Por Artur Araújo
Por que a maior anormalidade do presente é a grande ausência das manifestações populares, quer como opinião consolidada, quer como mobilização em defesa de seus interesses e exigindo a reversão da situação presente? Não faltam hipóteses explicativas, que vão desde uma “culpabilização do povo” – que teria se transformado em uma horda majoritariamente reacionária e que age contra seus próprios interesses materiais – até ao discurso autoindulgente, do “estamos fazendo o que dá, mas a mídia esconde”.
Pelo menos desde 2015, o Brasil vive situações que podem ser classificadas como anormais, mesmo se considerarmos nossa história plena de rupturas e descontinuidades. A partir da forte recessão provocada por um grande erro de condução macroeconômica, que resultou em súbita onda de desemprego e no estancamento do investimento estatal e privado, o país mergulhou em continuadas crises, entre as quais se destacam o golpe parlamentar de 2016 e a eleição de um governo de extrema direita, com marcas protofascistas.
A irrupção da pandemia de covid-19, em si uma grande anormalidade de extensão mundial, trouxe à cena posturas e políticas ainda mais bizarras, com destaque para um governo federal que negava a existência da crise sanitária, se contrapunha a todas as medidas de contenção e combate à doença indicadas pela ciência e pela prática médica e se recusava a socorrer uma população atônita, amedrontada e que via sua renda familiar evaporar.
A adoção de medidas de isolamento social, a campanha de vacinação em massa, a instituição de auxílios financeiros emergenciais, foram deflagradas por governos subnacionais, pela ação das oposições no Congresso e por intervenções do judiciário, forçando a presidência da República a conviver com elas, mesmo protestando contra sua execução e desinformando continuadamente.
A pandemia foi enfrentada, globalmente e com razoável grau de sucesso, a partir de ações estatais de grande porte, principalmente via o gasto público “deficitário”, colocando a nu falácias fiscalistas sobre o potencial inflacionário ou de criação de desequilíbrios estruturais das ações contracíclicas a partir dos governos nacionais. Talvez de modo mais intenso e duradouro do que na resposta à Grande Recessão de 2009, houve uma inflexão na própria pensata econômica mainstream, de que o Plano Biden é um dos exemplos mais visíveis.
No Brasil, no entanto, governo, “mercados” e meios de comunicação operam outra anormalidade, insistindo no “austericídio” mesmo frente às urgentes necessidades de uma população com restrição de renda e convivendo com altas taxas de desemprego, subemprego e informalidade, o fazendo na contramão das práticas adotadas na quase totalidade dos países. A insistência na manutenção de evidentes disfuncionalidades (teto de gastos, regra de ouro, meta de superavit “primário”), é acompanhada pela reversão da curva de juros em meio a uma nova recessão e por continuadas medidas de redução da capacidade de prestação de serviços estatais e de desmanche das estruturas do Estado.
Os efeitos dessas orientações na maioria da população têm se revelado nas pesquisas de opinião. Desde março de 2020, as curvas de aprovação do governo e do presidente da República apontam uma lenta e constante queda, refletindo a insatisfação e descrença dos brasileiros com a ação de governo. Não à toa, o único respiro significativo obtido pelo bolsonarismo ocorreu durante a vigência do auxílio emergencial de R$ 600, que chegou às casas de mais de 60 milhões de pessoas, atenuando a ausência de renda do trabalho.
No entanto, frente a um quadro de tal gravidade, que ameaça a sobrevivência física, corrói as relações de convívio social e desarma estruturalmente o Estado como agente na superação da crise e na retomada do crescimento econômico e do desenvolvimento nacional, não é perceptível uma “onda” de opinião francamente oposicionista, que sinalize o rompimento definitivo da maioria com o governo e que dê bases para atividades de massas, sejam reivindicatórias, sejam de conteúdo político explícito.
As manifestações conduzidas sob a bandeira do “fora, Bolsonaro”, entre maio e setembro de 2021, foram marcadas por forte presença das camadas médias e da juventude, sem terem conseguido atrair as multidões populares que eram essenciais para a conquista central que miravam, o impedimento de J. Messias. A realidade se impôs e o movimento entrou em latência.
