Por Jonas Valente, Daniele Ferreira Seridório, Danilo Rothberg, Mariana Martins de Carvalho e Fernando Oliveira Paulino
A desestatização da EBC coloca o Brasil na contramão da discussão internacional sobre o papel da radiodifusão pública no combate à desinformação e ao crescimento de movimentos autoritários. Este texto é uma versão adaptada de policy paper produzido e divulgado no âmbito institucional da Federação Brasileira das Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação.
Introdução
Em 2020, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foi incluída no Programa Nacional de Desestatização (PND) e passou a ser objeto de uma consultoria que pode indicar sua privatização ou até extinção. Por sua relevância para a qualidade da comunicação pública no país, esse movimento tem sido fonte de preocupação para os setores engajados na consecução do papel do direito à informação para o fortalecimento da democracia.
A EBC mantém dois canais de TV, sendo um deles a TV Brasil, as Rádios MEC, Nacional e Nacional da Amazônia, a Agência Brasil e a Radioagência Nacional. Além disso, a empresa é responsável legal pela coordenação da Rede Nacional de TVs Públicas, inclusive todas as emissoras de TV abertas de universidades federais.
A ameaça à sobrevivência da EBC ignora o princípio constitucional de complementaridade da radiodifusão[1], coloca o Brasil na contramão de diretrizes e recomendações internacionais para o setor[2], limita o direito à informação e o acesso à comunicação no Brasil e diminui a pluralidade e a diversidade na radiodifusão.
Comunicação pública é direito previsto na Constituição
O artigo 223 da Constituição Federal prevê um setor de radiodifusão em complementaridade entre um sistema público, um estatal e um privado. Ainda que tenha sido promulgada em 1988, a sistematização da radiodifusão pública deu-se vinte anos depois com a lei 11.652/2008, que criou a EBC e definiu os princípios norteadores de sua atividade em aspectos de promoção da cidadania, da igualdade e do acesso à informação.
A EBC executa o serviço de radiodifusão pública previsto na Constituição Federal de 1988 e assegurado pela lei 11.652/2008. O artigo 1º da referida lei deixa claro que os serviços de radiodifusão pública deverão ser prestados “pelo Poder Executivo ou mediante outorga a entidades de sua administração indireta” segundo princípios e objetivos descritos na Lei. O artigo 4º afirma ainda que: “os serviços de radiodifusão pública outorgados a entidades da administração indireta do Poder Executivo serão prestados pela empresa pública de que trata o art. 5o desta Lei (a EBC)”. Assim, fica claro que o serviço de radiodifusão pública do Executivo deve ser prestado por este próprio e os serviços associados às outorgas da administração indireta devem ser exploradas pela EBC.
A mesma lei fixa como seu primeiro princípio a “complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal”. Entre os demais princípios, “elenca autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão” e “a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira”. A privatização da EBC ou do serviço de radiodifusão pública para uma fundação de direito privado ou até mesmo uma firma com finalidade lucrativa, além de ilegal como apontado acima, também conflitaria com esses princípios.
Neste sentido, sua existência, independência e sustentabilidade significam o respeito à Constituição e à legislação brasileiras. A sua desestatização, além de prejuízo social, gera imbróglio jurídico ao deixar de cumprir um princípio constitucional e a prestação do serviço público de radiodifusão. A radiodifusão pública é dever do Estado. A sua promoção e relevância não deve estar sujeita a prioridades governamentais e discussões partidárias.
A venda da empresa ou o repasse de suas atividades para entes privados colidem com as diretrizes acima elencadas, bem como com outras presentes na Constituição e na lei 11.652 de 2008. Argumentos pela desestatização que afirmam existir “outras emissoras públicas” demonstram desconhecimento do fato de que apenas a lei 11.652 regulamentou a complementaridade prevista na Constituição e que outras emissoras educativas que se autodenominam públicas não se configuram como essa modalidade no plano legal.
Os princípios constitucionais regulados pela lei 11.652 de 2008 devem ser entendidos como direitos conquistados pela sociedade organizada e como parte de um amadurecimento necessário às democracias modernas. As garantias constitucionais que estruturam a concepção de um sistema público visavam superar o modelo vigente durante o período autoritário da Ditadura Militar.
A EBC é uma conquista do povo brasileiro porque foi um avanço para a democratização da comunicação. A sua criação é resultado da mobilização e organização da sociedade civil, acadêmicos e movimentos sociais. A participação social moldou e estruturou a legitimidade da empresa. Destaca-se nesse processo os documentos e diretrizes produzidos no I Fórum Nacional de TVs Públicas e na 1ª Confecom (Conferência Nacional da Comunicação).
Por que comunicação pública?
A comunicação e a radiodifusão pública são instrumentos de fortalecimento da cidadania e da democracia. Diretrizes de instituições internacionais, como a Unesco, reiteram o papel da mídia pública na promoção da diversidade, da pluralidade e a livre circulação de ideias[3].
