Por Marina Rezende Bazon, Bruno César da Silva, Rafaelle Carolynne Santos Costa e Liandra Aparecida Orlando Caetano
{dropcap]A[/dropcap] violência criminal no Brasil representa um problema significativo que afeta, direta e indiretamente, toda a sociedade, impactando o bem-estar pessoal e coletivo. Tomando como medida dessa problemática as taxas de homicídios, sabe-se que essas são bastante elevadas, superando, em alguns momentos, as taxas de mortes em países imersos em conflitos armados declarados, como Congo, Iraque, Síria e Sudão (Ipea & Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2018). Nesse plano, o impacto da violência também se revela no âmbito da economia do país, pois cada vítima fatal representa enorme perda de investimentos em capital humano e, portanto, de capacidade produtiva.
Nesse cenário, vive-se uma ampla sensação de insegurança. Essa, por sua vez, fomenta o medo da violência em grande parte da população, que clama por políticas de segurança mais efetivas. O medo da violência é, per si, um sério problema social, que se soma, pelos seus efeitos, ao da própria criminalidade. Se, em alguma medida, o medo procede, em vista às altas taxas mencionadas, ele é muitas vezes desproporcional, porque é alimentado por informações distorcidas e, não raro, equivocadas, sem que se possa fazer um debate racional e uma reflexão aprofundada sobre o tema, no país.
Num primeiro plano, tem-se que o medo da violência é, conforme o já mencionado, quase que generalizado. A maior parte dos cidadãos se sente como “vítimas em potencial”, ainda que, objetivamente, os dados de que se dispõem sejam bastante consistentes em indicar que a violência criminal não afeta de igual modo os diferentes grupos sociais, sendo que as vítimas fatais remetem majoritariamente a certo perfil: jovens do sexo masculino, negros e residentes de bairros periféricos dos grandes centros urbanos. O medo irracional e generalizado da violência, contudo, endossa a exacerbação do controle estatal sobre a vida de todos, para além dos limites das liberdades individuais, reforçando abordagens autoritárias e essencialmente repressivas, bem como a ideologia do direito à defesa privada, usada para cooptar adeptos para a política de facilitar e ampliar assustadoramente o acesso a armas e munições no país.
Num segundo plano, o medo da violência se converte em medo do “outro”. Em princípio, esse “outro” perigoso é difuso, mas, no dia a dia das interações sociais, ele ganha certos contornos, de forma que o medo vai sendo canalizado também para certos perfis sociais. Este “outro” se transforma, gradativamente, em inimigo, o que legitima a demanda por políticas de controle baseadas em sua neutralização/eliminação. Assim é que o medo do crime acirra conflitos sociais pré-existentes e impõe barreiras às interações sociais e, por conseguinte à organização e à vinculação social, aspectos fundamentais à prevenção da violência em sociedades humanas.
“Inusitadamente”, o perfil social da maior parte das vítimas da violência fatal no Brasil (jovens do sexo masculino, negros e residentes de bairros periféricos dos grandes centros urbanos) é, também, no imaginário social, o do agressor potencial, o que certamente explica sua vulnerabilidade à violência. Como observado pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced; 2007), denota-se um movimento no sentido de “demonizar” os jovens (ou jovens de certos segmentos sociais), identificando-os como fonte principal dos perigos que assolam a sociedade. No seio desta subcultura que transforma jovens pobres e negros em “bode expiatório” do mal-estar social generalizado, defendem-se ideias como as da redução da maioridade penal e do endurecimento das punições.
É certo que os jovens também desempenham um papel ativo, neste cenário, como autores de violência. Sua participação em crimes violentos, contudo, está longe de ter as características epidêmicas como, às vezes, creem as pessoas e veicula a grande mídia. Especificamente no que se refere aos adolescentes (indivíduos com idade entre 12 e 18 anos incompletos), esses respondem por apenas uma pequena parcela da violência registrada no Brasil, ainda que os dados oficiais revelem que sua a participação na criminalidade, em geral, e na criminalidade violenta, em particular, tenha aumentado nos últimos anos. Entre 2009 e 2017, a quantidade de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa por prática de atos infracionais aumentou em 59% (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR, 2017).
