Por Letícia Naísa
crédito da imagem: Cris Vector
“O luto é um processo singular e próprio de cada pessoa, mas guerras, grandes desastres, naturais ou não, e a pandemia, que é uma grande crise sanitária e virou um desastre, atinge a todos. Nesse sentido, é coletivo sim. Dentro desse coletivo, temos nossas próprias formas de lidar com as circunstâncias. A pandemia não nos afetou igualmente, alguns de nós perdemos pessoas, outras não perderam ninguém por morte, mas perderam situações de vida significativas, como a casa, o emprego. Em um contexto como esse, a gente se comove com a situação de outras pessoas também, como quem perdeu alguém, pessoas que sofreram muito com a doença, ficaram com sequelas, mesmo que sejam pessoas que a gente nunca tenha visto na vida.”
Foi em março de 2020 que a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia de covid-19. Já se passaram mais de dois anos e mais de 600 mil mortes foram registradas no país, que enfrenta uma grave crise econômica e também social. Nos últimos meses, o país lamentou a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na região da Amazônia, além de se revoltar contra a decisão de uma juíza que impediu uma menina de 11 anos de fazer um aborto.
O clima no Brasil é de luto. “Não dá para dizer que está tudo bem”, diz a psicóloga Maria Júlia Kovács. Professora livre docente no Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), Kovács tem o luto, a morte e a bioética como objetos de estudo há três décadas, foi coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da mesma universidade, onde também criou a disciplina de psicologia da morte.
Em entrevista à ComCiência, a especialista comenta o luto coletivo que paira sobre o país e elucida o que caracteriza este processo de forma individual. Leia a seguir a íntegra da entrevista:
ComCiência: Como a gente pode definir o que é luto?
Maria Júlia Kovács: O luto é um processo típico de elaboração diante de uma perda significativa, como a perda de uma pessoa. Hoje, se considera também a perda de um bicho de estimação e se considera um luto a perda de uma situação de vida, como o adoecimento ou a perda de um emprego que é muito importante, ou ter que sair da pátria, ou uma separação. São várias situações que não envolvem uma morte concreta, mas são vividos processos de luto.
O que caracteriza esses lutos que não envolvem a questão da morte?
É sobre a intensidade do problema, a intensidade da experiência vivida por cada pessoa. Por exemplo, você pode perder uma pessoa que eventualmente está muito doente ou numa circunstância difícil de vida, ou viver uma separação de uma figura amorosa que, mesmo não havendo morte, gera uma intensidade de sentimentos muito forte, a ponto de colocar a pessoa em grande sofrimento psíquico. O luto depende da pessoa enlutada, e depende também de quem é a pessoa, qual a situação perdida. Não dá para generalizar. A gente cuida começando a ouvir essa pessoa, como ela está vivendo essa experiência, como ela está passando por essa circunstância. Através da possibilidade de ouvir, de acolher, o outro começa a encontrar o seu rumo para continuar vivendo, porque às vezes a intensidade da dor é tanta que a pessoa acha que não vai conseguir viver a partir dessa perda tão significativa.
Quais são os sinais de que alguém está vivendo um luto?
Quem vai te falar isso é a pessoa enlutada e não nós, como terapeutas ou pessoas que cuidam, porque é ela que vai ter que encontrar o caminho dela. O luto pode ser cuidado por qualquer pessoa, não precisa ser um profissional da área de saúde, pode ser um familiar ou um amigo, e o cuidado implica no acolhimento, na empatia, em tentar identificar os sentimentos da pessoa. O enlutado fica profundamente envolvido com a perda que, de alguma forma, ameaça a vida. Você pensa: “como eu vou dar conta de continuar?”. Existe uma circunstância em que você pensa: “e agora?”. Não é uma situação em si, mas como a gente vive cada uma das situações.
Uma pessoa não vai ficar enlutada por conta da perda do emprego, por exemplo, não é a perda do emprego em si. Mas, para algumas pessoas, ser demitida é uma ameaça terrível que vai alterar profundamente a vida dela e isso caracteriza uma situação de luto. Adoecer, dando outro exemplo, faz parte da vida para algumas pessoas. Para outras, um diagnóstico de uma doença que ameaça a vida pode ser uma reviravolta total e elas não sabem como continuar, como dar conta. Não é o adoecimento em si, mas como ele é vivido.
Às vezes você perde uma pessoa da família, mas que não era tão próxima, você não entra em processo de luto, apesar de ser da sua família. Por outro lado, perder um colega pode ser muito mais doloroso. O grande problema, principalmente quando a gente tenta definir as coisas muito claramente, é que o ser humano não é claro e não é preciso.
Tem um meme que as pessoas postam na internet que é “saudades do que eu não vivi”. A gente pode viver um luto pelo que a gente não viveu?
Não, a gente só tem um luto pelo que a gente viveu. No caso de um aborto espontâneo, por exemplo, o casal viveu essa criança quando planejou um filho. A criança estava na barriga da mãe, eles viram no ultrassom, viveram essa experiência. Essa criança não nasceu, mas existe desde o momento em que ela foi pensada. É uma experiência vivida.
Qual a importância dos ritos de passagem para enfrentar o luto?
Os rituais ajudam porque dão sentido para o processo da perda. Eles são às vezes coletivos, podem envolver práticas espirituais ou não, são momentos de reflexão e troca com outras pessoas, da família ou amigos. São experiências que ajudam na construção do simplificado, porque a grande questão quando você perde alguém é: “E aí? Como vai ser a minha vida sem essa pessoa?”. No começo do processo fica difícil, mas os rituais ajudam a pensar como podemos integrar essa pessoa na nossa vida de outra maneira, não mais presencial, mas com festas em que lembramos de quem se foi, ou em pequenos rituais diários, como uma oração. São possibilidades de ajudar na elaboração.