Os manuais de boas práticas e as experiências internacionais bem-sucedidas indicam que o caminho da democratização e do desenvolvimento da comunicação é o fortalecimento da mídia pública e a regulação do setor, de forma a garantir diversidade e pluralidade em diferentes camadas do ecossistema midiático.
O documento “Recommendation on public service media governance”, do Conselho da Europa (2012)[4], destaca que o serviço público de mídia tem papel específico “no respeito ao direito e provisão de uma oferta diversa de conteúdo de qualidade, contribuindo para o reforço da democracia e da coesão social e na promoção do diálogo intercultural e entendimento mútuo”.
Os indicadores da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) para o desenvolvimento da mídia (2008)[5] apontam a necessidade de a mídia pública estar claramente definida em lei, de ter independência editorial e financiamento apropriado e seguro para protegê-la de interferências arbitrárias”.
Os “Estándares de libertad de expresión para una radiodifusión libre e incluyente” da Organização dos Estados Americanos (2010)[6] afirmam que os meios de comunicação públicos deveriam desempenhar uma função fundamental para assegurar a pluralidade e diversidade:
"Sin embargo, para que los medios públicos puedan realmente cumplir su función, debe tratarse de medios públicos independientes del Poder Ejecutivo; verdaderamente pluralistas; universalmente accesibles; con financiamiento adecuado al mandato previsto por la ley; y que contemplen mecanismos de rendición de cuentas y de participación de la comunidad en las distintas instancias de producción, circulación y recepción de contenidos” (OEA, 2010, p. 22).
A desestatização da EBC também não é movimento estratégico para diplomacia brasileira, que demonstra interesse em ingressar na OCDE. Entre as boas práticas indicadas pela organização estão a adoção de um órgão regulador único para o setor e o fortalecimento do sistema público de radiodifusão, incluindo a EBC.
A desestatização da EBC coloca o Brasil na contramão da discussão internacional sobre o papel da radiodifusão pública no combate à desinformação e ao crescimento de movimentos autoritários.
Conclusões
Um país de dimensões como o Brasil depende da comunicação pública para chegar a todos os cidadãos. É função do Estado garantir que um sistema público, centralizado na EBC, amplie o acesso à comunicação no território nacional. A comunicação pública é caminho para efetividade de direito à informação.
A comunicação pública é livre, diversa e plural conceitualmente. Os modelos desenvolvidos para sustentabilidade e independência das práticas de comunicação pública estão baseados em transparência e participação social. No caso da EBC, o extinto Conselho Curador checava e atribuía credibilidade às atividades da empresa.
A recomendação é que o modelo da EBC que foi desconstruído pela Medida Provisória 744, de 2016[7], seja retomado. A EBC tem sua missão e princípios definidos pela lei 11.652/08 e tem sua legitimidade amparada pela Constituição de 1988. Devemos avançar na discussão de modelos mais sustentáveis para empresa e que a coloquem no centro de uma rede de emissoras públicas brasileiras.
Jonas Valente é doutor em Sociologia pela UnB (Universidade de Brasília). Coordenador do grupo de trabalho sobre indústrias midiáticas do capítulo brasileiro da União Latina da Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura (Ulepicc-Brasil).
Daniele Ferreira Seridório é doutora em Comunicação pela Unesp (Universidade Estadual Paulista). Pós-doutoranda no Erich Brost Institute (TU Dortmund, Alemanha) em missão de estudo Probral Capes/DAAD.
Danilo Rothberg é doutor em Sociologia e docente do programa de pós-graduação em Comunicação da Unesp.
Mariana Martins de Carvalho é doutora em Comunicação e pesquisadora do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB.
Fernando Oliveira Paulino é professor da UnB, coordenador e pesquisador PQ2 (CNPq) do Projeto “Global Project of Media Accountability”. Presidente da Federação Brasileira das Associações de Comunicação Científica e Acadêmica (Socicom) e vice-presidente da Associação Latino-Americana de Pesquisadores em Comunicação (ALAIC).
[1] Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
[2] Como, por exemplo, as recentes recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Disponível em: <https://www.oecd.org/competition/avaliacao-da-ocde-sobre-telecomunicacoes-e-radiodifusao-no-brasil-2020-0a4936dd-pt.htm>.
[3] BANERJEE, Indrajit; SENEVIRATNE, Kalinga. Public service broadcasting: a best practices sourcebook. Paris: Unesco, 2005. Disponível em http://www.unesco.org/new/en/communication-and-information/resources/publications-and-communication-materials/publications/full-list/public-service-broadcasting-a-best-practices-sourcebook/
[4] Disponível em https://www.ebu.ch/files/live/sites/ebu/files/Publications/Reference_Texts/CoE%20-%20PSM/CoE%20REF%20-%20CM-Rec(2012)1.pdf
[5] Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000163102_por
[6] Disponível em http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/publicaciones/Radiodifusion%20y%20libertad%20de%20expresion%20FINAL%20PORTADA.pdf
[7] Disponível em https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/126826