Por Fabio Eon
Menos de 2% do orçamento mundial para pesquisa e desenvolvimento se destina à ciência oceânica e menos de 20% do Oceano encontra-se devidamente mapeado
Grandioso. Essa é a imagem à qual frequentemente nos remete o Oceano. E, de fato, os números são superlativos. O Oceano é o nosso maior ecossistema e cobre 70% da Terra. Ele estabiliza o clima, armazena carbono, produz oxigênio, alimenta uma rica biodiversidade e dá suporte direto para a nossa existência por meio de recursos alimentares, minerais e energéticos, além ser fonte de cultura, turismo e recreação. Não bastante isso, estima-se que cerca de 50% do oxigênio que respiramos venha de fitoplanctons, o que atualmente dá ao Oceano o provável título de “pulmão” do planeta.
Ainda assim, paradoxalmente, conhecemos muito pouco sobre os nossos mares. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), menos de 2% do orçamento mundial para pesquisa e desenvolvimento se destina à ciência oceânica e menos de 20% do Oceano encontra-se devidamente mapeado.
Visto que as respostas para algumas questões contemporâneas, tais como melhor compreender o fenômeno das mudanças climáticas ou zelar pela proteção da biodiversidade de nosso planeta, residem também no melhor entendimento desse ecossistema, torna-se crucial avançar a passos largos rumo a maiores investimentos e a uma maior cooperação internacional no campo da ciência oceânica, entendida aqui no plural se incluirmos ramos tão diversos e complementares como a biologia marinha, o georreferenciamento, a cartografia e outras ciências do mar.
Sem dúvida, a ciência oceânica fez um enorme progresso ao longo do último século ao descrever, compreender e melhorar nossa capacidade de prever mudanças no sistema oceânico. No entanto, a próxima década nos brinda como uma oportunidade ainda maior de aproveitar os avanços interdisciplinares da ciência para alcançar uma melhor compreensão do sistema oceânico. A cooperação científica na área permitirá a elaboração de informações apuradas sobre o estado dos mares e isso contribuirá para a articulação de cenários e caminhos integrados para o desenvolvimento sustentável. A ciência oceânica é, assim, resposta-chave para abordar os impactos da mudança climática, da poluição marinha, da acidificação dos oceanos, da perda de espécies marinhas e da degradação de ambientes marinhos ou costeiros.
Portanto, foi com base nesse senso de urgência, que no dia 5 de dezembro de 2017, as Nações Unidas declararam que a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável seria realizada de 2021 a 2030. Ao coincidentemente terminar em 2030, ano de encerramento da chamada “Agenda 2030” composta por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (também popularmente chamados de “ODS”), dos quais a vida na água merece um ODS próprio (ODS 14), a Década é carregada de simbolismos e de força galvanizadora ao redor do desejo de um Oceano que seja, ao mesmo tempo:
- Limpo, no qual as fontes de poluição sejam identificadas e removidas;
- Saudável e resiliente, no qual ecossistemas marinhos sejam mapeados e protegidos;
- Previsível, no qual a sociedade tenha a capacidade de compreender as condições oceânicas presentes e futuras;
- Seguro, no qual as pessoas estejam protegidas de riscos oceânicos;
- Produtivo e sustentavelmente explorado, no qual a provisão de alimentos seja garantida;
- Transparente, no qual exista acesso aberto aos dados, informações e tecnologias.
Esperamos que a Década fortaleça a cooperação internacional necessária para desenvolver pesquisas científicas e tecnologias inovadoras que conectem a pesquisa com as necessidades da sociedade, mas que também contribua e seja importante aliada para a implementação de outros marcos, compromissos ou processos da ONU, como as metas de Aichi para a Biodiversidade, o Caminho de Samoa, a Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar, o Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres e a nova e concomitante Década das Nações Unidas da Restauração de Ecossistemas (2021-2030).
