Por Juliana Doretto e Thaís Furtado
Antes de escrever este texto, no final de fevereiro de 2022, ligamos a televisão e a sintonizamos num canal de notícias. Na tela, vemos vídeos de explosões, com barulho, fumaça e prédios residenciais destruídos. Seguem-se relatos de repórteres em estação de trens mostrando mulheres com filhos no colo, espremidas na plataforma, tentando desesperadamente subir num dos vagões.
Não tínhamos crianças em nossas salas nesse momento, mas, se tivéssemos, elas estariam conosco acompanhando as cenas, transmitidas no telejornal do horário do almoço. Elas veriam, assim como nós, as notícias sobre a invasão do território ucraniano pela Rússia, e as análises de jornalistas e especialistas, muitas vezes confusas, sobre a dificuldade em estancar os conflitos.
E o que essas crianças fariam com essas informações? Em que medida elas as compreenderiam? Ficariam amedrontadas e teriam receio de que a guerra chegasse aqui? Como lidariam com o pesar sentido ao ver as pessoas em fuga, e ao se reconhecerem nas meninas e meninos ucranianos — que, levados por adultos, olham assustados para a destruição ao redor e para o caos urbano que se instalou?
A cena, hipotética em nossas casas nesse dia, é bastante real em vários lares brasileiros. Em nossos estudos[1] vemos que as crianças costumam acompanhar os pais e irmãos nos seus hábitos de consumo midiático. Elas seguem o noticiário, visto pela família na hora das refeições; ouvem o rádio, durante os deslocamentos pela cidade; veem com o canto do olho os posts das redes sociais que os adultos e jovens leem ao manusear os seus celulares. As crianças também têm acesso às notícias ao navegarem elas mesmas pela internet quando suas famílias têm recursos financeiros para estar na rede.
Sabemos também que as crianças têm dificuldades para compreender o noticiário, que não é voltado para elas, e tem linguagem cifrada e distante do seu cotidiano (e também do nosso, muitas vezes). Mas nem sempre expressam isso para os adultos ao seu redor, e convivem com as dúvidas e inquietações. E os mais velhos poucas vezes perguntam a elas o que estão apreendendo das notícias.
Por outro lado, as informações que “pescam” em sua rotina, ainda que de forma fragmentada, vão construindo, com outros fatores, os modos como elas entendem o seu cotidiano, o mundo em que vivem, as experiências pelas quais passam. Em última instância, passa também por aí a maneira como elas aprendem o papel que cabe à infância na estrutura social em que vivem. “Por que você acha que as crianças precisam também se informar sobre as coisas que acontecem no Brasil e no mundo?”, perguntou a uma criança uma orientanda nossa, em pesquisa de iniciação científica: “Porque só os adultos… é ruim, porque os adultos querem saber de tudo, e as crianças não podem saber de nada. Só eles.[2]
O que elas pensam das notícias
As pesquisas na área mostram que o jornalismo é avaliado por crianças de várias partes do mundo como sensacionalista, repetitivo e sangrento. Por conta disso, as notícias são chamadas de desinteressantes, desmotivantes, distantes. Além disso, apontam que há muitas distorções e manipulações, por interesses políticos e comerciais. Mas reconhecem a função social do jornalismo como importante para o seu cotidiano.
No auge da pandemia da covid-19, por exemplo, um estudo com cerca de 150 leitores de um jornal para as crianças mostrou que, para 40% dos entrevistados, ver as notícias sobre o vírus os estimulava a saber mais sobre o que estava ocorrendo, e metade disse que o noticiário também os deixava ansiosos, pela gravidade da situação. Cerca de 20% afirmaram que se acalmavam, porque compreendiam melhor o momento, e outros 20% disseram que ficavam com mais dúvidas. Ou seja, nota-se que uma parte das crianças percebe a relevância do jornalismo como mediador em situações difíceis do cotidiano, mas apontam também como as reportagens nem sempre fazem isso da melhor forma.[3]
Por outro lado, a crianças compreendem também que a infância não tem tido muito espaço nas notícias, a não ser no caso daquelas em situação de vulnerabilidade, e isso chama a atenção delas: mostram solidariedade com essas crianças, e muita empatia com seu sofrimento. E também se entristecem com maus-tratos a animais e com a destruição do ambiente.
