pós-doutorados na Thomas Jefferson University e no National Institutes of Health (NIH). Ocupa a Cadeira 36 da Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil. Foi reitora da Unifesp por dois mandatos, 2013-2017 e 2017-2021. Atualmente coordena o Centro Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência) da Unifesp.
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