Por Luciene Santos Telli
Os sepultamentos feitos às pressas em covas recém-abertas para receber as vítimas da covid-19 foram emblemáticos do período mais crítico da pandemia. O hidrogeólogo Leziro Marques Silva, professor na Universidade São Judas Tadeu, manifesta uma preocupação dupla: a pandemia em si, que atingia números recordes de vítimas, e o impacto ambiental, dada a urgência com que eram feitos os sepultamentos. “Eu ficava vendo aquilo na TV, aquela quantidade de caixões, e ficava perplexo. Sofri angustiado com o que estava acontecendo”, diz Marques Silva.
A preocupação dele, e dos pesquisadores que estudam o tema, é a contaminação das águas subterrâneas pelo necrochorume, um líquido acinzentado, de odor fétido que tem, em sua composição, 60% de água, 30% de substâncias mineralizáveis e 10% de substâncias complexas (cadaverina e putrescina), além de carga virótica alta e fármacos, a depender das circunstâncias em que a pessoa morreu. Essa substância, que é originada da decomposição do cadáver, pode chegar ao lençol freático quando o sepultamento é feito sem observância de normas de segurança que só há pouco tempo passaram a ser obrigatórias no Brasil.
Silva é uma das autoridades no assunto no Brasil. Conta que, em 50 anos de carreira, já percorreu mais de 3 mil cemitérios país afora, para estudos de contaminação. É tão envolvido com o tema que, mesmo quando está a passeio em alguma cidade que acabou de conhecer, não resiste em fazer uma visita ao cemitério local. “As pessoas querem conhecer os pontos turísticos, eu vou aos cemitérios”, brinca.
“Um cadáver médio, adulto, de cerca de 70 a 80 kg, produz de 27 a 30 litros de necrochorume. A liberação vai sendo feita aos poucos. Diariamente, são liberados 700ml, isso durante 6 a 8 meses”, explica Marques Silva.
Em cemitérios onde o lençol freático é raso, o risco de contaminação é extremo. Silva conta que, há mais de 20 anos, acompanhou uma ação em um cemitério de Santo André – na época, trabalhava na Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). “Tivemos que fazer uma exumação regulamentar, porque a capacidade de sepultamento estava esgotada”. Segundo ele, o túmulo em questão tinha 9 lajes sobrepostas. Nas duas últimas, os cadáveres estavam dentro do lençol freático.
Legislação federal recente
O Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) estabeleceu critérios para a instalação de cemitérios a partir de 2003. Um deles exige que a área de fundo das sepulturas deve estar, no mínimo, a um metro e meio de distância do lençol freático, medido no fim da estação de chuvas, quando está em seu nível mais alto. Porém, antes dessa resolução do Conama, não havia uma normativa federal a ser seguida para instalação e fiscalização de cemitérios. Existiam iniciativas estaduais, como no Estado de São Paulo, onde a Cetesb fixou normas a partir de 1999.
O Brasil tem milhares de cemitérios, muitos deles bastante antigos. E um incontável número deles mal cuidados. Embora tenham sido construídos longe das cidades, os cemitérios não tardaram a ser alcançados pela urbanização desenfreada e acabaram cercados por bairros residenciais.
O problema atraiu a atenção de pesquisadores no início dos anos 1980, quando os primeiros estudos surgiram, liderados pelo pesquisador Alberto Pacheco, do Instituto de Geociências da USP. Suas pesquisas deram origem ao livro Meio Ambiente & Cemitérios, lançado em 2012 pela Editora Senac.
Velhos tabus
Para as pesquisas, os estudiosos tiveram, e ainda têm, que enfrentar os tabus em torno do tema. “Existe a questão social e a religiosa. Hoje é menos mas, no passado, havia toda aquela aura de um alegado respeito”, observa o engenheiro ambiental Robson Willians da Costa Silva.
Na Europa, segundo ele, há registro de pesquisas de mais de cem anos que relacionam surtos de febre tifoide à proximidade de comunidades com cemitérios. No caso, a transmissão ocorreu por meio da água retirada de poços caipiras para consumo. O poço caipira, também conhecido como cacimba, capta água no nível mais externo do lençol freático.