Para fazer frente a esse cenário que desagrada e as deixa confusas, várias delas utilizam uma interessante estratégia. Procuram o que chamam de “suas próprias notícias”: são canais nas redes sociais e no YouTube, e alguns aplicativos, por meio dos quais elas recebem informações que consideram úteis para o seu dia a dia. Elas nem sempre sabem indicar o modo como esses dados são produzidos, mas isso não parece ser um problema para elas. O que mostra claramente como o espaço que o jornalismo deixa vago é ocupado por outras fontes. Foi o que nos contou, por exemplo, um menino brasileiro de 11 anos: “O que eu vejo muito são notícias absurdas. Não absurdas, mas as notícias que marcam mesmo. Eu vejo os vloggers no YouTube e eles postam muito vídeo de notícias. […] E é engraçado, porque eles fazem isso em ritmo de comédia. Mas eles informam muito também”[4].
A crítica delas chega ainda aos poucos veículos que se dedicam ao jornalismo para as crianças. Elas por vezes se sentem reduzidas nesses canais, como se as reportagens ali presentes não dessem conta de tudo aquilo que lhes possa interessar. E também indicam que a abordagem poderia ser mais próxima a elas: “‘Tá’ só o nome diferente, e o resto é tudo para adulto. O nome está ‘Jornalzinho para criança’. Daí o resto é cópia do jornal normal”; “[Tinha de ser] um pouquinho mais engraçado, para eu entender mais”, disseram-nos um menino[5]. No entanto, quando gostam dos veículos a elas destinados, se mostram leitoras fiéis, se sentem representadas e, sobretudo no caso das revistas, fazem coleções das edições. Sim, as crianças gostam também do jornalismo impresso, apesar do discurso corrente de que elas são apenas seres digitais. E não são alheias ao mundo à sua volta. Como vimos, as infâncias são muito mais plurais, complexas e críticas do que o senso comum costuma apontar.
O que as notícias dizem sobre elas
As crianças parecem ter razão quando se mostram incomodadas com o noticiário. Um dos motivos para isso é que elas não se enxergam em reportagens sobre assuntos que lhe dizem respeito. As pesquisas na área mostram que elas se interessam muito mais por conteúdos jornalísticos quando alguma criança aparece como entrevistada. Mas são normalmente os adultos os escolhidos para falar sobre temas que fazem parte da vida dos meninos e meninas. É comum, por exemplo, alguma criança fazer algo considerado surpreendente e, mesmo assim, não ser ouvida pelos jornalistas.
Um bom exemplo é o caso do paulistano Miro Latansio Tsai, de 5 anos, que foi a pessoa mais jovem do mundo a realizar a descoberta de asteroides em um projeto em parceria com a Nasa, mas que, quando sua história foi noticiada, não teve sua voz incluída[6]. Mesmo em um vídeo postado na matéria em que ele aparece falando rapidamente que sua preocupação é com a possibilidade de um asteroide se chocar com o planeta Terra e terminar com a vida humana, a reação do apresentador é achar engraçado e “bonitinho”. É no mínimo curioso que uma criança seja capaz de fazer algo tão complexo, mas que não seja considerada competente pelos jornalistas, ou por seus pais, para dar uma entrevista.