Articular e realizar objetivos tão ambiciosos certamente não será tarefa fácil. A Década exigirá o envolvimento de muitos atores diferentes para criar novas ideias, soluções, parcerias e aplicações, tais como: cientistas, políticos, acadêmicos, tomadores de decisão, empresas, indústria e sociedade civil. Do ponto de vista da sua governança interacional, a Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI) da UNESCO foi encarregada pela Assembléia Geral da ONU para trabalhar com todos os atores envolvidos nessa tarefa. A COI, criada pela UNESCO em 1960, é o órgão das Nações Unidas responsável por apoiar a ciência e os serviços oceânicos globais. É, desta maneira, o fórum de concertação e governança internacional que permite a seus 150 países a coordenação de programas de observação do oceano, de mitigação de desastres, de alertas de tsunami ou mesmo de planejamento espacial marinho.
No plano doméstico, e como recomendação de implementação da Década do Oceano, recomenda-se a criação de comitês de implementação nacionais. Nesse sentido, por iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), foi criado em 2020 o Comitê de Assessoramento para Gestão da Década e seus cinco grupos regionais (nordeste, norte, sudeste, centro-oeste e sul) de apoio na mobilização de esforços e parcerias. O comitê brasileiro reúne representantes do governo, da academia, do setor privado e da própria UNESCO na busca de objetivos que visem a promoção e divulgação da Década no Brasil.
Um comitê nacional brasileiro é de fundamental importância ao olharmos a fundo a importância do Oceano para nosso país. A costa brasileira é formada por quase nove mil quilômetros de praias, dunas, falésias, restingas, manguezais e baías que reúnem uma das mais ricas biodiversidades do mundo. O Oceano é responsável no Brasil por grande parte da nossa alimentação, transporte e circulação de pessoas, além de divisas ligada ao turismo e a exploração de petróleo e gás. Não há como não pensarmos em preservar esse tesouro de maneira sustentável e calcada em preceitos científicos.
Nada mais natural que o Brasil seja ator protagonista na construção da Década do Oceano, papel deixado claro já em 2019 ao organizar o Encontro de Planejamento Regional do Atlântico Sul na cidade do Rio de Janeiro. O país conta também com importantes e renomados centros e instituto de pesquisa e oceanografia, além de uma nova Cátedra UNESCO para Sustentabilidade do Oceano na Universidade de São Paulo (USP).
Contudo, ao fim e ao cabo, talvez o principal legado almejado com a Década seja a ideia que a UNESCO convencionou chamar de “Cultura Ocêanica” (ou Ocean Literacy em inglês). A noção de uma “alfabetização” sobre o Oceano – conceito já muito comum em países marítimos onde o tema faz parte do currículo e de visitações guiadas de escolas – vem em paralelo com outro conceito que também ganha corpo internacionalmente, em círculos acadêmicos e de inovação, que é a ideia de “Antecipação do Futuro” (ou Future Literacy em inglês).
Hoje sabemos, com relativa clareza, que grande parte dos problemas globais – desde o crescente endividamento de famílias ao aquecimento global ou crises sanitárias e de saúde pública – muitas vezes têm origem na dificuldade de antevermos cenários ou projetarmos soluções para questões que se avizinham. O Oceano nos remete a muitas imagens – algumas afetivas ligadas às férias ou ao turismo, outras de subsistência como a pesca e a exploração marinha – mas todas igualmente válidas, legítimas e partes igualmente importantes desse rico e complexo mosaico que nos fascina e para o qual ainda temos muito a descobrir.
Não por acaso, o documento final da Rio+20 foi intitulado “O Futuro que Queremos”. Trata-se agora de advogarmos e tomarmos rédea do nosso próprio destino. Um futuro que seja pautado em modelos de consumo mais sustentáveis, participativos, inclusivos e que – como nos lembra o mote da “Agenda 2030” – “não deixe ninguém para trás” (leaving no one behind).
Cuidar, preservar e proteger nosso mais rico ecossistema requer investimentos em ciência de qualidade. “A ciência que precisamos para o oceano que queremos” – emblema da Década do Oceano (2021-2030) – nunca foi tão atual e será sempre a mais perfeita síntese dos nossos compromissos renovados na ciência, indubitavelmente a melhor resposta para os grandes desafios da atualidade e das grandes questões que virão.
Fabio Eoné coordenador de Ciências Naturais da Representação da Unesco no Brasil