Em sua pesquisa de mestrado, Costa Silva empregou imageamento elétrico no estudo da contaminação de cemitérios. As pesquisas foram feitas em 2007, no cemitério municipal de Vila Rezende, em Piracicaba, e concluíram que havia relação direta entre prováveis plumas de contaminação, quantidade e tempo de sepultamento e profundidade do nível freático.
A dissertação foi orientada por Walter Malagutti Filho, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp, que estuda a contaminação em cemitérios há 22 anos. “O cemitério não é um local para a gente chegar e colocar uma sonda, fazer barulho. Por isso é que me voltei para maneiras de diagnosticar contaminação através de meios não invasivos”, explica Malagutti.
“Meu trabalho em cemitérios foi desenvolver ferramentas de prospecção do meio físico pelo método de eletrorresistividade. Quando o subsolo está contaminado, fica mais condutivo eletricamente, por ter mais sais dissolvidos no lençol freático e ação microbiológica mais intensa. Se as medidas comparadas divergem do padrão da área em que está localizado o cemitério, associamos com a contaminação dele”, explica o professor da Unesp.
A ferramenta já era aplicada nas pesquisas geológicas que buscam identificar a contaminação do solo por aterros sanitários, mas adaptá-la para cemitérios foi uma novidade. Primeiro coletam-se medidas elétricas a partir de eletrodos fincados no solo. Posteriormente, as medidas são analisadas por meio de softwares específicos. O desafio foi identificar as anomalias causadas especificamente pelo necrochorume. “Num cemitério, tem todo tipo de interferência possível, que são fontes de anomalias elétricas: fios, tubulação elétrica, calçamentos e aspectos das construções dos túmulos, que têm ferro e concreto”, observa Malagutti.
Uma das pesquisas mais recentes foi no cemitério de Monte Alto (SP), onde foram identificadas anomalias nas áreas que receberam mais sepultamentos nos cinco anos que antecederam os ensaios, iniciados em 2016.
O primeiro cemitério a ser analisado, lembra Malagutti, foi o municipal de Rio Claro (SP), em 2000. Desde então, ele orientou pesquisas sobre contaminação utilizando o método de eletrorresistividade em outros seis cemitérios. Em Rio Claro, os resultados alarmaram o Ministério Público, que obrigou a prefeitura a assinar um termo de ajustamento de conduta para sanar os problemas encontrados.
Soluções e sepultamentos “verdes”
Mas, afinal, qual a saída? Segundo Leziro Marques Silva, o projeto de um cemitério tem que prever que o necrochorume não saia de dentro do jazigo. “Existem várias maneiras de fazer isso”, garante o pesquisador. Ele conta que desenvolveu um absorvente funerário, chamado necronet, que é uma contenção de todo necrochorume vertido pelo cadáver. “Está em domínio público, e ninguém se interessou em fabricar”, reclama.
O projeto do cemitério precisa prever também a drenagem correta da água da chuva, e a administração tem que estar atenta para a limpeza e conservação dos túmulos.
O Conama havia fixado prazo até 2010 para que todos os cemitérios do país se adequassem às normas de segurança. Quando o prazo estava para vencer, a exigência foi suspensa e não se estipulou nenhum outro prazo. Ainda que houvesse, a fiscalização, segundo Marques Silva, seria insuficiente: falta pessoal, e pessoal preparado para atacar o problema.
O necrochorume não é a única preocupação. Os materiais utilizados no sepultamento – a madeira e as hastes de ferro do caixão, concreto e aço na estrutura de carneiras e túmulos, as coroas, as roupas do cadáver e até a maquiagem utilizada na apresentação do corpo – também causam impacto ambiental.
Marques Silva é um defensor da cremação. “É o ideal, porque a oxidação do corpo é catalisada. Em duas horas o processo termina. Diferente da putrefação, em que a oxidação é lenta e todo o processo leva três anos”.
Porém, mesmo a cremação já não tem sido considerada realmente ideal pelos ambientalistas. Estima-se que uma cremação gere cerca de 320 kg de gás carbônico e, entre as substâncias tóxicas liberadas, está o mercúrio presente nas restaurações dentárias, por exemplo.