Porém, não são só as histórias excepcionais que envolvem crianças que não são contadas por elas próprias. Em reportagens sobre educação, saúde, tecnologia, entretenimento, entre muitos outros temas que fazem parte do cotidiano de meninos e meninas, elas raramente são ouvidas. Normalmente, ou são seus pais que falam por elas, ou psicólogos, professores, médicos e tantos outros especialistas que dão entrevistas afirmando o que é melhor para suas vidas. E, quando elas são entrevistadas, normalmente falam de questões individuais, não sendo chamadas a opinar sobre temas coletivos, como se não tivessem condições de refletir sobre problemáticas mais amplas. Nessas ocasiões, os textos aparecem carregados de diminutivos e somente o primeiro nome das crianças aparece, como se não tivessem sobrenome, ou seja, quase como se não fossem cidadãs plenas. Em uma pesquisa que fizemos, analisando todo o conteúdo jornalístico das edições da revista Veja publicadas no ano de 2019, verificamos que somente três crianças foram escolhidas como fontes pela publicação. E se trata da revista de informação de maior tiragem do Brasil.[7]
Os motivos para que isso aconteça são vários. Um deles é que os jornalistas não se sentem preparados para entrevistar crianças nem sabem em que situações devem ouvi-las. Com razão, eles se preocupam com as garantias de proteção das crianças. Entretanto, a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), da Organização das Nações Unidas – ratificada pelo Brasil e documento-base do ECA –, defende que a criança, para além de direitos à proteção e à provisão, tem também garantias quanto à participação cidadã. Ou seja, os repórteres poderiam enxergar as crianças como possíveis fontes jornalísticas com autonomia e capazes de produzir sentido social sobre a realidade que as rodeia, cuidando com as questões de proteção, mas também ouvindo o que elas têm a dizer e, dessa forma, garantindo seu direito à participação social. As crianças têm particularidades, mas todas as fontes têm. Basta entender essas singularidades para saber conversar com elas.
Outro motivo de meninas e meninos não serem entrevistados é o próprio receio dos pais de exporem seus filhos. É possível que muitos tenham também o entendimento de que eles não seriam capazes de dar entrevistas. No entanto, não são poucas as vezes em que adultos, por exemplo, pedem ajuda aos mais jovens para resolver algum problema com os aparelhos da família, como o celular ou a televisão. Por que uma criança não saberia falar sobre o que pensa em relação a algo que aconteceu em sua escola? Ou mesmo sobre a guerra?
No início deste artigo tratamos sobre o quanto é difícil às vezes para os adultos conversar com uma criança sobre o conflito em Rússia e Ucrânia, já que nem mesmo nós consigamos compreendê-lo por completo. Nas poucas matérias em que crianças ucranianas foram ouvidas por jornalistas, no entanto, fica evidente que elas sabem falar muito bem e com muita tristeza sobre o que estão vivenciando. E aí talvez esteja uma das principais razões pelas quais crianças são raramente ouvidas: pelo medo que os adultos têm de ouvir o que não querem.
Juliana Doretto é jornalista, doutora em ciências da comunicação pela Universidade Nova de Lisboa (Portugal) e professora do Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e Arte da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Cofundadora da Recria (Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências).
Thais Furtado é jornalista, doutora em ciências da comunicação e informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRGS. Líder do Núcleo de Pesquisa em Jornalismo (Nupejor-UFRGS) e cofundadora da Recria.
Referências
[1] Doretto, J. Fala connosco!: O jornalismo infantil e a participação das crianças, em Portugal e no Brasil. Tese (Doutorado) – Universidade Nova de Lisboa, 2016. Disponível em: https://run.unl.pt/handle/10362/17002.
[2] Sales, A. R.; Doretto, J. “As crianças não podem saber de nada: crianças periféricas e o consumo de notícias”. Anagrama, São Paulo, v. 12, p. 1-15, 2018. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/anagrama/article/download/150383/148773/321622.
[3] Doretto, J.; Generali, S. “O consumo de notícias por crianças durante a pandemia da Covid-19: estudo com leitores de um jornal infanto-juvenil”. Contracampo, Niterói, 2021.Preprint. Disponível em: https://periodicos.uff.br/contracampo/article/view/51097.
[4] Doretto, J. “Minhas próprias notícias: jornalismo e o público jovem brasileiro e português em contexto digital”. Intercom, São Paulo, v. 42, p. 113-129, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/interc/a/yNS5HBnyJXg4qF8fsPPzSth/?lang=pt.
[5] Doretto, J.”A participação das crianças no jornalismo infantojuvenil português e brasileiro”. Famecos, Porto Alegre, v. 25, p. 27327, 2018. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/27327.
[6] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/02/12/paulistano-de-5-anos-que-mapeou-asteroides-em-projeto-da-nasa-citou-nomes-de-planetas-no-museu-catavento-aos-2-anos-conta-mae.ghtml.
[7] Furtado, T. H.; Garcia, S. M.; Bressan, V. R. “A inclusão e a exclusão da voz das crianças na revista Veja”. In: Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo- SBPJOR, 2020, Brasília. Anais do 18º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, 2020.