Por Rafael Campos Rocha
Todo pai e mãe da escola burguesa comporta-se da mesma forma: ansioso e brutal para estacionar o carro, alienado e moroso para sair da vaga e dar a vez aos outros pais motoristas, tão ansiosos e agressivos quanto ele mesmo, criando um moto-perpétuo de egoísmo, agressão, desespeito e crueldade que só se interrompe com o sinal da escola e será retomado na hora da saída ou no dia seguinte.
Os pais que vão buscar seus filhos de carro na saída das escolas burguesas de São Paulo são o mais completo mostruário da Maldade Humana. Todos sabemos que o nosso atual regime político e social – o hiper-capitalismo rentista e desmaterializado – incentiva o egoísmo e a competição de morte entre nossos pares humanos, fazendo com que direitos se transformem em armas de agressão, e educação e bondade sejam vistos como sinais de fraqueza de indivíduos que devem ser exterminados, pela manutenção da manada. Tudo isso, a Marca da Maldade do Capitalismo Financeiro, pode ser estudado com minúncia no comportamento das mães e pais motoristas, que buscam seus bens – que é como encaram seus filhos – logo após as crianças praticarem networking durante toda a tarde (que é como esses pais encaram a jornada escolar.)
Todo pai e mãe da escola burguesa, independente de tamanho de seu dote alienado da massa trabalhadora, comporta-se da mesma forma; ansioso e brutal para estacionar o carro, alienado e moroso para sair da vaga e dar a vez aos outros pais motoristas, tão ansiosos e agressivos quanto ele mesmo, criando um moto-perpétuo de egoísmo, agressão, desespeito e crueldade, que só se interrompe com o sinal da escola e será retomado na hora da saída ou no dia seguinte.
Todo pai usa o seu carro como aríete para conquistar a vaga almejada, de preferência diante da escola, e depois como estância de férias, quando consegue deixar a criança e se recusa a liberar o espaço para outros carros. A vaga torna-se, então, um posto privilegiado, de onde pode assistir, jubilosamente, os outros pais lutarem pelas vagas restantes. Alguns pais só saem de seu posto satisfeitos depois de causarem um prejuízo realmente visível às outras famílias, como atrasos escolares ou até mesmo um pequeno (Oh! Glória das Glórias!) amassão na lataria conseguida graças ao nervosismo do motorista, que não consegue achar um lugar para parar, porque o carro anterior ocupa três vagas.
Temos, é claro, sutis diferenças entre a maldade dos pais, que podem ser vistos pelas suas pretensões de construção independente e original de sua auto-imagem. O desejo de destruição do próximo, entretanto, é idêntico.
Do pai neo-hippie, herdeiro da burguesia ilustrada, que ocupa três vagas com seu jipe do ano ostentando o adesivo “Vegan” para o pai empreendedor herdeiro da empresa, que ocupa três vagas com seu mercedes do ano, notamos diferenças na imagem escolhida para a auto-propaganda, mas não na interação com o mundo. Enquanto o pai neo-hippie vegano, herdeiro da burguesia intelectualizada, performa o pai especial e atencioso, berrando apelidos que o filho desconhece enquanto se agacha, ou até mesmo ajoelha na calçada para que todos vejam seu amor retumbante e especial por sua cria super-dotada intelectualmente, o pai herdeiro-empreendedor tenta deixar o filho o mais rápido possível para poder usar a vaga conquistada como uma central para o envio de mensagens de whatsapp e consulta da página de instagram de suas amantes em potencial. Evidentemente, o pai vegano faz a mesma coisa, logo depois de deixar seu filho perplexo para os funcionários constrangidos da escola, mas ele o faz de pé, na calçada, mostrando interação cultural com a megalópole. O carro, entretanto, continua ocupando as três vagas. O pai empreendedor tem a virtude de não disfarçar seus sentimentos com relação aos circuncidantes e se mantém dentro do carro, como se mantém dentro de seu clube, do shopping e do condomínio de luxo. O mérito de se mostrar um alvo gritante para possíveis sequestros e latrocínios com requintes de maldade não pode ser tirado desse conquistador dos próprios privilégios herdados.