É como se a relação se transformasse com a morte?
Isso. Ela se transforma. Quando você tem uma relação presencial, você tem um certo modo de estar com a pessoa. Quando ela não está mais viva, isso não quer dizer que ela vai desaparecer. Por isso que a melhor palavra não é “superar” uma morte, não é botar uma pedra, mas sim enfrentar.
A pandemia está nos fazendo enfrentar um período de luto coletivo?
Sim. O luto é um processo singular e próprio de cada pessoa, mas guerras, grandes desastres, naturais ou não, e a pandemia, que é uma grande crise sanitária e virou um desastre, atinge a todos. Nesse sentido, é coletivo sim. Dentro desse coletivo, temos nossas próprias formas de lidar com as circunstâncias. A pandemia não nos afetou igualmente, alguns de nós perdemos pessoas, outras não perderam ninguém por morte, mas perderam situações de vida significativas, como a casa, o emprego. Em um contexto como esse, a gente se comove com a situação de outras pessoas também, como quem perdeu alguém, pessoas que sofreram muito com a doença, ficaram com sequelas, mesmo que sejam pessoas que a gente nunca tenha visto na vida.
Estamos em um luto coletivo longo. Em 2020, achamos que seria uma quarentena de 15 dias, mas estamos caminhando para mais de dois anos de situações difíceis, com um presidente que fala coisas que nos deixam horrorizados. Tem várias circunstâncias que estão dentro do nosso viver, não dá para dizer que está tudo bem.
Em junho, a morte do Dom e do Bruno e caso da menina de 11 anos anos que teve o aborto negado repercutiram muito na imprensa, chocaram o país. Isso também gera uma espécie de luto?
Eu não conhecia o Dom e o Bruno, nunca tinha ouvido falar neles. Mas a situação nos deixa tristes, revoltados. São sentimentos que surgem quando a gente passa pela perda de uma pessoa que, para nós, é significativa. No caso dessas mortes, mostra também um projeto de desmonte do país. A violência que aconteceu com eles e que acontece com tantas outras pessoas nos afeta, porque envolve a destruição, mostra que existe uma necropolítica acontecendo, e pandemia é um exemplo disso. Houve demora para comprar vacinas, para determinar o uso de máscaras, era como se nada estivesse acontecendo. Morreram muito mais pessoas do que deveriam ter morrido no Brasil, muita gente não precisaria ter morrido. Temos uma desigualdade brutal, e isso nos machuca, nos magoa. Pessoas morreram porque não tinha oxigênio, não tinha vaga em UTI, não tinha vacina. Isso é revoltante e muito duro, machuca quem é sensível, quem tem empatia.
Como apaziguar esses sentimentos?
Não vamos sair dessa. Não é algo que se supera. Podemos nos organizar para enfrentar, sair às ruas, pensar em modos de driblar essa situação. Muitos psicólogos se organizaram para atender pessoas enlutadas online, por exemplo. Falamos muito sobre isso, orientamos funcionários de escolas, porque os jovens e crianças estão se matando. É muito importante voltar pro convívio, mas muitos jovens não estão dando conta, estão ansiosos e deprimidos.
Como se diferencia o luto de uma depressão?
Luto é um processo psíquico natural quando ocorre uma perda e você precisa se reorganizar, física e psiquicamente. É uma crise, e ela tem um tempo – que não é definido pelo tempo do calendário, por dias ou meses. A maior parte das pessoas enlutadas vai tocando a vida de alguma maneira. Isso não quer dizer que elas não tenham dias difíceis, mas ela vai tocando a vida.
Já a depressão é uma doença. O luto pode provocar um processo depressivo, mas não é todo processo de luto que leva a uma depressão. Tem que ter outras condições físicas e psíquicas. Muitas pessoas têm depressão, mas não estão em luto. Uma coisa não está diretamente vinculada à outra. A depressão tem a ver com transtornos de ânimo, um modo difícil de encarar a vida, não há disposição para viver. O que caracteriza a depressão é mais isso do que uma tristeza, que é um sentimento natural. A depressão é uma incompatibilidade, de alguma forma, com a vida. Se a pessoa tem um quadro depressivo, é muito difícil para ela o processo do luto. É como se ela não passasse pelo processo de luto, ela continua no processo depressivo.
Freud tem um texto interessante chamado “Luto e Melancolia”, em que ele fala sobre o luto como um processo psíquico e a melancolia como uma doença, em que você está o tempo todo centrado em você. Você não consegue fazer o seu processo de desligamento da pessoa querida. A depressão atrapalha o processo de luto.
Qual a maior dificuldade de estudar esse campo do conhecimento?
Quando você vai fazer pesquisa envolvendo pessoas em sofrimento, como enlutados ou pessoas com ideação suicida, pessoas doentes, essa pessoa já está em sofrimento, e você se pergunta: conversar sobre essa experiência vivida pode causar ainda mais sofrimento? Isso é uma preocupação. Existem termos de consentimento, comitês de ética para avaliar os projetos, mas isso tem que ser considerado. Mas, ao mesmo tempo, precisamos estudar esses processos, porque é a partir dos relatos que podemos pensar em formas de ajudar mais pessoas.
Letícia Naísa é jornalista, repórter do UOL, e estudante no curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp