Por Emanuel Galdino e Mariana Schincariol Paes
Logo após o anúncio da morte da Bruxa Má do Oeste, um cidadão de Oz que comemorava o acontecimento pergunta à Glinda, a Bruxa Boa do Norte: “Por que a maldade acontece?”. Glinda acha a pergunta interessante e responde com outro questionamento: “Será que as pessoas nascem más ou têm a maldade imposta a elas?”.
Essa é a primeira cena do musical Wicked, inspirado na obra de Gregory Maguire que, por sua vez, pegou carona no sucesso da adaptação cinematográfica do livro de L. Frank Baum, O mágico de Oz. Maguire é o responsável por trazer a história do ponto de vista da Bruxa Má do Oeste, feito que inspirou recentemente os remakes das “nem tão vilãs assim” Malévola e Cruella.
Em Wicked é revelado que a transformação de Elphaba na bruxa má é uma consequência de uma mágoa não elaborada em relação a Oz. A personagem com poderes era diferente dos padrões por ser verde, foi rejeitada, traída e assumiu o papel de vilã ou justiceira. “Quando você explica o porquê essa pessoa ser má, você acaba com a monstruosidade”, explica Tuane Mattos, mestra em letras na área de teoria da literatura e literatura comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
“A principal mudança é que a bruxa passa a ser narradora, ela conta sua história. Existem dois movimentos de narrativas mais atuais. O primeiro quando colocam a bruxa no papel de vítima, ela perde o poder e deixa de ser algo sobrenatural. No segundo, enquanto ela ainda é um ser com poderes, passa a ser narradora, heroína ou anti-heroína. Isso vai sendo retraduzido sempre que a bruxa entra na moda – e a bruxa boa e má vão coexistir”, explica Carol Chiovatto, que pesquisa a questão da bruxa em seu doutorado em estudos linguísticos e literários em inglês na USP.
Mas, afinal, o que é a bruxa? É a antagonista? A mulher velha, de aparência assustadora, corcunda, que usa roupa preta e utiliza seu poder para causar o mal? Ou a sábia, com conhecimento das ervas e que sabe lidar com os elementos da natureza?
Segundo José Nicolau Gregorin Filho, professor e pesquisador de literatura infantil no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, as bruxas são entidades de origem na mitologia celta que não estão associadas à maldade, mas sim ao poder relacionado à feitiçaria e ao domínio da natureza.
“Com o domínio da igreja católica na Europa da Idade Média, a cultura e as práticas medicinais dos povos politeístas, como os celtas, denominados pagãos pela igreja, foram tidas como ameaça ao poder religioso. A criação da bruxa má foi uma forma de usar o medo de uma sociedade que vivia sob ideias maniqueístas para afastar dos cidadãos conceitos da cultura pagã e garantir o poder religioso para a estrutura patriarcal da igreja”, afirma Gregorin Filho, que complementa: “É necessário compreender qual é o interesse envolvido nesse processo de criação de uma figura que represente o mal para causar medo e afastar as pessoas. Se você não admite o sagrado do outro, você domina e aniquila o outro´”.
Carol Chiovatto teve contato com alguns processos judiciais de condenadas por bruxaria e heresia no período da Santa Inquisição. A maioria das rés acusadas de bruxaria era viúva e em estado de mendicância. Isso porque, naquela época, as viúvas não podiam trabalhar, e muitas não tinham direito à propriedade do marido. Época de fome, guerra, desastres naturais, secas, pestes e doenças tende a ser momento de pânicos – e de caça às bruxas.
A pesquisadora observou que existem alguns padrões nesses documentos. O primeiro deles é que partem do ponto de vista da vítima, um “cidadão de bem” que vai à igreja, mas que ficou doente, teve um ente querido morto ou perdeu a plantação por obra da bruxa. A bruxa, por sua vez, é retratada com uma série de adjetivos pejorativos e do mesmo campo semântico da palavra maldade.
“Quando consta no processo o que a bruxa fez, geralmente vemos que ela não fez nada, apenas trocou olhares, cuspiu no chão, xingou ou só entrou em casa e bateu a porta. Mas existe um efeito de causa e consequência que é posto dentro dessa narrativa. Ou seja, o cidadão teve um desentendimento com essa figura, e a tal bruxa reagiu de algum modo, geralmente pequeno, mas depois aconteceu alguma coisa muito maior”, explica a pesquisadora.
De acordo com ela, a ficção usa esses mesmos recursos. Primeiro é estabelecido o caráter da personagem do bem, e a bruxa aparece como antagonista, a maligna, a ameaça interna ou estrangeira à sociedade, a que fez pacto com o diabo.
Conforme descrito por Tuane, o estereótipo da bruxa é animalizado de forma a aproximá-la de elementos da natureza e da morte. Como em João e Maria, quando a bruxa sente a presença das crianças pelo faro para realizar práticas canibalistas. Carol explica que o estereótipo da bruxa corcunda, velha, enrugada, manca, com verruga e nariguda segue uma tradição judaica e grega de interpretar a feiura e as marcas e manchas como uma exteriorização de um mal interior. “A bruxa é o exagero dessa crença”, comenta.
Patrícia Pinna Bernardo, doutora em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela USP, vê a questão pela psicologia analítica de Jung, e a bruxa está relacionada ao arquétipo da Grande Mãe, ao simbolismo da transformação que acompanha os ciclos ao longo de vida. Segundo Patrícia, os contos de fada ajudam as crianças a acessarem recursos internos que lhes permitam trabalhar com as suas experiências. A psicóloga indica que as histórias sejam contadas na sua forma mais original possível, no entanto, que sejam as adequadas para cada fase de desenvolvimento. Além disso, as histórias são interessantes quando não são trabalhadas exclusivamente em seu aspecto moral. “É rico a criança ter contato com a bruxa e a fada, pois todo arquétipo tem duas polaridades. Temos tudo dentro de nós, a luz e a sombra. Os mitos e contos contribuem com isso”, diz Patrícia.
Emanuel Galdino é jornalista (USJT), mestre em ciências humanas e sociais (UFABC), doutorando em sustentabilidade (USP). Aluno da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).
Mariana Schincariol Paes é engenheira de alimentos (Unicamp) e doutora em engenharia Química (USP). Aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).