Tão ou mais importante que as taxas relativas e absolutas de atos ilegais cujos autores seriam adolescentes são os desdobramentos do envolvimento em crimes no desenvolvimento biopsicossocial deles. A implicação direta em crimes, especialmente os violentos, tem alta probabilidade de produzir impacto equivalente ao de traumas, com significativas repercussões no plano neurocognitivo, curtocircuitando aquisições fundamentais de habilidades de regulação emocional, que envolvem consciência, compreensão e aceitação das próprias emoções, a capacidade de controlar comportamentos impulsivos ao experimentar emoções negativas e a capacidade de modificar estratégias para gerenciar emoções de acordo com demandas e objetivos situacionais. Mesmo a alardeada frieza dos infratores pode derivar de uma resposta adaptativa à exposição aguda à violência. Sabe-se que muitos dos jovens que apresentam alta implicação em práticas de delitos estiveram expostos à violência de forma crônica, desde muito cedo e em múltiplos contexto: na família, na escola, no bairro etc. Dentro disto, um percurso alternativo (livre de violência), para muitos, não se apresenta como “opção”.
Nesse ponto vale pensar sobre as estratégias de prevenção à violência juvenil no Brasil. Primariamente, deduz-se que toda política pública básica – de saúde, educação/profissionalização, esporte, lazer e cultura, assim como de segurança pública, de acordo com o paradigma da segurança cidadã – se planejada e executada com a devida qualidade, alcançando segmentos sociais vulneráveis, é suscetível de gerar transformações concretas nas condições de vida de comunidades inteiras e, assim, criar espaço para percursos alternativos, livres da violência, para inúmeras crianças e adolescentes que, de outro modo, estão em situação de risco.
Secundariamente, focalizando os jovens que já se envolveram em condutas violentas e que, por esta razão, encontram-se judicializados, há que se fazer um verdadeiro debate sobre os objetivos e os métodos do sistema socioeducativo, tendo por base a ciência da avaliação de programas de intervenção na área da delinquência juvenil, que vem indicando, há tempos, o que é e o que não é eficaz para promover mudança de comportamento em jovens em conflito com a lei.
Será necessário revisar o papel da justiça juvenil que vem progressivamente se equiparando à justiça criminal adulta, nos seus ritos de encenação jurídica, bem como na concentração do raciocínio na resposta sobre o ato infracional praticado e os bens jurídicos violados (e não sobre as necessidades socioeducativas do adolescente), em um papel eminentemente retributivo/punitivo. Para isso, será necessário também enfrentar e desconstruir uma das crenças mais arraigadas da nossa cultura: a de que a punição, que gera sofrimento, corrige as condutas humanas. Ora, a resposta estatal ao ato praticado, a defesa da sociedade/vítimas e, porque não, a garantia dos direitos dos jovens em conflito com a lei não devem implicar em busca da proporcionalidade entre ato infracional e sanção.
A proporcionalidade deve ser entre intensidade e qualidade da resposta socioeducativa e necessidades psicossociais dos jovens que ali estão. O julgamento dos jovens infratores deveria se dar numa perspectiva de concertação e não de litígio, baseado no sistema adversarial que compõe as estratégias judiciais tradicionais de enfrentamento de conflito, em função do qual risca-se aprofundar o fosso que “separa nós, deles”. O acompanhamento socioeducativo deve sim visar à mudança de comportamento, entendendo que ela não vem da punição, mas das aprendizagens positivas que se pode fazer em ambientes com forte orientação pró-social.
Marina Rezende Bazon é professora associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP) e coordenadora do Grupo de Estudos em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial – GEPDIP/USP.
Bruno César da Silva é defensor público do Estado de São Paulo, doutorando em psicologia no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP) e membro do Grupo de Estudos em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial – GEPDIP/USP
Rafaelle Carolynne Santos Costa é doutoranda em psicologia no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP) e membro do Grupo de Estudos em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial – GEPDIP/USP
Liandra Aparecida Orlando Caetano é mestranda em psicologia no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP) e membro do Grupo de Estudos em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial – GEPDIP/USP
Referências
Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced, 2007). Justiça Juvenil. A visão da Anced sobre seus conceitos e práticas, em uma perspectiva dos direitos humanos. São Paulo.
Ipea & FBSP. (2018). Atlas da violência 2018. Rio de Janeiro: Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.