Por João Roberto Martins Filho
Publicado originalmente em inglês na Newsletter do Washington Brazil Office / Observatório da Democracia; publicação da versão em português autorizada pelo autor em 6 de abril de 2022
Mais de três anos após o início do governo Bolsonaro, que balanço podemos fazer do projeto que levou os militares a apostar em Jair Bolsonaro, como alternativa para retornar ao Palácio do Planalto, jogar para a direita o eixo da política brasileira e interromper a série de vitórias eleitorais do Partido dos Trabalhadores?
A aproximação dos generais com o ex-capitão rebelde não se deu, como já defenderam alguns oficiais, apenas entre o primeiro e o segundo turno da eleição de 2018, mas remonta a novembro de 2014, logo depois da reeleição de Dilma Rousseff e um mês antes da divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, considerada pelo então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, como uma “facada nas costas”, que criou na caserna “um sentimento de traição em relação ao governo”.
Bolsonaro foi convidado então a comparecer à formatura dos cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras. Na ocasião, além de subir ao palanque oficial, lançou sua pré-campanha ao pleito presidencial de 2018, num comício para algumas dezenas de cadetes: “Nós temos que mudar o Brasil. Alguns vão morrer pelo caminho. Mas eu estou disposto (…) a jogar para a direita esse país”. Foi aplaudido e saudado aos gritos de “líder!”. O episódio marcou, senão um pacto com Bolsonaro, cujas possibilidades eleitorais ainda eram remotas, uma sinalização para o público interno de que os chefes militares se aliariam até com o diabo para derrotar a esquerda.
Com o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, do qual os militares participaram nos bastidores, e a ascensão do vice-presidente Michel Temer, em maio de 2016, logo um general, Sergio Etchegoyen, se tornou o homem forte do novo governo, ao refundar, reconstruir e chefiar o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), extinto pela presidenta.
Durante a campanha eleitoral, os militares atuaram de forma coordenada no apoio a Bolsonaro, seja de maneira velada, caso do futuro chefe da Secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz, ou aberta, caso do general Hamilton Mourão, companheiro de chapa de Bolsonaro, e de Alberto Heleno, que sucederia Etchegoyen no GSI.
Por sua vez, o general Villas Bôas influenciou diretamente os rumos da campanha eleitoral, ao divulgar, em abril de 2018, um tuíte em que ameaçava o Supremo Tribunal Federal, caso a decisão da corte fosse pela aceitação de um habeas corpus em favor de Lula. Por 6 votos a 5, o pedido foi derrotado, o que possibilitou a imediata prisão do ex-presidente, abrindo caminho para a vitória do capitão em outubro.
Iniciado o governo, em janeiro de 2019, o novo presidente agradeceu publicamente ao general como “um dos responsáveis” por sua vitória; milhares de oficiais das três forças foram nomeados para cargos de vários escalões no Palácio, nas estatais ou nos ministérios; os militares foram premiados com sua não inclusão na reforma previdenciária do funcionalismo federal e, mais do que isso, com uma reestruturação da carreira que aumentou os soldos, principalmente da alta hierarquia. Desde então o orçamento militar foi poupado de cortes.
No entanto, absolutamente despreparado para governar, Bolsonaro não se encaixou no figurino previsto pelos generais, que previa deferência a seus mentores na caserna. Já em junho de 2019, demitiu de forma humilhante o general Santos Cruz da Secretaria de Governo. A partir daí, seguiram-se inúmeros incidentes de exposição dos generais a situações vexaminosas, com destaque, em 31 de maio de 2020, para a presença do ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo, no helicóptero presidencial que sobrevoou, com as portas abertas, uma manifestação contra o Congresso Nacional e o STF.
Mas, sem contar com a mínima virtú, o presidente viu-se particularmente vulnerável à má fortuna. Esta se consubstanciou em dois processos: a eclosão da epidemia da covid-19 – seguida por uma gestão federal desastrosa, com um general da ativa como ministro da Saúde – e a volta inesperada de Lula ao cenário político, graças a sua libertação em meados de novembro de 2019, por decisão do STF, e a posterior anulação de seus processos, em meados de abril de 2021. Logo, o ex-presidente passou a liderar as pesquisas de opinião na corrida presidencial.
Na frente militar, um mês antes, Bolsonaro demitiu seu ministro da Defesa e os três comandantes das forças. A partir daí, gradualmente, o Alto Comando do Exército começou a efetuar um recuo estratégico e os militares quase desapareceram do noticiário político. Com Lula como candidato forte e Bolsonaro em crise de popularidade, o cenário para a atuação militar ficou mais difícil que em 2018, inclusive pelo desgaste da imagem castrense.
Ainda assim, no caso da vitória de Lula, é possível propor que os fardados procurarão manter as conquistas corporativas e algumas posições de poder, na impossibilidade de conservar milhares de cargos governamentais. Além disso, tenderão a oferecer resistência ao comando civil. Mas parece ilusório contar com a volta dos fardados aos quartéis, movidos por convicções democráticas. Mesmo se tudo correr bem numa eventual derrota de Bolsonaro, o próximo governo terá que contar com o tempo, e com virtú e fortuna, para resolver o problema militar, que continuará lançando sua sombra sobre a democracia brasileira.
João Roberto Martins Filho é professor titular sênior do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. Bacharel em Ciências Sociais pela Unicamp (1976), onde também concluiu o mestrado em Ciência Política (1986) e o doutorado em Ciências Sociais (1993). Coordenou, de 1996 a 2016, o Arquivo de Política Militar Ana Lagôa da UFSCar. Autor de Movimento estudantil e ditadura militar (1987), O palácio e a caserna (1995, 2ª edição 2019), A Marinha brasileira na era dos encouraçados, 1895-1910 (2010) e Segredos de Estado: o governo britânico e a tortura no Brasil (2018, 2ª edição 2020). Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (2006-2008). Pesquisador visitante na Universidade da Califórnia, Los Angeles (1997), no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford (outubro de 2006 a março 2007), na Faculdade de Artes e Ciências Sociais da Universidade de Waikato, Nova Zelândia (fevereiro-março de 2009) e no Latin American Center da Universidade de Oxford (janeiro-fevereiro de 2013). Ocupou a cátedra Rio Branco em Relações Internacionais, patrocinada pela Capes e pelo Itamaraty, no King´s College, Londres (2014) e por duas vezes a Cátedra Rui Barbosa de Estudos Brasileiros na Universidade de Leiden, Holanda (2015 e 2018)