Não podemos também esquecer da crueldade implícita na propaganda da “Opção Vegana” em um país onde comer carne é um privilégio para cada vez menos pessoas. O vegano é, antes de tudo, alguém que redirecionou o seu sadismo atávico, endereçado às outras espécies, para os seus pares humanos. Evidentemente, o futuro da humanidade, se houver, é vegano, já que se mostra cada vez mais impossível sustentar uma civilização onívora, mas sua propaganda diletante e gratuita é, sem sombra de dúvida, uma agressão ao próximo, além de uma mostra obscena de uma personalidade esnobe até a parafilia.
Do pai empreendedor que derrama em churrascos opulentos lugares comuns de masculinidade histérica e perversa ao pai vegano que tenta humilhar seus próprios convivas com demonstrações de austeridade e consciência ecológica e social (conquanto não inclua o trabalhador de baixa renda, essa mazela da Mãe Terra e que deve ser guiado pelas almas iluminadas do middle brow ativista), tudo nos pais que buscam e trazem seus filhos no colégio é adesão absoluta e fiel à Acumulação Capitalista como Imagem.
Os pais, entretanto, são minoria na saída dos colégios da burguesia semi-letrada de São Paulo. As mães ainda abundam, seguindo os mesmos critério holístico-fisiognômicos. A mãe ativista, a verdadeira proprietária do carro vegano, do qual o marido é mero locatário provisório e indesejável, oscila entre o ódio aos outros homens e mulheres que levam seus filhos à escola, por parecerem desconhecer todo o seu amor, desprendimento e conhecimento parental enciclopédio da própria função, ao ódio exclusivo aos pais homens, representantes dissolutos do patriarcado decadente, que não podem esperar uma mãe exemplar postar a foto no instagram do seu filho entrando na escola para finalmente conseguir estacionar seus automóveis velhos e, portanto, poluidores.
Esse ódio aos pares humanos é a única coisa compartilhada entre a mãe ativista e a mãe troféu do marido herdeiro-empreendedor, além, é claro, do ódio recíproco. A mãe-troféu olha os outros pais e mães como pobres deformações da genética de seios murchos e braços da grossura do tornozelo de seu marido, sem contar os carros sujos e que insistem em esperar atrás do seu, com o pisca-alerta ligado, enquanto ela examina as unhas e as mensagens no celular.
Os filhos dessas monstruosidades sociais não poderiam ser diferentes, é claro. São serzinhos jocosos e vingativos que, para o consolo do resto da sociedade, destroem a vida de seus pais como os mesmos destroem a saída da escola e gostariam de destruir raça humana.
Ignoram os gritos de entusiasmo dos pais neo-hippies veganos, quando os veem, e os acenos familiares e descolados das mães ativistas, fingindo que nunca viram aquele gesto antes e destruindo a suspensão de descrença de toda boa representação teatral.
Com os pais empreendedores e herdeiros e suas esposas-troféus são ainda mais pérfidos, pulando com os pés sujos nos estofamentos luxuosos dos mercedes e abraçando e amarfanhando as roupas impecáveis de suas assustadas mães, que não podem se defender para não prejudicarem as unhas feitas.
No futuro, se houver, serão perfeitos motoristas de seus monstrinhos ditatoriais, espezinhando os caminhantes com seus avanços na faixa de pedestres, assolando os incautos com brados aleatórios de buzina e, principalmente, ocupando a vaga de três carros com seu carro do ano, usando adesivo da concessíonária ou vegano, se os veganos não forem substituídos, em um futuro de ainda maior penúria, pelos “carnívoros”. O esnobismo humano, como a maldade, não conhece limites.
Rafael Campos Rocha nasceu em 1970, em São Paulo. Publicou diversas histórias em quadrinhos, romances, livros infantis e artigos teóricos para diferentes editoras e revistas especializadas. Atualmente atua como roteirista de televisão e cinema além de continuar sua atividade de quadrinista, escritor e artista gráfico. É o criador de Kriança Índia e de Deus, essa gostosa.