A exploração comercial infantil fundada na mineração de dados pessoais traz consigo inúmeros riscos e prejuízos aos direitos infantis, sendo urgente e necessário o debate sobre formas de combatê-la efetivamente e garantir um ambiente digital alinhado ao melhor interesse das crianças.
Maria Mello e João Francisco de Aguiar Coelho
A exploração comercial da infância por agentes privados dentro da economia de mercado é fenômeno que adquire novas formas à medida que se transformam as tecnologias, as interações sociais e o próprio capitalismo. No século XIX, conforme destaca Donell Holloway[1], a demanda por mão-de-obra resultante da revolução industrial conduziu a um aumento da exploração econômica do trabalho infantil pelo setor empresarial, levando crianças a terem sua força de trabalho apropriada nos complexos fabris em troca da perspectiva de melhores condições de vida para suas famílias.
Já ao longo do século XX, com o desenvolvimento da chamada sociedade de consumidores[2], crianças passaram a ser paulatinamente mais alvejadas pela publicidade infantil – ou seja, aquela direcionada a pessoas com menos de 12 anos -, a qual, de maneira abusiva, vale-se das vulnerabilidades ínsitas ao peculiar estágio de desenvolvimento em que se encontram esses indivíduos para não apenas impingir-lhes desejos de consumo, mas também utilizá-los como promotores de vendas frente a suas mães e pais e fidelizá-los enquanto consumidores para o futuro[3].
Hoje, no Brasil, a exploração comercial infantil por meio do direcionamento de publicidade a crianças, bem como a exploração direta da força de trabalho de pessoas com menos de 16 anos, segue, lamentavelmente, sendo realidade contra a qual há que se insurgir e se garantir o cumprimento das normas de proteção à infância. Contudo, na contemporaneidade, para que se tenha uma visão global acerca da forma como as crianças são exploradas pela economia de mercado, é necessário debruçar-se, também, sobre as mudanças trazidas pelo incomparável desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) nas últimas décadas, o qual engendrou o modelo econômico a que Shoshana Zuboff deu o nome de “capitalismo de vigilância”[4].
Trata-se de um novo modelo econômico baseado em dados, os quais são coletados e processados por tecnologias de inteligência artificial geridas por grandes companhias para propósitos comerciais diversos. Dentre esses dados, localizam-se os dados pessoais dos indivíduos, os quais são coletados, em geral, durante a sua navegação na Internet.
Evidentemente, as crianças e adolescentes não estão imunes a essa lógica – que traz consigo inúmeros problemas e potenciais violações a direitos humanos -, vez que representam, segundo a Unicef, um terço dos usuários da Internet. Com isso, inauguram-se novas formas de exploração comercial infantil e inúmeros novos desafios no que tange à proteção integral da infância preconizada no texto da Constituição Federal brasileira[5].
A internet e as novas formas de exploração comercial infantil
A exploração comercial das crianças na internet assume, por vezes, contornos com claros paralelos a práticas já existentes no mundo analógico; outras vezes, manifesta-se de maneiras inéditas, sobretudo em se tratando da exploração comercial por meio da mineração de dados pessoais infantis. É sobre esta forma inédita de exploração comercial que recairá o foco deste artigo.
Conforme explica Zuboff, característica central do chamado capitalismo de vigilância é o acúmulo de um “superávit comportamental” por grandes empresas de tecnologia. Com isso, quer-se dizer que essas empresas coletam dos usuários da Internet também informações – inclusive relacionadas à sua personalidade e psique – que não são usadas diretamente para a execução e aprimoramento da experiência dos usuários nos produtos e serviços oferecidos, mas sim para a realização de predições comportamentais que podem ser comercializadas a outras empresas para propósitos diversos. Cite-se, a título de exemplo, a utilização dessas análises preditivas por empresas de recrutamento com o fim de avaliar os candidatos que, supostamente, teriam mais chances de produzir bons resultados à empresa contratante[6].
Dentro dessa lógica, a experiência humana é reivindicada enquanto fonte de matéria-prima para geração de vultosos lucros a grandes corporações, do que decorre, no que tange às crianças, nova forma de exploração comercial infantil assentada na usurpação de sua subjetividade, transformando-a em ativo comercial.
E aqui, não se faz qualquer ressalva ao tratar a mineração desses dados pessoais infantis como forma de exploração comercial. Afinal, dentro da lógica econômica que hoje impera no ambiente digital, tais práticas geram às crianças um sem número de prejuízos, que podem, inclusive, ecoar pelo restante de suas vidas.
Em primeiro lugar, os modelos de negócios baseados em dados dependem da coleta da maior quantidade possível de informações dos usuários da Internet para que possam aumentar a precisão das análises comportamentais realizadas e, assim, auferir maiores lucros. Sendo tais informações coletadas à medida que os usuários passam tempo on-line, as empresas que operam dentro da lógica do capitalismo de vigilância recorrem a modelos de design persuasivo que estimulam o uso prolongado das tecnologias digitais. Com isso, acaba-se por fomentar um verdadeiro vício nessas tecnologias e o excesso no tempo gasto frente às telas – consumindo conteúdos, muitas vezes, de pouca qualidade – entre as crianças, gerando prejuízos a seu desenvolvimento.