A dimensão das crises conjugadas que vivemos – sanitária, econômica, social, política, cultural, institucional – exige a presença de forças sociais ativas e para muito além da ação meramente institucional. A mala vita que nos caracteriza há anos somente será enfrentada, mitigada ou resolvida se o povo o exigir de modo inequívoco. E por que não é esse o cenário em curso, por que a maior anormalidade do presente é a grande ausência das manifestações populares, quer como opinião consolidada, quer como mobilização em defesa de seus interesses e exigindo a reversão da situação presente?
Não faltam hipóteses explicativas, que vão desde uma “culpabilização do povo” – que teria se transformado em uma horda majoritariamente reacionária e que age contra seus próprios interesses materiais – até ao discurso autoindulgente, do “estamos fazendo o que dá, mas a mídia esconde”.
Quero explorar uma outra explicação para esse descompasso entre interesses, necessidades e desejos não atendidos e o aparente conformismo com sua não realização: as oposições progressistas não se concentram na “Pauta do Povo” e giram em falso em torno de temas superestruturais, típicos do “mundo da alta política”, perdendo capacidade de interlocução, representação e direção.
Por “Pauta do Povo” denomino a apresentação de soluções, parciais ou globais, para os principais dramas da vida cotidiana, em torno das quais se crie uma onda de opinião reivindicatória e se estruture um movimento oposicionista de multidões. Seus pontos fundamentais são: i) o enfrentamento da carestia; ii) os programas de suporte à renda das famílias; iii) um programa estatal emergencial de empregos; iv) a recuperação financeira e operacional dos serviços estatais, cada vez mais vitais até pela acelerada impossibilidade econômica de acesso às alternativas privadas; v) um programa de redução da carga de endividamento pessoal.
Avalio que somente quando a maioria do povo certificar-se da empatia real dos “políticos” com suas necessidades materiais urgentes, que somente quando o discurso e a prática de partidos, movimentos, entidades, personalidades, deixarem claras a identidade entre seu programa e as condições de vida e trabalho da maioria, será possível criar, organizar, mobilizar e dar perenidade ao que mais falta no Brasil de hoje, o agente decisivo que é a força social do povo.
Superar positivamente a anormalidade do descompasso entre descalabro econômico e social e a presença ativa da força do povo, por enquanto o grande ausente da cena nacional, é o desafio-síntese colocado para as oposições e de cuja solução dependem tanto a resistência às “boiadas” que transitam por Brasília como os próprios resultados eleitorais de 2022.
Urge que as oposições rompam com sua “fé em Newton”: achar que a vitória eleitoral chegará pela força da gravidade, confiando que pesquisas de hoje descrevem o dia da digitação do voto na urna, e preferir a inércia do “jogar parado”, crendo que a soma entre legado, erros do governo e aprofundamento da crise eliminam a necessidade de proposições claras para o aqui e agora.
A ausência do povo, a despeito do horror que vive, só pode ser revertida se houver ação decidida, organizada e intensa das estruturas políticas, que se mostrem efetivamente identificadas com a pauta desse povo.
A criação de um Movimento Nacional Contra a Carestia; a defesa do auxílio emergencial de R$ 600 para todos que precisam pelo tempo que precisarem; um programa estatal emergencial de empregos; a exigência de um Orçamento da União que supra as necessidades financeiras dos serviços estatais; um programa de renegociação geral das dívidas das famílias capitaneado pelos bancos estatais; estão entre as propostas mais urgentes e explícitas em torno das quais as oposições podem e devem centrar todos os seus esforços.
A grave anormalidade do presente – um governo em contradição antagônica com as necessidades, interesses e desejos do povo que não é confrontado por protestos e opiniões francamente oposicionistas – exige a presença do grande ausente, seja no voto em outubro, seja desde já, para reduzir a continuidade e aprofundamento das crises que colocam em sério risco a funcionalidade do Brasil como uma unidade coerente.
Mas o grande ausente só fará sentir sua poderosa presença se tiver a certeza de que as oposições são críveis, que suas propostas são factíveis e entusiasmantes e que o elo entre povo e “políticos” tem a solidez da completa identidade de interesses e da empatia inquebrantável com os dramas atuais que marcam a vida ruim destes tempos muito anormais.
Artur Araújo é especialista em gestão pública e privada e consultor da Fundação Perseu Abramo