Outras alternativas vêm surgindo com vistas à redução de impactos. Uma delas é a hidrólise alcalina, em que o corpo é decomposto em 90 minutos, por uma solução aquecida de água e hidróxido de potássio, em uma máquina própria para o processo. Em entrevista à BBC, a pesquisadora Elisabeth Keijzer, que coordena estudos para a Organização Holandesa para Pesquisa Aplicada, afirma que o processo emite sete vezes menos gás carbônico do que a cremação.
O inventor holandês Bob Hendrikx desenvolveu um caixão feito de fungos, que aceleram a decomposição do corpo e que também se decompõe em semanas. E, desde 2020, o estado de Washington (EUA) autoriza a compostagem de cadáveres, também chamada de redução orgânica natural. O corpo é colocado em um compartimento arejado, cercado com madeira, alfafa e palha, em condições ideais de umidade e oxigenação, o que acelera a ação dos microorganismos. No final de 30 dias, vira adubo orgânico, que pode ser usado no pé de árvores e plantas.
No Brasil, a então deputada Renata Abreu (Podemos) abraçou a proposta e apresentou, em setembro de 2019, projeto de lei parecido, o PL 5060/2019, que chegou a tramitar na Comissão de Seguridade Social e Família, mas foi retirado de pauta pela autora três meses depois. Na enquete eletrônica disponibilizada pela Câmara ao público, o projeto recebeu 5 votos apenas, 4 deles favoráveis.
O tema do sepultamento ecologicamente correto promete ganhar espaço nos próximos anos, por conta das mudanças climáticas geradas pelo aquecimento global e a necessidade urgente de ações que busquem não comprometer os recursos naturais do planeta. Mas não será um debate fácil: encontra resistência religiosa e há vários interesses em jogo num setor que, só no Brasil, movimenta cerca de R$ 7 bilhões por ano, segundo dados do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares (Sincep).
Um pouco de história: resistência da população à implantação de cemitérios só foi vencida no século XIX
Um dos mais antigos cemitérios que se tem notícia no Brasil é o dos Aflitos, ou Cemitério dos Enforcados, construído entre 1774 e 1775 onde hoje é o bairro da Liberdade em São Paulo. O local recebia os corpos de pessoas condenadas à forca, inclusive escravos fugitivos, além de indigentes.
Os “não-excluídos” eram sepultados em igrejas e no entorno delas, costume que vigorou até meados do século XIX para os católicos, que acreditavam que esse era um pré-requisito para a salvação da alma. A prática já era questionada por médicos na Europa desde o final do século XVII, com propostas de afastamento dos mortos para longe das cidades, conforme a pesquisa da historiadora Vanessa Viviane de Castro Sial, que defendeu dissertação de mestrado na Unicamp sobre a reforma cemiterial ocorrida no Recife no século XIX.
Segundo defende em seu texto, no Brasil a ideia de sepultar os mortos longe das cidades, defendida por médicos higienistas no século XIX, encontrou forte resistência da população predominantemente católica, tardando a acontecer. A resistência foi vencida aos poucos, conforme a população foi sendo convencida dos riscos diante de doenças e epidemias, pelos médicos que integravam comissões de saúde e higiene e câmaras legislativas. Mas foi preciso um alinhamento com a igreja, num primeiro momento, para que a crença cristã deixasse de ser um impeditivo. O caso do Recife é um exemplo. Conforme a pesquisa de Castro Sial, no primeiro cemitério público oficial daquela cidade, que entrou em funcionamento em 1851 às pressas por conta de uma epidemia de febre amarela, foram cedidas áreas para confrarias, irmandades e ordens terceiras, para sepultamento de seus afiliados.
A estratégia contribuiu para que o cemitério obtivesse o apoio das agremiações religiosas, que não queriam perder a renda provinda dos sepultamentos. Filiar-se a uma agremiação religiosa, para os católicos, era outra obrigação na lista de critérios para conseguir a salvação da alma após a morte. As agremiações recebiam, por vezes, até heranças deixadas por filiados abastados, que colocavam, como condição, serem sepultados em suas igrejas, assim como sua família.
O projeto do cemitério do Recife também previu a construção de uma capela, para que o encomendamento dos mortos deixasse de ser feito nas igrejas, e para reforçar, junto à população, a ideia de que o cemitério era um “local sagrado”.
Luciene Santos Telli é tecnóloga em gestão empresarial e aluna do curso de jornalismo científico (Labjor/Unicamp)