Mais ainda, conforme já pontuado, as predições comportamentais conduzidas por essas empresas a partir do uso de dados pessoais podem, muitas vezes, resultar em práticas com forte potencial discriminatório. Retomando exemplos já aqui mencionados, podem significar a perda de uma vaga de emprego ou, ainda, de uma linha de crédito em razão de análise preditiva realizada por tecnologias de inteligência artificial, cujos critérios, no mais das vezes, são extremamente opacos.
No caso das crianças, esse potencial discriminatório torna-se especialmente alarmante porque esses indivíduos, em razão das particularidades de seu estágio de desenvolvimento, tendem a fazer juízos menos ponderados quanto a que informações expor ou não na internet, além de se encontrarem em etapa da vida na qual opiniões que ainda se alterarão muito com o tempo são emitidas indiscriminadamente. O “rastro digital” deixado na internet na infância pode fazer com que essas informações e posturas venham a se refletir na privação de oportunidades futuras, o que é absolutamente injusto e abusivo.
A utilização de dados pessoais infantis para fins de direcionamento de publicidade a crianças na internet (a chamada publicidade comportamental) é outra faceta do capitalismo de vigilância que merece destaque enquanto aviltadora dos direitos da infância. Se a publicidade infantil, por si, é prática abusiva e ilícita[7], a publicidade direcionada a crianças a partir das análises preditivas de que aqui se trata – as quais, neste caso, prestam-se a promover o direcionamento de produtos de maneira personalizada a cada consumidor, em momentos nos quais eles estarão mais propensos a consumi-los – abusa por completo das vulnerabilidades da infância, articulando-as em prol de interesses comerciais.
Para que não restem dúvidas acerca da abusividade desse tipo de direcionamento publicitário, o Facebook (atualmente Meta), em memorando dirigido a empresas anunciantes em 2017, afirmou ser capaz de identificar os momentos em que jovens sentem-se “‘inseguros’, ‘sem valor’, ‘precisando de um aumento de confiança’ ‘estressados’, ‘derrotados’, ‘sobrecarregados’, ‘ansiosos’, ‘nervosos’, ‘estúpidos’, ‘bobos’ e ‘um fracasso’”, para então direcionar-lhes anúncios nesses momentos. Como se vê, essas novas práticas comerciais são dotadas de imenso potencial exploratório e absolutamente desalinhadas de qualquer compreensão que se possa ter acerca do melhor interesse das crianças.
Por fim, cabe mencionar que a extrema personalização hoje dominante na internet não diz respeito apenas à publicidade com a qual os usuários têm contato, mas também aos conteúdos em geral que lhes são direcionados. Com isso, põe-se em xeque o contato das crianças com diferentes perspectivas, opiniões e visões de mundo, inserindo-as na chamada “bolha autorreferencial”[8] em prejuízo ao seu desenvolvimento e até mesmo ao seu direito à informação.
Considerações finais
A exploração comercial infantil fundada na mineração de dados pessoais traz consigo inúmeros riscos e prejuízos aos direitos infantis, sendo urgente e necessário o debate sobre formas de combatê-la efetivamente e garantir um ambiente digital alinhado ao melhor interesse das crianças.
Esse debate, ao contrário do que muitas vezes dita o senso comum, não deve ser centrado somente na educação para uso das mídias digitais, na disponibilização de ferramentas eficazes de controle parental ou no consentimento dos usuários. Ainda que essas sejam discussões relevantes, está-se a tratar aqui de um modelo de negócios adotado por companhias de gigantesco poderio econômico, sendo absolutamente injusto atribuir às próprias crianças e suas famílias a responsabilidade de combaterem sozinhas os efeitos negativos das práticas dessas grandes empresas.
É necessário, portanto, que os próprios agentes econômicos atuantes no ambiente digital sejam chamados a responsabilizar-se por suas práticas e pressionados, por medidas regulatórias, a incorporar os direitos das crianças e a privacidade aos seus produtos e serviços desde a concepção, minimizando a coleta de dados pessoais e garantindo, conforme manda a LGPD, que os dados de crianças e adolescentes sejam sempre tratados conforme o melhor interesse desses indivíduos. De outra forma, dificilmente será possível garantir que a infância e suas peculiaridades não sejam exploradas pelo capitalismo em suas novas características, em prejuízo aos direitos e desenvolvimento saudável das crianças.
Maria Mello é coordenadora do Programa Criança e Consumo do Instituto Alana
João Francisco de Aguiar Coelho é advogado do Programa Criança e Consumo do Instituto Alana
Notas e referências
[1] Holloway, D. “Surveillance capitalism and children’s data: the Internet of toys and things for children”. Disponível em: <https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1329878X19828205>. Acesso em 09.03.2022
[2] Bauman, Z. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008
[3] McNeal, J. The kids Market: Myths and Realities. Nova Iorque: Paramount Market Publishing, 1999, p. 16
[4] Zuboff, S. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro, Ed. Intrínseca, 2019.
[5] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[6] Nesse sentido, ver: O’Neil, C. Algoritmos de Destruição em Massa. Santo André: Ed. Rua do Sabão, 2021, pp. 168-171
[7] A ilegalidade da publicidade infantil no ordenamento jurídico brasileiro encontra respaldo, entre outras normas, nos arts. 36, 37, §2º e 39, IV do CDC, bem como na Resolução n° 163 do Conanda, que detalha a abusividade da prática.
[8] Nesse sentido, ver: Henriques, I.; Pita, M.; Hartung, P. “A proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes”. In Bioni, B. et. al. (coord.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Ed Forense, 2020. p. 204.